quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

POSTAIS SEM SELO


Como é que foi o seu 25 de Abril? Ó pá, os colhões do Padre Inácio... já ninguém liga ao 25 de Abril...


AGORA NÃO RESPONDO MAIS NADA


Terminamos a entrevista que João Pedro George fez a Luiz Pacheco, uma das melhores entrevistas que fazem parte de O Crocodilo Que Voa.
Tem um final mesmo à Pacheco, põe o jornalista a andar, porque está cansado, tem de ir mijar e comer qualquer coisa…

Vai sair na Dom Quixote, em breve, um diário inédito, o Diário Remendado...

Aquele diário é uma conversa comigo mesmo, um desabafo... e é um fragmento de um fragmento do meu diário... é uma amostra, um fragmento daquele período, entre 1971 e 1975... deitei muita coisa fora... tirei mais de metade...

Inclusive o relato do 25 de Abril...

Esse corte foi deliberado... eu não gosto daquele texto... era uma resposta aos gajos que faziam artigalhadas mais ou menos inventadas com o título “O meu 25 de Abril”... aquilo era tão presunçoso... não foi só um gajo, ainda foram uns quantos... se tu fores consultar os jornais na altura verificas isso... era uma paródia a esses gajos... Como é que foi o seu 25 de Abril? Ó pá, os colhões do Padre Inácio... já ninguém liga ao 25 de Abril...

Foi de pijama para o Largo do Carmo...

Mas não foi de propósito... eu estava em casa, sozinho, o Paulo tinha ido para o liceu, estava a rever provas do Pacheco versus Cesariny... de repente chateei-me, não tinha telefonia, não tinha televisão, não tinha nada, chateei-me de rever provas e disse vou ali beber uma cerveja e quando venho de beber a cerveja há o barbeiro que me diz «ó senhor Pacheco, olhe que há revolução em Lisboa». Então enfiei o sobretudo que me deu o marido da Natália Correia e fui para Lisboa... não foi de propósito que eu fui para o Carmo de sobretudo e pijama... Agora não respondo mais nada… Estou cansado… são 80 anos, caramba! Vá, pira-te que eu tenho de mijar e tenho de ir comer qualquer coisa…

OLHAR AS CAPAS



Tratado das Paixões da Alma

António Lobo Antunes
Capa: Fernando Felgueiras
Publicações Dom Quixote, Lisboa Novembro de 1990

Lembrou-se de quando tinha doze ou treze anos, roubava cigarros ao avô, os dividia com o filho do caseiro e se estendiam ambos na relva, a fumar, vendo o céu de Setembro no intervalo das acácias. Sorriu ao repuxo do lago e aos bancos de azulejo que separavam o jardim do roseiral, e o Juiz de Instrução inclinou-se de imediato para a frente, de mãos espalmadas numa confusão de papéis: – O quê? – Não disse nada, são coisas antigas que me vêm à ideia, não ligue. O avô em baixo, de casaco de verão, na cadeira de lona sob o guarda-sol desbotado, assente nos ladrilhos onde aos domingos, a seguir ao almoço, a família montava as mesas da canasta, e eles aqui, rente aos gladíolos, chupando beatas clandestinas com a caixa de fósforos da cozinha no bolso, assistindo ao leme do moinho que bailava para a direita e para a esquerda à procura do vento.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

COMEÇOS DE LIVROS


Até agora, o começo que mais me tinha impressionado era o de O Estrangeiro. Li-o nos tempos da minha mais inicial juventude e sem que ninguém me avisasse do que ali me esperava: «Hoje, a mamã morreu. Ou talvez ontem, não sei.» Não se me escapa que esse início está considerado um dos melhores da novela contemporânea. Vem-me outro à memória, de leitura mais recente: «Fui cordialmente convidado para fazer parte do realismo visceral. Aceitei, naturalmente. Não houve cerimónia de iniciação. Antes isso» (Roberto Bolaño, Os Detectives Selvagens). É um começo magnífico, precisamente porque carece de qualquer espécie de iniciação.

Enrique Vila-Matas em Diário Volúvel

NOTÍCIAS DO CIRCO


O PSD sempre foi um equívoco.
O Partido Socialista ocupou-lhe o espaço e no dia em que Mário Soares arrumou o marxismo numa gaveta, nunca mais teve qualquer possibilidade.
Andou todos estes anos alternando o poder e as manigâncias com o Partido socialista e nada mais.
Afastados do poder, sem vislumbres de, nos próximos tempo, a ele aceder, vive momentos de angústia.
Pedro Passos Coelho já nem sombra é, e Rui Rio que lhe ocupou o lugar tem vivido momentos complicados e inenarráveis.
Pedro Santana Lopes já saiu fundando um outro partido - a «Aliança».
Um tipo execrável que dá pelo nome de André Ventura outro partido formou e chamou-lhe «Chega»
Luís Montenegro, ex-lider parlamentar, desafiou Rio e houve a necessidade de se realizar um conselho nacional para separar águas ou lá o que foi.
Aconteceu a 18 de Janeiro, estendeu-se pela madrugada, houve gritaria vária, encontros e desencontros, e Rio fortaleceu a sua posição presidencial.
Vasco Pulido Valente que aos sábados, no Público, escreve um diário, assistiu, melancolicamente ao evento e acabou por concluir:

«Ninguém me conseguiu dar uma boa razão para o PSD existir.»

OLHAR AS CAPAS


O Estranho Caso da Velha Curiosa

Agatha Christie
Tradução: Mascarenhas Barreto
Capa: Lima de Freitas
Coleção Vampiro nº 189
Livros do Brasil, Lisboa s/d

Mrs. McGillicuddy seguia arquejando, ao longo do cais, na esteira do carregador que lhe transportava a mala. Mrs. McGillicuddy era baixa e corpulenta, ao passo que o carregador era alto e esgalgado. Além disso, Mrs. McGillicudy ia carregada com uma quantidade de embrulhos, resultado de um dia de compras para o Natal. Por conseguinte, a corrida era desigual e o carregador dava já a volta ao extremo do cais, quando Mrs. McGillicuddy ia ainda a meio deste.

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

UM IMENSO FASTIO DE TUDO


O fim.
O Futuro foi algo que Pavese nunca quis alcançar.
Terá sido?
18 de Agosto de 1950.
Lança para o seu Diário:

A coisa mais secretamente temida acaba sempre por acontecer.
Escrevo: ó Tu, tem piedade. E depois?

Basta um pouco de coragem.

Quanto mais a dor é determinada e exacta, tanto mais o instinto de vida se revolta e a ideia de suicídio tomba.

Quando em tal pensava, parecia fácil fazê-lo. No entanto, há pobres mulheres que o fizeram. O que se requer é humildade, não orgulho.

Um imenso fastio de tudo.
Basta de palavras. Um gesto. Não escreverei mais.

Cesare Pavese em Ofício de Viver

AS ESCADAS



Também elas envelheceram, as escadas,
também, como eu, desabitadas.
Anoiteceu, ao longe afastam-se passos, provavelmente os meus,
e, à nossa volta, os nossos corpos desvanecem-se como terras estrangeiras

Manuel António Pina

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

POSTAIS SEM SELO



Atenção aos estúpidos! Fazem pouco e têm sucesso…


Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da ilustração.

FAÇO-ME COMPREENDER?


Carta de Jorge de Sena, datada de Lisboa 11 de Outubro de 1953, para Ant´nio Ramos Rosa:

Meu caro Ramos Rosa

Não, não acho que V. seja um «chato». Pelo contrário, agrada-me tanto que apelem para mim! Agrada-me tanto poder ser útil ou agradável por pouco que seja! E aqui tem também V, como eu também sou: fiquei-me embevecido no agrado do apelo e, disperso pela minha vida (o seu postal apanhou-me até ausente no Porto, em serviço), não acudi e era o que quereria, mais o que devia. Perdoa-me V. o silêncio e a demora? E está V; melhor?
Por este correio, seguem o último número da Critique e o livro do Caillois, em que V, fala, e que tenho em espanhol por sinal (para o caso tanto faz).
Não, Rosa, eu não assino nada (nem pude ainda renovar a assinatura da Critique), e mal compro um livro – se o dinheiro nem me chega para eu e a família passarmos ao mês seguinte! Não tenho o Frénaud em que me fala também. O livro do Monnerot chama-se Les faits sociaux  ne sont pas des choses – é de muito interesse, mas não o tenho também.

Noutro passo da carta, sena escreve:

Porque, meu caro Rosa, não só com poemas nunca ninguém ganhou a vida, mas, bem pior que isso (visto que nos deveria assistir o direito de não a ganharmos…), se perde a independência perante a realidade, que, em si mesma e sem nós, não é poética. Faço-me compreender? E vai longe o tempo dos Mecenas e das princesas de Thurn e Taxis emprestando castelo aos Rilkes.

OLHAR AS CAPAS


Crónicas Algarvias

Manuel da Fonseca
Capa: Armando Alves
Editorial Caminho, Lisboa, Dezembro de 1986

Avançando, coxia fora, noto pela primeira vez que há poucos passageiros. Sento-me no meu lugar, abro o jornal. Não consigo concentrar-me. Os pensamentos afastam-se da leitura. Lembro-me da família, os vizinhos, a vila, neste instante tão perto do comboio onde viajo. Teimo em ler. Mas, as recordações voltam. Nítida, ressoa-me na memória uma voz familiar:
- Olha que não deves ler nos comboios. Ou noutros meio de transporte.
- Porquê, tia?
- Porque pode provocar um descolamento da retina.

CANÇÃO MUTILADA


A tarde cai amaciando a terra,
E enchendo-a de miragens tentadoras
Enquanto o Sol,
Nos últimos alentos,
Se prende aos galhos de um arbusto
Que, ressequido, à beira de uma ermida,
Parece o próprio símbolo da Vida.

De enxada ao ombro, alguns trabalhadores,
Pisam o pó e as pedras dos caminhos
- Como bandeiras humanas
Movidas pelo infortúnio,
Sem alegria, sórdidos, curvados,
Mas enormes no seu frémito de luta!

Ah!, nem a Morte quer os homens
Quando eles são desgraçados!

As estrelas lá, no alto,
Riscam cintilantes brilhos.

E em bandos –
Os maltrapilhos,
Silenciosos e ateus,
Zombam do Amor
E até de Deus!

A miséria
Quando atola
O homem nos seus negros labirintos,
Dá-lhe, também, a loucura
Dos mais trágicos instintos…

Agora, neste momento,
A noite –
É a imensa realidade…

E eu julgo ver a justiça
Afundar-se na penumbra
Da sua inútil verdade.

António Botto

Legenda: retrato de António Botto por Almada Negreiros

domingo, 27 de janeiro de 2019

POSTAIS SEM SELO


Desde que me tornei um forçado do escrever, para mim acabou o prazer da leitura.


Legenda: Italo Calvino

O MOVIMENTO INVISÍVEL DA LEITURA


Sentada numa cadeira de praia, no terraço de um chalet no fundo do vale, há uma jovem mulher a ler. Todos os dias antes de me pôr a trabalhar fico um bocado a olhá-la com o óculo. Neste ar fino e transparente parece-me captar na sua figura imóvel os sinais desse movimento invisível que é a leitura, o correr do olhar e do respiro, mas ainda mais o percurso das palavras através da pessoa. O seu fluir ou deter-se, os impulsos, as demoras, as pausas, a atenção que se concentra ou se dispersa, os recuos, esse percurso que parece uniforme e afinal é sempre mutável e acidentado.
Há quantos anos não posso dar-me ao luxo de uma leitura desinteressada? Há quantos anos não consigo entregar-me a um livro escrito por outros, sem nenhuma relação com as coisas que devo escrever eu? Viro-me e vejo a secretária que me espera, a máquina com a folha no rolo, o capítulo para começar. Desde que me tornei um forçado do escrever, para mim acabou o prazer da leitura. O que eu faço tem como fim o estado de espírito desta mulher sentada na cadeira de braços enquadrada pelas lentes do meu óculo, e é um estado de espírito que me está proibido.
Todos os dias antes de me pôr a trabalhar olho para a mulher na cadeira: digo para comigo que o resultado do esforço inatural a que me submeto ao escrever deve ser o respiro desta leitora, a operação da leitura transformada em processo natural, a correspondente que levas as frases a roçar o filtro da sua atenção, a imobilizarem-se um instante antes de serem absorvidas pelos circuitos da sua mente e desaparecem convertendo-se nos seus fantasmas interiores, no que nela é mais pessoal e incomunicável.


Legenda: A Leitura de Bridget de Peter Samuelson

OLHAR AS CAPAS


Era Porto e Entardecia
De Absinto a Zurrapa
Dicionário de vinhos e bebidas alcoólicas em geral na obra de Eça de Queiroz

Dário de Castro Alves
Capa: Rogério Petinga sobre aguarela de Júlio Resende
Pandora, Lisboa, 1995

- My dear, está visível? – perguntou Miss Sarah, à porta.
- Ah sim! Podia entrar. Uma gotinha de gin, Miss Sarah?
O rosto da inglesa clareou-se de prazer: Uma gotinha. Um quase nada. Bastava! Com água. Era Old Tom, não? Só mais uma gotazinha. Just a little drop! That will do. Thanks.
Sentara-se, bebia o seu gin, devagar, com concentração. E repetia com devoção a sua máxima muito inglesa:
- Um estimulantezinho é a saúde da alma.

Em A Tragédia da Rua das Flores

NÃO É O OUTRO


Não é o Outro que tu buscas? Sim,
a explosão dos tais espelhos. Sei
também que olhar esses teus olhos
provoca as miragens – o deserto.
Perto daí estava o estrangeiro,
e as veredas abriam-se sem medo.
Recordas a viagem, ida sem volta,
onde os poemas ferviam já em leite.
Azedo tu estavas, meu escriba,
os comboios povoavam a escuridão
e, de encontrão em encontrão,
tu sorrias à viagem. Lá longe,
no planalto em chamas,
os índios perguntavam pelo livro.

Eduardo Guerra Carneiro em A Noiva das Astúrias

Legenda: desenho de Carlos Ferreiro tirado de A Dama das Astúrias

sábado, 26 de janeiro de 2019

POSTAIS SEM SELO


É demasiado o que há para contar. E o que é demais torna-se exíguo.

Dinis Machado em O Lugar das Fitas

Legenda: pintura de  Massimo Marchetti 

LEITURAS


Terminamos hoje as Leituras, que iniciámos a 15 de Setembro de 2018,  do Volume IX dos Dias Comuns de José Gomes Ferreira.
Tal como então dissemos, os Dias Comuns têm vindo a perder aquela fressura do inventar dos dias que o Zé Gomes emprestou nos primeiros volumes já publicados.
Ele reconhece:
«Cada vez escrevo com maior dificuldade».

TALVEZ PARA A SEARA, TALVEZ PARA O LISBOA...



28 de Agosto de 1970

O José Cardoso Pires telefonou-me. Quer um artigo meu para o Diário de Lisboa.
- O suplemento literário é muito mau e quero transformá-lo…
Estou de férias, pá. Vamos a ver se consigo arranjar coragem para isso.
Entretanto ele ia dizendo: O Carlos critica, critica, mas nunca me manda um artigo…

1 de Setembro de 1970

Morreu Mauriac. Dos seus romances sempre extraí esta visão: o cristianismo não era um produto da bondade dos homens, mas da sua maldade ingénita. Se os homens fossem bons não precisavam de Cristo.

2 de Setembro de 1970

Passei o dia a escrever um artigo, talvez para a Seara Nova, talvez para o Diário de Lisboa…
Cada vez escrevo com maior dificuldade.
Ainda bem.

José Gomes Ferreira em Dias Comuns Volume IX

OLHAR AS CAPAS


Era Tormes e Amanhecia
Dicionário Gastronómico cultural de Eça de Queiroz
2º Volume

Dário de Castro Alves
Capa: A. Pedro
Livros do Brasil. Lisboa, 1982

- Ai, filha! As mulheres querem-se como as peras, maduras e de sete cotovelos. Então é que é chupá-las!
Os padres gargalharam; e, alegremente, acomodaram-se à mesa.

Em O Crime do Padre Amaro

UMA VIDA UM BOCADO ATRIBULADA...


Na entrevista que Luiz Pacheco deu a João Pedro George fala-se do livro «Mano Forte», dezassete cartas que Luiz Pacheco escreveu a António José Forte:

E o livro Mano Forte, a correspondência para o António José Forte?

Quem conheça um pouco da minha vida sabe que eu tive uma vida  atribulada, com fugas de casas, de terras, de mulheres, de calotes e cobradores, da polícia e até dos ladrões, de ambientes… eu sempre tive o cuidado, quer em Setúbal, quer nas Caldas da Rainha, quer na Macieira, quando aparecia uma ameaça de ser preso ou ter que mudar rapidamente de casa, de não andar carregado com dossiers cheios de tralha… ficou-me muita tralha perdida para aí… ainda bem que ficou…

Mas gostas do resultado final do livro?

Dali não vem mal ao mundo. Podia vir se isto fosse uma edição que não tivesse venda. Isto é muito cuidado. Se teve venda alguém ganhou, ganhou a tipografia, ganhou a fábrica de papel, ganhou também o editor… Eu tenho uma certa cagança nisto. Repara, eu estou aqui no quarto, não saio à rua há mais de um ano e de repente estou na montra da FNAC… é uma maneira de sair daqui.

Lembras-te de ter escrito aquelas cartas e aqueles postais?

Não me lembrava de nada. Publiquei cartas minhas para na cadeia do Forte de Caxias e do Forte para mim no Pacheco versus Cesariny. Isto é nem mais nem menos o resultado de um gajo que teve uma vida fodida, ou variada, salta de Lisboa para Setúbal, de Setúbal salta para as Caldas da Rainha, salta para Almoinha, Sesimbra, salta para Vieira do Minho. As cartas também são para vários sítios porque como o Forte era funcionário das bibliotecas itinerantes andava por Vieira do Minho, Portalegre, Santarém, Tomar…

Qual a memória que guardas do António José Forte?

O que não está aqui feito e também agora não interessa fazer era valorizar, dar o seu justo valor à figura do Forte. Eu tentei convencer o Bernardo Sá Nogueira... não quis, achou que não… O Forte nunca foi um gajo de se evidenciar muito, de se por em bicos de pé… é claro que este livro era uma boa oportunidade de chamar a atenção para o Forte… Olha, não quero falar de mortos. Aqui no lar já há muitos mortos. Aqui está tudo morto. O gajo da cadeira de rodas… Quando passa aqui o cortejo, à hora de almoço, à hora de jantar…

Como é que esta correspondência aparece passados tantos anos?

Um tipo sabe que fulano, António José Forte, por exemplo, guardou coisas que lhe mandou, cartas e postais, guardou, morreu, foi parar às mãos de alguém e depois aquilo representa um valor… e então vendem… depois aparece um urubu mais categorizado, com outra perspectiva empresarial e faz a edição. Eu em princípio não posso estar contra isso. De qualquer forma, este livro é uma golpada, é de rabo à mostra… repara, é uma edição de 1000 exemplares a um preço, mais 100 a outro preço, numerados, com mais 30 a outro preço, numerados também, uns em romanos e outros em árabe. É o intuito do alfarrabista a valorizar as cartas que lá tem. Seja como for, o livro está cheio de disparates. Passaram a vida a foder-me.

Como por exemplo?

O título, desde logo o título. Eu não conheço as cartas nem os postais, mas duas dezenas de cartas e três postais nunca podem ser “cartas fortes”, que era como o Bernardo, no início, lhe queria chamar… há uma carta maior, mas o resto são tudo cartas pequeninas… O Bernardo Sá Nogueira diz sobre estes postais que era “escrita premeditada no pressuposto de publicação”. Isto é um disparate, é a armar em esperto. Quem vê os postais que vêm ali, em fax-simile… então um gajo escreve um postal destes a pensar que vai ser publicado? Eu agora quase não escrevo postais com o objectivo de não serem publicados. Escrevo muito poucos postais e cartas, então, é um caso sério. Aqui já não é o interesse amigo de guardar um papel de um gajo que lhe mandou, aqui é já o interesse meramente mercenário de fazer dinheiro com o papel. No gesto de guardar cartas há uma certa afectividade ou interesse ou coisa que o valha. Um gajo que está numa cadeia, num hospital, numa aldeia, se comunica com alguém, se gosta de comunicar, a carta é um derivativo. Ainda mais nessa altura, no tempo do antigamente, do fascismo, a carta era uma expressão livre, claro que os gajos muitos cautelosos nem cartas nem postais escreviam. Agora eu escrevia imenso… Este livro é uma golpada. É evidente. Por exemplo, a fotografia na capa… é uma maluqueira como outra qualquer… Dá ideia que eu é que sou um exibicionista, que gosta de vir nas capas… é para chamar, para vender mais… Isto faz vender. A fotografia e o nome fazem vender…

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

POSTAIS SEM SELO


O que de mais importante temos para dizer uns aos outros nem sempre o dizemos em voz alta,

Frase lida numa crónica de José Tolentino Mendonça.

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.

O QU'É QUE VAI NO PIOLHO?


A Matiné das Duas

Na penumbra da pequena sala talvez o milagre
fosse um gato preto que miasse
ou uma mulher loura
que cantasse
uns blues vagamente sinceros
e se decidisse depois por um streap-tease de músculos
hermafroditas.
Mas tudo parece de cartão.
Ver um filme às duas em ponto da tarde
é como entrar
num drama de papéis higiénicos
para doentes do sido.

Quem pode habitar este pulmão
sem ar
e ouvir saltar a tosse
como rãs da secura para o veneno do mundo
em celuloide?

Não sentimos sequer uma perna avançar
sonâmbula,
dormente pelas agulhas do desejo
ou o olhar aceso no escuro
dum rosto
que o desespero
transforma numa visão celeste,
quase inebriada.

É o tempo do limbo das lamas solitárias,
sentadas, em princípio da tarde
de má vida,
p tempo dos animais quietos, subterrâneos,
à espera.
Depois virá correndo, veloz, essa inocente droga
que te leva a sonhar
com um suicídio discreto,
de veludo puído,
descoberto duas horas depois
ao reacender das luzes,
pelos outros quatro ou cinco
que continuam vivos
como tu.

Armando Silva Carvalho em Lisboas

À CONVERSA


Mas, descontada a terminologia, foi sempre mantendo uma atitude crítica em relação ao modo como a literatura se foi tornando indistinguível de outros produtos de consumo. E saberá do que fala, uma vez que foi técnico de publicidade.

A grande tragédia da minha vida foi ser publicitário. Digo isto muito seriamente. Uma vida que fui obrigado a viver de forma...

Esquizofrénica?
           
Exactamente, a palavra é essa. Nessa altura, a publicidade era vista pelos bem pensantes como um trabalho quase de prostituição. O facto é que não consegui arranjar emprego com o curso de Direito, e também não me interessava muito ser advogado. E na função pública estava proibido de trabalhar por razões políticas. Eu achava que um dia poderia ir para a diplomacia. Via o Saint-John Perse, esses tipos, o Paul Claudel, e achava que era o que me convinha. Sentava-me a uma secretária e tinha tempo para fazer versos. Não fazia mais nada, só versos, e andava com uma faixa ao peito. É ridículo, mas é verdade que pensava nisto. Também podia ter ido para Medicina. E se calhar devia ter ido. Houve um professor que insistiu muito comigo, mas acabei por ir para Direito. Sempre com a expectativa de que um dia o Salazar ia morrer – caía de uma cadeira qualquer –, e depois havia liberdade e eu podia ir para a diplomacia.

Entrevista de Luís Miguel Queirós a Armando Silva Carvalho em Público 1 de Junho de 2017

OLHAR AS CAPAS


Era Tormes e Amanhecia
Dicionário Gastronómico cultural de Eça de Queiroz
1º Volume

Dário de Castro Alves
Prefácio: Jorge Amado
Capa de A. Pedro
Livros do Brasil

Diante do louro frango assado no espeto e da salada que ele apetecera na horta, agora temperada com um azeite da serra digno dos lábios de Platão, terminou por bradar: ”É divino!”.

De A Cidade e as Serras

NOTÍCIAS DO CIRCO


Marcelo não deixa de surpreender.
Cada intervenção que faz seja sobre o que quer seja tem um objectico nem sempre muito claro.
Os portugueses estão-se borrifando para as comemorações do 10 de Junho dê-se ao a  esse dia a designação que lhe queiram dar.
Tal como, Cavaco Silva enquanto presidente, disse: «É o Dia da Raça!»
Mas soube-se ontem que Marcelo designou João Miguel Tavares, diz-se jornalista, também humorista, para presidir à comissão das comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portugueses.
Se ele não vier dar uma explicaçãozinha professoral, não se compreende os motivos da escolha.
Mas, grosso modo, não abona nem o Presidente da República nem o tal dia.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

POSTAIS SEM SELO


Como é que o cinema português resiste aos seus detractores e a todos aqueles que objectivamente trabalham para o tornar inócuo ou inexistente.

António Guerreiro no Público

Legenda: rodagem de Trás-os-Montes de Margarida Cordeiro e António Reis

O HINO OFICIAL DOS CARTEIROS


-Trouxe-te de Santiago uma prenda muito especial. 0 «Hino oficial dos carteiros».
Juntamente com estas palavras, a música de Mister Postman pelos Beatles expandiu-se pela sala desestabilizando as carrancas de proa, revirando os veleiros dentro das garrafas, fazendo ranger os dentes das máscaras africanas, despetrificando os tijolos, estriando a madeira, amotinando os rendilhados das cadeiras artesanais, ressuscitando os amigos mortos inscritos nas vigas sob o tecto, fazendo fumegar os cachimbos há muito tempo apagados, tocar viola às barrigudas cerâmicas de Quinchamali, emanar perfumes às cocotes da Belle Époque que forravam as paredes, galopar o cavalo azul, e apitar a grande e vetusta locomotiva sacada a um poema de Whitman.
E quando o poeta lhe pôs nas mãos a capa do disco nos braços, como se lhe confiasse a custódia de um recém-nascido, e começou a dançar agitando os seus lentos braços de pelicano tal como os despenteados campeões dos bailes de bairro, marcando o ritmo com aquelas pernas que frequentaram a tepidez das coxas de amantes exóticas ou aldeãs e que pisaram todos os caminhos possíveis da terra e  os inventados pela sua própria prosápia, dulcificando as pancadas da bateria com a trabalhosa mas decantada ourivesaria dos anos, Mário soube que vivia agora um sonho: eram os prolegómenos de um anjo, a promessa de uma glória próxima, o ritual de uma anunciação que traria aos seus braços e aos seus lábios salgados e sedentos a buliçosa saliva da amada. Um anjinho de túnica em chamas – com a doçura e parcimónia do poeta – garantia-lhe umas rápidas núpcias. O seu rosto engalanou-se com essa fresca alegria, e o esquivo sorriso reapareceu com a simplicidade de um pão sobra a mesa quotidiana. «Se um dia morrer – disse para consigo, - quero que o céu seja como este instante.»

Antonio Skármeta em OCarteiro de Pablo Neruda


CONTINUEM A DAR O MESMO...


Deixo a televisão ligada e regresso horas depois, ao entardecer, e não me surpreende minimamente que ainda continuem a dar o mesmo.

Enrique Vila-Matas em Diário Volúvel

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

OLHAR AS CAPAS


O Meu Amigo Maigret

Georges Simenon
Tradução: Mascarenhas Barreto
Capa: Lima de Freitas
Colecção Vampiro nº 138
Livros do Brasil, Lisboa s/d

- Estava à porta do seu estabelecimento?
- Sim, meu comissário.
Era inútil repreendê-lo. Por quatro ou cinco vezes, Maigret tentara a dizê-lo «sr. comissário». Mas que importância tinha isso? Que importância tinha tudo aquilo?
- Viu um carro cinzento, um «Grande sport» para por um instante e descer dele um homem, quase em andamento, não foi isso que declarou?
- Sim, meu comissário.
- E esse tipo, para entrar na sua boite, teve de passar junto de si, chegando até a empurra-lo ligeiramente. Ora, sobre a porta, há um letreiro luminoso a néon.
- É de cor violeta, meu comissário.
- E então?
- Então, nada.
- Lá porque o seu letreiro é violeta não pôde reconhecer o indivíduo que, um momento depois, passando o reposteiro de veludo, despejou o revólver sobre o seu barman?

O ASSESSOR PARLAMENTAR MAMADOU BA



Ferreira Fernandes no Diário de Notícias-on line

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

BALANÇO DESTE ANO QUE NÃO TERMINAREI


17 de Agosto de 1949

Os suicidas são homicidas tímidos. Masoquismo em vez de sadismo.

O prazer de fazer a barba depois de dois meses de reclusão –de me barbear a mim próprio. Diante de um espelho, num quarto de hotel, lá fora o mar.

É a primeira vez que faço o balanço de um ano por concluir.
No meu ofício, portanto, sou rei.
Em dez anos consegui tudo. Quando penso nas hesitações de outrora.
Na minha vida, sinto-me desesperado e perdido como não me sentia então. Que acrescentei? Nada. Ignorei durante alguns as minhas taras, vivi como se elas não existissem. Fui estóico. Era heroísmo? Não, não me custou. E depois, ao primeiro assalto da «inquietação angustiosa», caí de novo nas areias movediças. Debato-me desde Março nelas. Não têm importância os nomes. Serão por acaso mais que nomes dados pela sorte, nomes fortuitos – esses, ou outros? Resta que sei agora qual é o meu maior trunfo – e a tal triunfo falta a carne, falta o sangue e falta a vida.
Nada tenho a desejar nesta terra, excepto aquilo que quinze anos de insucesso excluem a partir deste momento.
Eis o balanço deste ano por terminar e que não terminarei.

Espantas-te de que os outros passem a teu lado e não saibam, quando tu p+roprio passas ao lado de tanta gente sem saber: Não te interessa qual o pesar de cada um, o seu cancro secreto?

Cesare Pavese em Ofício de Viver

OLHAR AS CAPAS




As Estações da Vida

Agustina Bessa-Luís
Prefácio: António Barreto
Capa: Carlos César Vasconcelos sobre fragmento de Le Train dans la neige
           De Claude Monet
Relógio d’Água, Lisboa, Outubro de 2018

A viagem de comboio tinha um cunho espirituoso. Sempre se encontravam pessoas raras, porque a província preservava o indivíduo e conservava o seu dialecto e os seus costumes. Eram recoveiras, caixeiros-viajantes, gente do negócio e do contrabando, estudantes em férias ou que as tinham terminado, padres e professores; e um sem-número de passageiros precavidos com um farnel de pombos estufados em vinho do Porto e cavacas de Resende. Comida de gente regalada e antiga como havia na província profunda.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

NOTÍCIAS DO CIRCO


Em busca de leitores e audiências, o vale tudo já há muito invadiu jornais e televisões.
Esta capa do Público de domingo 13 de Janeiro é, simplesmente, miserável.
Ao nível do melhor jornalismo de sargeta que por aí pulula, no mesmo dia em que, também em 1ª página, anuncia o regresso desse comentador de triste figura que dá pelo nome de António Barreto.
Lê-se que Cristina Ferreira tem «Portugal a seus pés».
Onde vais jornalismo de referência que dizias que eras?
O Dudu, no café da Dona Luzia, diz que a dita personagem é «pobre de boa».
O Goucha, na TVI, convida um nazi para dizer alarvidades.
Estamos nisto!
Até onde?
Até quando?

ESTA VONTADE DE ME SALVAR


Datada de 11 de Agosto de 1953, uma carta desesperada, entre tantas outras, de António Ramos Rosa para Jorge de Sena.
Uma aguda solidão, problemas de saúde, sem meios económicos para uma qualquer assistência médica, e, pelo meio o germinar de uma obra notável de um dos maiores intelectuais portugueses.
Tenham em atenção que a Assírio & Alvim já publicou o 1º volume da sua Obra Poética, uma edição organizada e revista pelo poeta Luís Manuel Gaspar, com a colaboração da viúva do poeta, a poetisa Agripina Costa Marques, e da filha, Maria Filipe Ramos Rosa. 

Oxalá eu estivesse a entrar numa fase madura de consciencialização e V. me pudesse ser de algum valimento. Eu sou hoje alguém que, com todo o corpo e toda a alma, desejo ser sadio. Integral, consistente, elementar. Não por capricho de intelectualidade blasée, mas por imperativos vitais e morai, por necessidade de salvação. Uma conversão radical se há-de dar, no meu corpo ou no meu espírito, ou em ambos, ou então a morte purificadora. O seu bom conselho de não me deixar devorar pela solidão e de tomar posse dela tem sido possível de certo modo, dentro das minhas fracas possibilidades, mas o que se impunha era uma matéria real em que essa posse não se volatizasse a todo o instante. Infelizmente a minha saúde não tem melhorado e, desprovido de meios económicos e qualquer assistência médica, estou simplesmente entregue a esta tensão desesperada de superação, a esta vontade de me salvar.
Tenho os números de Critique que me enviou quase todos lidos. É uma revista indispensável, magnífica. Talvez seja muito triste confessar-lhe que as verdadeiras férias e alegrias deste Verão foram para mim a leitura dos excelentes ensaios que nelas encontrei. Dentro de dias lhas enviarei.

ADIAMENTO



Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjectividade objectiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...
Esta espécie de alma...
                                Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje qual é o espectáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...
Sim, o porvir...

Álvaro de Campos em Poesias

domingo, 20 de janeiro de 2019

NOTÍCIAS DO CIRCO


A 3 de Dezembro do passado ano, o Público estava convencido que Armando Vara tão cedo não transporia os portões de uma prisão.

Havia uma série de habilidades em curso que possibilitariam que Armando Vara continuasse a passar pelos intervalos da chuva.

Mas um recurso apresentado ao Tribunal Constitucional foi rejeitado e, desde quarta-feira é o recluso 49 do Estabelecimento Prisional de Évora onde cumprirá pena de cinco anos de prisão no âmbito do processo «Face Oculta».

O catequista Marques Mendes disse na SIC:

«Armando Vara é apenas uma ponta do icebergue de uma rede muito poderosa que durante 20 anos, ou mais, existiu em Portugal, uma rede liderada por Sócrates, Vara e Carlos Santos Silva, que começou a operar ainda no tempo de Guterres, nos anos 90 e que foi até ao fim do consulado de Sócrates».

E nos finalmente proferiu:

«Armando Vara, para ajudar a destruir a CGD e o BCP, não teve apenas o aval de Sócrates. Teve também a aprovação do Banco de Portugal».


A Alexandra, personagem do José Cardoso Pires, sempre disse:

«Isto não é um país, é um sítio mal frequentado».

Teremos cadeias suficientes para todos os armandos varas que pululam por aí?