Os Pescadores
Raul Brandão
Livrarias Aillaud e Bertrand, Lisboa 1923
Peniche é horrível. Por toda a parte por onde têm
passado os homens dos municípios - por toda a parte transformaram as
terras cheias de carácter em terras incaracterísticas, com edificações banais,
avenidas novas e chalés de zinco nos jardins. Degradaram tudo. Peniche, que foi
uma fortificação e um ninho de piratas isolado e feroz, à espreita do naufrágio
e da presa, cheira que tomba, e só conserva duas coisas interessantes: o cabo
(hão-de deitá-lo abaixo) com a Senhora dos Remédios, e a esplanada, que é um
esplêndido cenário para o último acto da Tosca, e um ponto de vista
admirável para o sul - grande traço indistinto e roxo, com um ou outro casal,
uma ou outra aldeia dispersa e sem nome. Mas Peniche é sobretudo horrível para
mim porque é o tipo de pesca industrializada, o barracão, a fábrica de peixe, a
caserna da sardinha, onde impera o Fialho do Algarve. Só me ficou uma impressão
grata. Perdi-me. Fui por uma rua fora e entrei por acaso num rés-do-chão,
escola de rendeiras. Nenhuma teria mais de dez anos. Outras ainda menos.
Algumas com dois palmos mal sabiam falar. E todas aquelas mulherzinhas,
sentadas no chão e debruçadas sobre os bilros e os piques, levantaram a cabeça
e puseram-se a rir para mim... Elas hão-de ser mulheres, eu hei-de ser mais
velho do que sou, e não me passa a impressão de ingenuidade e de pureza, dos
olhos a sorrir e dos biquitos abertos cor-de-rosa...
Daqui ao cabo é meia légua através de muros, vinhas e
casebres. Quero olhar para as Berlengas de mais perto. Desde que as vi fiquei
cismático... A Senhora dos Remédios é escavada na rocha subterrânea, junto a
fragas enormes que mal se sustentam de pé e que os vagalhões assaltam
formidavelmente. Que voz lá no fundo, e que esplendor de luz nesta mole negra e
cenográfica que se esboroa na extremidade, tomando o aspecto estranho de torres
medievais, com água esverdeada a escavá-las e a roê-las nos antros e cavernas,
que ficam a cinquenta metros de profundidade e que repercutem ecos, ameaças,
uivos e lamentos de desespero, súplicas dramáticas! É o Castelo do Diabo... E
no fundo do horizonte sempre aquelas três nuvens pousadas sobre o mar, chamando
por mim. Atraem-me e fascinam-me.
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