quarta-feira, 12 de maio de 2021

SARAMAGUEANDO


30 de Junho de 1993 

Fernando Venâncio escreve no Jornal de Letras um artigo - «O homem que ouviu desabar o mundo» - sobre o Vergílio Ferreira, a propósito da Conta-Corrente. E em certa altura diz: «Afirmei, um dia, levianamente, que a ascensão de Saramago se mantivera invisível ao diarista Vergílio. Hoje, dou-me conta que, sob a referência inofensiva, sob o próprio silêncio, é essa partida do destino um dos motores do sofrimento. Vergílio Ferreira jamais perdoará isso aos fados (E quem, no seu lugar, perdoaria? Na nossa história literária são casos excepcionais as boas-vindas. Deu-as António Vieira a Manuel Bernardes, soube-as dar Filinto a Bocage. Não há memória de muitas mais.) Mas as autênticas contas de cósmica que lhe calhou, são bem mais vastas e mais cruéis. Os considerandos poderão ser complicados, mas a tese é límpida: os parvos ainda não perceberam que o romance acabou. Não que Vergílio o saiba de observação, porque ele escassamente lê. “A obra dos outros mesmo de muito alteados no panegírico, não me interessa absolutamente nada” (p. 73, sublinhado no original). Há pior: “De vez em quando uma página ou outra de um autor entusiasma-me e vexa-me mesmo por me entusiasmar” (ib).» Não comento. Digo apenas que Vergílio Ferreira, no fundo, não faz mal a ninguém. Dói-lhe e morde onde lhe dói para que lhe doa ainda mais, e isso talvez seja uma forma de grandeza.

José Saramago, Cadernos de Lanzarote, Volume I

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