Durante seis meses privou com ele no Regimento de Infantaria 5 nas
Caldas da Rainha. Dois temas os levaram a conversas várias: o Benfica e a
guerra colonial. Terá sido ele o primeiro que, quase por sinais de fumo, lhe
disse que o regime só cairia por intervenção dos militares. Como sempre
desprezou fardas, lembra-se de lhe dizer: “bem poderei esperar sentado, meu
tenente.”
Mais ou menos seis anos depois destas conversas, acontecia aquela madrugada “onde
emergimos da noite e do silêncio”.
Uma pequeníssima notícia de jornal diz-lhe que, com 67 anos, morreu ontem João
Manuel Bicho Beatriz, um dos co-organizadores da primeira reunião do movimento
dos “Capitães de Abril.”
Sentia que tinha uma tarefa a cumprir e não descansou enquanto não a pôs em
marcha e, tal como lhe dissera, uma grande convicção de que seriam os militares
a resolver o problema da Guerra Colonial. Juntamente com muitos outros
restituíram a este país a dignidade, das poucas vezes que a palavra Portugal
foi soletrada com respeito. “Foi bonita a festa, pá”!
Cumprida a tarefa não andou para aí em bicos de pés a contar feitos e proezas,
a mostrar os galões, foi mais um dos poucos salgueiros maias que fugiram à luz
dos holofotes.
Após aquelas conversas, nas Caldas da Rainha, só o voltou a encontrar uma vez,
já capitão ou major, não lembra bem, porque para ele foi sempre o tenente BichoBeatriz. Eram umas eleições para a presidência do Benfica, ali na secretaria do
clube na Rua Jardim do Regedor. Já, então, Abril há muito se desfazia em
oportunismos e traições vários. Falou-lhe das muitas esperanças frustradas, das
desilusões, os esforços que só em parte resultaram, mas nada disso o levara à
condição de um derrotado. Por temperamento optimista, esmagou logo ali o
desencanto e propôs um almoço, num qualquer dia, para uma converseta e um tinto
escolhido por colheita. Nunca houve esse almoço, aquelas coisas que vão ficando
para amanhã e acabam em nunca mais. Se isso tivesse acontecido decerto que lhe
levaria para ler, aquele fragmento de poema de Sophia Mello Breyner Andresen:
«Os ricos nunca perdem a jogada
nunca fazem um erro.
E esperam os erros dos outros,
São hábeis e sábios
têm uma larga experiência do poder
e quando não podem usar a própria força
usam a fraqueza dos outros
E ganham.»
Pois foi, limitámo-nos a administrar as nossas divisões, as nossas fraquezas.
Crê que foi aqui que chegámos. Um país onde grassa o clientelismo, a corrupção
e onde a lei é a do salve-se quem puder, exige que voltemos às nossas velhas
conversas e, se possível, restituir os sonhos de uma vida. Que os sonhos
existem e porque tem mesmo que haver um futuro.
Até já, tenente Bicho Beatriz!
30 de Outubro de 2008
Legenda: encontro de
militares de Abril para lembrar em 2004, em Évora, uma das reuniões
preparatórias do Movimento. Bicho Beatriz é o segundo à esquerda. Dinis de Almeida é o segundo à direita
Fotografia de Manuel
Moura/Lusa tirada de Abril
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