segunda-feira, 29 de abril de 2024

OLHAR AS CAPAS

 

Episódios Dramáticos da Inquisição Portuguesa

António Baião

Capa: Acácio Santos

Colecção Seara Nova nº 8

Seara Nova, Lisboa, Dezembro de 1972

No 1º de Outubro de 1885, deu entrada nos cárceres de custodia da inquisição de Coimbra o maior vulto do Portugal de então, o jesuíta António Vieira-

Recluso durante 44 dias, tanto gemeu e pensou que não teve outro remédio senão pedir que o transferissem para o seu colégio ou o internassem em qualquer convento de religiosos. O cárcere do Santo Ofício de Coimbra era húmido e frio, muito exposto ao vento norte, e para mais Vieira tinha sido preso ainda convalescente, já lá dentro tivera três ameaças de recaída, com febre e hemoptises e quando assim era no Outono, que faria em chegando os rigores do Inverno?!

Além disso precisava de quem lhe escrevesse a alegação da sua inocência, o que ele não podia fazer com a perspectiva constante duma ética, como então se dizia, que o ia minando, e precisava duma copiosa livraria, principalmente de teólogos e juristas, para o auxiliarem nessa elaboração.

Nada disso porém lhe foi concedido e o Padre António Vieira conhecido do leitor ilustrado pelos seus sermões tão ortodoxos e pelas sua carta tão morais, estava ali encerrado, como o último dos blasfemos que negasse a divindade de Jesus ou conspurcasse a hóstia consagrada!...

AO MEU PAI, AOS 2626 PRESOS POLÍTICOS DO FORTE DE PENICHE. PELA MEMÓRIA FUTURA

Um dos nossos mais antigos repórteres fotográficos, o Leonardo Negrão, tem por hábito publicar, a preto e branco no Facebook, imagens dos camaradas de redação, atuais e antigos, em momentos de trabalho ou convívio, numa espécie de álbum digital a que chama “Para memória futura”.

Sabemos que as memórias são diferentes de pessoa para pessoa; o que uma acha relevante, outra pode nem ter notado. Sabemos também que um país tem tantas memórias como cada um dos seus cidadãos, e que há memórias coletivas de determinados grupos de pessoas que partilharam experiências comuns. Todas estas, incluindo as das fotografias do Leonardo, constituem a história e reforçam as raízes de uma nação.

Cada vez que há tentativas de desvalorizar, contrariar ou mesmo apagar algumas dessas memórias, quem as guarda reage, naturalmente, com alguma exaltação. Sejam as daqueles que, por exemplo, viveram na ditadura sem sobressaltos, sejam as dos que nunca viveram de outra forma nessa época senão em sobressalto. Ambas merecem respeito e compreensão, mesmo sabendo que todos fizeram escolhas.

Por tudo isto, quando se olha para os 2626 nomes de ex-presos políticos talhados numa pedra à entrada do Forte de Peniche, antiga cadeia do Estado Novo, transformado em Museu da Resistência e Liberdade, inaugurado neste sábado, e se pensa no que sofreu cada um deles e delas (há duas mulheres, cuja história é contada, nesta edição, pela nossa jornalista Alexandra Tavares-Teles) qualquer silêncio que se pretenda impor sobre as memórias destas pessoas, das suas famílias, é, tão-só, indigno.

Não digo isto porque entre esses 2626 nomes está o do meu pai, nem porque só quase adulta me descobri, em memórias escritas num diário, como a menina de 3 anos que acordava todos à noite com os seus gritos de pesadelos e obrigava todos os que com ela compartilhavam uma casa para filhos de presos políticos a procurar, antes de adormecer, “animais maus” debaixo da sua cama.

Nesse diário, escrito por uma mulher que se tornou depois pedagoga e estudiosa destes traumas dos filhos da ditadura, a interpretação é de que os tais bichos simbolizavam os PIDES que eu tinha visto a irem buscar o meu pai a casa.

Não sei. Sei que os pesadelos não me deixaram muitos anos, mas aprendi a enfrentá-los e a vencê-los. Acredito que outros filhos e pais de presos políticos também o tenham conseguido. A maioria dos nomes registados na tal pedra  à entrada da antiga cadeia - que alguém, que não respeita a memória, queria transformar em hotel - são de portugueses comuns, mas também há cerca de uma centena de estrangeiros, espanhóis principalmente, mas também angolanos, moçambicanos, goeses e até alemães. Todos ali estiveram encarcerados pelo seu pensamento, porque escolheram enfrentar os monstros.

É essa resistência que, individual ou coletiva, jamais deverá ser esquecida - mesmo se há quem, como é caso dos representantes da Iniciativa Liberal na manifestação do 25 de Abril na Avenida da Liberdade, não tenha encontrado nada mais apropriado como palavra de ordem, num dia em que se celebra o fim de um regime que perseguiu, torturou e matou comunistas (ou os que eram tidos como tal), e num local onde muitos dos sobreviventes dessa perseguição se reúnem a celebrar, que “comunismo nunca mais”.

Num país no qual uma lei aprovada em 1997 para permitir aos presos políticos da ditadura, e aos que viveram na clandestinidade, pudessem contabilizar esse tempo para efeitos de pensão nunca foi regulamentada, o mínimo de reparação devida a quem gastou anos, por vezes décadas da sua vida, nos calabouços do Estado Novo é respeito pela sua coragem e sacrifício.

Além da sua disruptiva e oportuna declaração sobre o dever de reparação histórica pelos desmandos do Império português, Marcelo Rebelo de Sousa parece ter sentido a necessidade de sublinhar que esse respeito é um fator essencial da preservação da memória coletiva do país.

O Presidente da República podia só ter estado na inauguração oficial do Museu da Resistência, proferido palavras de circunstância. Mas escolheu esperar a inauguração protagonizada pelas centenas de resistentes, ex-presos políticos e respetivas famílias, que decorreu mais tarde.

Quem o viu, de cravo vermelho ao peito, à porta do Forte de Peniche - a mesma porta por onde, 50 anos antes, saíram em liberdade os últimos detidos -, seguindo depois, anónimo (não quis câmaras), na massa anónima que entoava a Grândola Vila Morena, sentiu que também ele, humildemente, queria render homenagem a quem ali tanto sofreu. E cantou com eles a música histórica de Zeca Afonso. Para e pela a memória futura.

Valentina Marcelino, hoje, no Diário de Notícias

Legenda: fotografia da Ordem dos Arquitectos Secção Regional Sul.

O memorial, com 21 metros de largura, 4 metros de altura e com cerca de 40 toneladas, localiza-se na entrada interior da fortaleza e contém a inscrição de 66 mil carateres que escrevem os nomes de 2510 presos políticos.

No topo do memorial, está gravada uma frase do historiador e escritor António Borges Coelho, também ele preso político em Peniche:

"Nomeai um a um todos os nomes
Lutaram e resistiram
A liberdade guarda a sua memória nas muralhas desta fortaleza"

O memorial com o nome de todos os que por ali passaram, foi um projeto desenvolvido pelo Atelier AR4 Arquitetura e executado pela Frademetalúrgica.

REVOLUÇÃO

Tenho uma revolução,
francesa, perfumada,
que entre 68 e 75 me levou
pela mão, em festa,
a conhecer os mistérios
do mundo.
Anda, desde então,
encavalitada pelas estantes,
entre despojos da memória
e insones sonhos por cumprir,
poemas desesperados,
amores antigos e já esquecidos,
vagos distúrbios de consciência
e muitas outras coisas
espalhadas
que não vale a pena enumerar.
E guia-me
pelo labirinto do devir,
a livrar-me da ameaça do tédio
nosso de cada dia.

Adolfo Luxúria Canibal

Nota do Editor: este poema foi copiado do jornal Público.

Poesia Pública é uma iniciativa do Museu e Bibliotecas do Porto comissariada por Jorge Sobrado e José A. Bragança de Miranda. Ao longo de 50 dias publicaremos 50 poemas de 50 autores sobre revolução.

Adolfo Luxúria Canibal, jurista, fundou os grupos Mão Morta e Mécanosphère, de que é vocalista e letrista, tendo mais de 30 discos editados. Criou espectáculos de spoken word e de dança, performances neuro-áudio-visuais, filmes de videoarte e foi actor em cinema e teatro. Publicou uma dezena de livros.

Público, 1 de Abril de 2024

 



domingo, 28 de abril de 2024

OS DIAS SEGUINTES A ABRIL 25


 

 28 de Abril de 1974

 Os portugueses viviam o seu primeiro domingo em Liberdade.

 Na 1ª página do “Diário de Lisboa” reproduzia-se um “poster” de João Abel Manta.

«Esta é a reprodução de um “poster” que apresentamos nas páginas centrais da nossa edição de hoje. O “poster” alusivo ao actual momento político português, é da autoria de João Abel Manta, artista que, por motivos demais conhecidos, há tempo não publicava qualquer trabalho no nosso jornal.»

Na redacção do Diário de Notícias, as janelas ainda não tinham sido escancaradas. Na 1ª página podia ler-se:

 “Serenidade e expectativa nos territórios do Ultramar”

 Na 7ª página um telegrama da “France Press”, proveniente de Montreal, revelava que Agostinho Neto, em nome do MPLA, não aceitava a proposta do General Spínola com vista à formação de uma Federação. O MPLA classificava a proposta como fascista, nazi e salazarista e reafirmava que a luta sempre foi por uma libertação completa e, apenas, neste princípio se dispunha a encetar negociações com Portugal.

 Na página 3, “A Capital” avançava que tudo levava a crer que o 1º de Maio iria ser decretado, pelas Forças Armadas, Feriado Nacional. O pedido fora formulado por Francisco Pereira de Moura, na reunião que, na véspera, a CDE mantivera com o General Spínola.

Na pág. 14 era publicada esta fotografia.

 A legenda dizia que “um elemento anónimo do 1º Comité de Acção Popular, baptiza a ponte sobre o Tejo.”

 O corpo da notícia esclarecia que o “Comité de Acção Popular” nascera espontaneamente, e propunha-se realizar uma série de acções com vista à eliminação de símbolos do regime derrubado a 25 de Abril.

A alteração do nome de Ponte Salazar para Ponte 25 de Abril era o primeiro desses actos.

A propósito deste acontecimento, um oficial, não identificado, da Junta de Salvação Nacional, declarou: “estamos aqui, não para desrespeitar os mortos mas pare defender os vivos.”

 Na Junta de Salvação Nacional, também as janelas estavam por escancarar!


Esta é a capa do nº1 do ano I de A Época.

Barradas de Oliveira é demitido de director do jornal Época, que ontem não saiu para as bancas. 

Depois de populares terem, anteontem, tentado destruir as instalações do jornal, que era um sustentáculo da ditadura, o Conselho de Redacção nomeou José Manuel Pintasilgo, chefe de redacção de ex-Época, como director do jornal, que passa, a partir de hoje, a publicar-se com o nome de A Época.

Começam a esboçar-se os primeiros sinais de camaleonismo.

Atente-se no final da sua declaração de princípios:


Uma notícia quase perdida no volume noticioso dos dias:

«Os desertores do Exército apelam para uma amnistia que lhes permita regressar a Portugal.»

Destaque na 1ª página de O Século para a prisão de Silva Pais, o tenebrosos ex-director da PIDE-DGS.

O OUTRO LADO DAS CAPAS


Há uma profunda frase de Cesare Pavese:

«Não nos lembramos de dias, recordamos momentos. A riqueza da vida está nas memórias que esquecemos.»

Agora é o tempo de, ainda, amiúde ouvir: «25 de Abril, sempre!»

A Biblioteca da Casa está cheia de alguns livros que falam do antes e do depois de Abril.

O meu pai com algum ritmo de tempo, lembrava em finais de conversa:

«Tens de ler tudo, mas mesmo tudo. Até autores de que não gostas, que são contrários aos gostos, às ideias que defendes. Não te podes convencer que, estando no meio, consegues aperceber-te dos dois lados, não. E repetia: ficares no meio é como dizer «fuzilem à vontade, senhores!»

Tudo isto para dizer que sentir o 25 de Abril é ler a sua história, conhecer grande parte dos quotidianos, dos dias do antes e do depois.

Nestes últimos dias têm aparecido no Olhar as Capas, livros sobre o 25 de Abril, alguns não tão favoráveis à data, mas fazem parte dos costumes que orientam as vidas.

Já os deveria ter trazido aqui. Os que apareceram não completam, nem pouco mais ou menos, pelo que o processo de ir publicando esses livros, irá prosseguir.

Para se poder dizer «25 de Abril, sempre!» é preciso ler sobre a tal data que nos deu a possibilidade, apesar de tudo, de sermos gente.  

Legenda: Contra capa de 25 de Abril Imagens.

OLHAR AS CAPAS


 25 de Abril Imagens

Manuel S. Fonseca, Osório Mateus, Jorge Molder

Rui Simões, José Manuel Costa, João Lopes, Luís de Pina

José de Matos-Cruz

Capa: João Botelho

Edição da Cinemateca Portuguesa, Lisboa, Abril de 1984

Teria sido preciso que um homem de génio tocasse as imagens da Revolução de Abril para que, de mero documento de um processo político, se transcendessem em saga, para que os factos se aproximassem da lenda. Mas, pensando bem, para que há-de um homem de génio tocar um tempo e uma história sem heróis?

sábado, 27 de abril de 2024

OS DIAS SEGUINTES A ABRIL 25


 27 de Abril de 1974

A  imprensa diária continuava a publicar notícias, fotografias, reportagens sobre o Movimento dos Capitães, a libertação dos presos políticos, o desmantelamento da PIDE/DGS, bem como reacções internacionais aos acontecimentos verificados no país.

 Título da 1ª página do “Diário de Lisboa”:

“170 Pides nas celas de Caxias.”

Em baixo, à direita, uma fotografia com a seguinte legenda:

“Máscaras de medo, de terror caracterizavam os Pides ao darem entrada nos camiões que os conduziram da Rua António Maria Cardoso para a prisão de Caxias – medo e terror que durante largos anos se comprazeram em espalhar no povo indefeso e nos estoicamente lutavam para restituir a Portugal a justa liberdade”.

Neste sábado, o “Expresso” fazia, após os acontecimentos do dia 25, a sua primeira edição. 

Em editorial declarava que “não precisamos fazer meia volta como tantos outros (…) continuaremos, portanto, naturalmente, pelo mesmo caminho. Aceitando sem reticências o desafio necessário que a nova situação política nos lança. Participando na batalha contra os outros necessários desafios. Lutando por que o país e cada um dos seus cidadãos saibam adaptar-se e beneficiem da mudança que já estamos a viver.”

Também em editorial, o “Diário de Notícias” dedica-se, à moralidade, ao perfeito cinismo, ou o começar de pôr água na fervura do caldo, género portem-se bem meninos, que isto não é o da Joana:

“O que os Portugueses não devem entretanto perder de vista é que para se ter liberdade é preciso merecê-la. Cada um de nós tem de provar por si que é digno dela, adquirindo hábitos de tolerância e respeito pelo próximo que andam muito esquecidos. Só por esse modo poderemos triunfalmente refutar o argumento dos que negam ao povo português a maturidade necessária para ser livre”

Na sua página 5 dava conta da romaria que ia acontecendo pela rua onde reside Spínola:

 “Milhares de pessoas de todas as camadas sociais têm-se dirigido à residência do general Spínola, na Rua Rafael de Andrade, dando àquela artéria um movimento sem precedentes. A intenção é sempre, de saudar o presidente da Junta de Salvação Nacional e de lhe manifestar a sua adesão.”

Na sua 1ª página “O Século” noticiava que Mário de Soares partiria de Paris de comboio, estando prevista, para domingo a sua chegada a Santa Apolónia.

Após demoradas negociações, são libertados os presos políticos que se encontravam nas prisões da PIDE. Os presos tinham decidido que ou saiam todos ou não saia nenhum.

Palavras de Hermínio Palma Inácio, ao sair da prisão de Caxias, captadas para uma reportagem publicada na página 5:

 “Isto é maravilhoso!.. Sabemos ainda pouco sobre os objectivos da Junta… Oxalá não seja só uma liberdade de doze meses.”

Noticiava, ainda “ O Século” que grupos de populares invadiram as instalações da Comissão de Exame Prévio, ex-Censura, destruindo mobiliário e vasta documentação e colocava um apelo do capitão Salgueiro Maia, pedindo aos populares que não  destruíssem arquivos de valor histórico inestimável.

Pelas ruas da cidade os populares começavam a caça aos pides, publica-se uma fotografia que ficou para a História. Da notícia retiro este pormenor: “entretanto eram presos vários agentes da DGS entre os quais um morador no Bairro Espírito Santo em Odivelas, que foi denunciado por uma senhora. Trazia uma pistola de guerra nas “roupas íntimas inferiores.”

Em “Ultimas Notícias” referia-se que o embaixador de Portugal no Brasil, José Hermano Saraiva” dirigiu-se pela rádio e televisão à comunidade portuguesa:

“O processo que o país atravessa é pacífico, sem violências, e representa um caminho em busca da solução dos seus problemas, disse.

A página desportiva, falando do regresso da equipa do Sporting, tinha este curioso título: 

A eliminação da Taça das Taças esquecida na Cortina de Ferro por razões óbvias.

O jogo realizara-se em Magdeburgo, na então chamada Alemanha Oriental.

Como os restantes jornais, O Século noticiava o assalto que populares fizeram ao edifício do jornal Época, que não se publicou neste dia, e que obrigou à intervenção de elementos das Forças Armadas.

Face a este incidente, e outros que iam acontecendo, a Junta de Salvação Nacional emitia um comunicado: 

 Noticia “A Capital” que foram demitidos os governadores de Angola, Moçambique e Guiné, nomeados novos comandos para as regiões militares, GNR e PSP, as tomadas de posição de diversos sindicatos, que no Técnico reabria a Associação de Estudantes bem como a reunião da Junta de Salvação Nacional com a CDE, a Sedes, a Convergência Monárquica e directores dos diversos órgãos de informação.

A CDE fazia-se representar por Francisco Pereira Moura, José Manuel Tengarrinha, Herberto Goulart, Pedro Coelho e Gilberto Ramos, a Sedes por Sá Borges, Magalhães Mota, Teodoro da Silva, A Convergência Monárquica por Rodrigo Montezuma, Pedro Paiva Pessoa e João Vaz Serra e Moura.

Exilado no Brasil o Prof. Rui Luís Gomes anunciou o imediato regresso a Portugal.

Na primeira página o “Diário Popular” informava que os bancos reabriam ao público na segunda-feira, enquanto na pág. 17 realçava um comunicado da assembleia da Conferência Episcopal da Metrópole. Os senhores bispos, tão silenciosos em tempo de ditadura, entenderam formular votos para o bem-estar da Sociedade portuguesa.

 Diário Popular dava conta que, em Beja, foi preso pela polícia um homem que ostentava um cartaz a pedir a extinção da PIDE.


A edição do “República” salientava que ainda continuavam à solta, e armados, mais de dois mil agentes da PIDE/DGS.

Na sua agenda de  espectáculos, podia ler-se a seguinte nota:

“Como os nossos leitores se têm apercebido, a programação da RTP foi profundamente alterada, não sendo ainda possível a organização de horários. Aconselhamos portanto a manterem os aparelhos ligados para a captação de qualquer informação importante ao País.”

No meio da alegria generalizada, a notícia da morte do poeta Pedro Oom, fulminado por um ataque cardíaco. O poeta que tinha 47 anos, um pouco menos que o regime deposto, e não resistiu à emoção de ver cair a ditadura.

O OUTRO LADO DAS CAPAS


Não lembro como, quando e onde, terei comprado este exemplar dos Cadernos de Circunstâcia. Com toda a certeza foi antes de 25 de Abril e dentro daquele espírito de que tudo o que fosse contra a ditadura comprava e porque o  meu pai sempre foi da opinião que devíamos ler tudo.

É um caderno composto a stencil.

Nas suas 70 páginas pode ler-se uma frase lapidar de KarlaMarx: «A emancipação dos trabalhadores será a obra dos próprios trabalhadores» e a conclusão que «só nestes termos será possível à classe operária e aos seus aliados apoderarem-se do aparelho de estado instituindo a ditadura do proletariado.»

José Pacheco Pereira, no seu livro «As Armas de Papel» diz que estes cadernos eram produzidos em França, (1967 e 1970) da responsabilidade de Aquiles Oliveira, sediados em Arcueil.

«Era distribuída [entre 1967 e 1970] em França e nos círculos de emigração, e enviada para Portugal através de oficiais da Marinha portuguesa que passavam nos portos franceses (dois dos seus membros, Jorge Valadas e João Freire, tinham pertencido à Marinha) e dos contactos dos membros do grupo com o interior do país. Entre esses contactos contava-se José Leal Loureiro que levava a revista para o Porto, e um conjunto de ligações de José Maria Carvalho Ferreira que transportava a revista para o interior do país no seu ano final. Em Lisboa, distribuíam a revista António Viegas, Artur Pais, Mário Kruger, Carlos Miranda, Ilídio Ribeiro e João Martins Pereira. A revista penetrava também no interior através dos contactos dos estudantes e intelectuais radicais que se deslocaram a Paris nos anos 1968-1970.

Os Cadernos de Circunstância foram a revista mais influente no plano político-intelectual publicada na emigração, introduzindo nos seus textos uma atenção analítica que não era comum, assim como uma aproximação interdisciplinar e uma fundamentação estatística que traduzia as preocupações intelectuais dos seus autores.

A motivação inicial da revista em 1967 resultava da insatisfação com os moldes da oposição ao regime salazarista, quer por parte do PCP quer dos grupos maoistas que tinham sucedido à FAP. Manuel Villaverde Cabral tinha tido a dupla experiência de ambos e entendia que era necessária muito mais «informação objectiva e firmeza ideológica.»

Pacheco Pereira escreve ainda que após a chegada ao poder de Marcelo Caetano, publicaram um panfleto sobra a queda de Salazar da cadeira em Setembro de 1968, que Álvaro Cunhal atacou os Cadernos no seu livro contra o esquerdismo, que a revista influenciou O Tempo e o Modo e que o grupo autodissolveu-se, sem crise nem zanga, depois da publicação do número 7, em 1970.

Na Biblioteca da Casa apenas existe este exemplar do 1º número dos Cadernos de Circunstância.

OLHAR AS CAPAS


Cadernos de Circunstância

Março de 1969, Nova Série, Nº 1.

Alfredo Margarido

Fernando Medeiros

Jorge Valadas

João Freire

Manuel Villaverde Cabral

Edição dos Autores

Paris, Março de 1969

A situação geral portuguesa desde a vinda para o poder de Marcelo Caetano desenha-se agora diante de nós com complexidade crescente decerto, mas também com uma maior clareza; as linhas de força tendenciais afirmam-se com nitidez cada vez maior.

sexta-feira, 26 de abril de 2024

OS DIAS SEGUINTES A ABRIL 25

A fotografia mostra a decisão de Mário Viegas na sua Auto-PhotoBiografia (não autorizada), quando determina que o seu 25 de Abril foi de curta duração.

 No dia 25 de Abril de 1974, quando o Movimento dos Capitães saiu para as rua, já os matutinos estavam em fecho de edição. Alguns ainda conseguiram colocar uma pequena notícia, a informação possível, na 1ª página, mais tarde fariam 2ª e 3ª edições. Os vespertinos tiveram mais desenvolvimento, mas só no dia seguinte, as notícias, as reportagens, os comentários conseguem um outro tipo de desenvolvimento.

Em alguns jornais poderia ler-se a frase histórica: «não terem sido visados por qualquer comissão de censura.

Os acontecimentos ocorridos na véspera são referidos: a rendição de Marcelo Caetano, a apresentação, madrugada alta, através da RTP, da Junta Nacional de Salvação, a rendição da PIDE/DGS, a libertação, em Caxias, dos presos políticos, a partida de Marcelo Caetano e Américo Tomás para a Ilha da Madeira.


Aos poucos, a rotina do quotidiano entra na normalidade.

Caminha-se para os empregos, para as escolas, para as fábricas, os mesmos passos, os mesmos rostos, mas têm uma outra vivacidade, um outro fulgor.

O Diário de Lisboa é o único que puxa para a primeira página a grande notícia do dia: a libertação dos presos políticos.

No miolo da reportagem uma pergunta óbvia, uma resposta com o seu quê daquilo que mais tarde irá acontecer:

- O que vão fazer aos pides, pergunta o repórter ao comandante dos páras.

- Temos que ter compaixão e humanidade para com eles, respondeu-nos o capitão.


Na página 15 do República uma pequena, mas lamentável, notícia dá conta de que, apesar da intervenção dos militares, não foi possível salvar muitos arquivos e documentos da Censura que o povo lançou à rua e foram destruídos.

Aqueles documentos eram parte da nossa história.

Estava lá nesse momento, assisti ao crime, mas como se poderia tê-lo evitado?

Quarenta e oito anos de ódio e repressão sobre um povo, cegam, pesam muito.

Na sua 3ª página “O Século” noticiava que, presidida pelo engº Amaral Neto, e com a presença de 38 deputados, reunira o plenário da Assembleia Nacional.

A sessão demorou quinze minutos e, não mais, como Nacional, voltaria a reunir.

Também em O Século, a primeira fotografia publicada na imprensa da prisão de três pides, passos iniciais do que vai ficar a ser conhecido como a «caça ao pide.»

Num Diário de Noticias, de que não possuímos a data, uma História de Joaquim Santos da Póvoa de Santo Adrião:

«Exm.º Senhor Director-Geral,
Informo V. Exª que ontem, dia 25 de Abril de 1974, vários funcionários faltaram ao serviço, invocando ter ocorrido uma revolução no País.
Esclareço que esta revolução não foi autorizada superiormente, não vendo qualquer justificação para as faltas, tanto mais que o serviço se atrasou consideravelmente.
Como na legislação vigente não estão previstas faltas pelo ocorrência de revoluções, submeto o assunto ao alto critério de V. Exª, na certeza de que o mesmo merecerá a atenção devida.
Lisboa, 26 de Abril de 1974
A Bem da Nação
O Chefe da 3ª Secção
Ambrósio Silva»


OLHAR AS CAPAS


Diário de Uma Revolução

Orlando Neves

Mil Dias Editora, Lisboa, Janeiro de 1978

- O New York Times e a Pravda são os primeiros jornais do mundo a anunciar e a felicitar o povo português pela sua libertação.

- Do Brasil, o então embaixador, Dr. José Hermano Saraiva diz que «em Portugal se vivem momentos graves e para que todos os portugueses se mantenham calmos.

- Não se realiza, em Lisboa, a procissão de Nossa Senhora da Saúde. 

OS DIAS LEVANTADOS

O 25 de Abril é um dia e são dias,

meses, anos. É daquelas datas

que se  constelam, que estão

antes de hoje, que hoje ecoam ainda,

e que tremulizarão no depois de hoje

como a memória de uma outra

possibilidade no conflito dos reais.

Porque foi um processo de irrupção

de imensas vozes e corpos

no teatro da história

tal como a fazemos.

Porque foi um processo de

transformação do nosso espaço-tempo

e das nossas formas de habitar.

Porque foi a liberdade e a

democracia como emancipação

Porque foi a política como poiesis.

 

Manuel Gusmão, autor do libreto para a ópera Os Dias Levantados de António Pinho Vargas sobre o 25 de Abril, estreada no Teatro São Carlos em 25 de Abril de 1998.

quinta-feira, 25 de abril de 2024

VIAGENS POR ABRIL


As Viagens por Abril não têm fim.

Como perguntaria o Baptista- Bastos:

 «Onde estavas no 25 de Abril?»

É, andei por aí.

Com gente, procurando gente, pontes e vales, tem sido assim esta vida.

E houve aquele dia, 25 de Abril de 1974.

Dizem que por um Abril houve uma revolução, outros dizem que houve um golpe de estado, outros ainda que houve uma abrilada, sucederam coisas gritadas nas ruas, outras soavam nas sombras clandestinas.

Na escola disseram aos miúdos que tinham que ir para casa, estava a acontecer qualquer coisa em Lisboa.

Que comemoramos hoje? Que resta daquele dia?

O chefe de redacção telefonou ao repórter, gritou-lhe: Salta da cama. A Revolução está na rua e é precisos escrevê-la!

Isso é passado, é tão passado que eu já não comemoro o 25 de Abril. Sentir-me-ia um irresponsável celebrando qualquer coisa de que hoje não posso ver nenhum sinal, daquilo que o 25 de Abril trouxe.

Podemos saudar o desespero que nos invadiu perante algo que falhou?

Estragaram a tua festa pá!, cantaram no outro lado do Atlântico.

Houve quem dissesse que as revoluções são sonhadas por idealistas e realizadas por fanáticos, e quem delas se aproveita são os oportunistas de todas as espécies.

O 25 de Abril é um dia e são dias. É daquelas datas que se constelam que estão antes de hoje, que hoje ecoam ainda, e que tremeluzirão no depois de hoje.

Quase sem darmos por isso, milhares de pessoas invadiram as ruas, ofereceram pão e cravos aos soldados, deram as mãos, sorriram, dos olhos saltavam sonhos e esperanças.

Alguém perguntou como era possível tanta e tanta gente quando meses antes, semanas antes, dias antes, eram tão poucos aqueles que apareciam para escrever palavras de ordem nas paredes da cidade, colar cartazes, distribuir uns panfletos impressos a stencil…

Será a memória curta? Apaga-se com facilidade?

 O apagamento de memória é chocante.

 Deste dia até ao 1º de Maio, é provável que muitos devem ter dormido, mas não se lembram bem. Uma semana de loucura já ninguém me tira, posso não ser feliz mas poucos chegaram tão perto disso a que chamam felicidade.

 É preciso ter vivido os anos terríveis, o tempo do desprezo, um tempo de ratazanas, para que aquele dia tivesse sido o que foi, um navio de sonho, uma nave de loucos, protagonistas duma enorme esperança, depois figurantes de um grande desencanto.

Terá sido assim há tanto tempo?

A ditadura acabou por ser derrubada por militares que antes desprezávamos.

Dezassete horas e 45 minutos bastaram para abater um regime que oprimiu um povo durante 47 anos, 10 meses, 34 dias e algumas horas.

Teremos feito tudo para que as novas gerações fossem mais felizes?

 Vale a pena assinalar a data quando nos esquecemos de ensinar a importância que aquele dia nos trouxe? Olham-se as pessoas de hoje, os jovens de hoje, formam um grupo largo e variado mas, olhando bem, estamos todos muito mal no retrato de conjunto…

Algures, numa dobra da história, alguma coisa falhou. O cantor, de viola às costas, acabou por dizer que houve alguém que se enganou.

A culpa é de todos, a culpa não é de ninguém.

Naqueles dias, quase poderíamos dizer que a paisagem mudara para sempre.

As paisagens até podem mudar, o resto… o resto… o resto… é uma chatice… um busílis de questão…

O escritor perguntava e respondia: para que serve a utopia? Serve para que eu não deixe de caminhar.

Um dia voltaremos a encontrar-nos todos no imponderável azul celeste.

E recomeçamos a busca dum país liberto, duma vida limpa e dum tempo justo.

Mas será que ainda verei alguém desenhar os nomes daqueles que, na sombra, nos lixaram a festa?

 

Montagem concebida com textos de:

Jorge Silva Melo, Virgílio Martinho, Baptista-Bastos, José Saramago, Rui Cardoso Martins, Chico Buarque, Manuel António Pina, Manuel Gusmão, Rodrigues da Silva, João Gobern, José Mário Branco, Eduardo Galeano, Mário Dionísio, Cristina Carvalho, Sophia de Mello Breyner Andresen.


Legenda: ilustração de António Pimentel para o livro As Portas Que Abril Abriu de José Carlos Ary dos Santos. 

EI-LA A CIDADE


Ei-la a cidade envolta em dor e bruma
Ei-la na escuridão serena resistindo
Hierática Estranha Sem medida
Maior do que a tortura ou o assassínio
Ei-la virando-se na cama
Ei-la em trajes menores Ei-la furtiva
seminua sensual e no entanto pura
Noiva e mãe de três filhos Namorada
e prostituta Virgem desamparada
e mundana infiel Corpo solar desejo
amor logro bordel soluço de suicida
Ei-la capaz de tudo Ei-la ela mesma

em praças ruas becos boîtes e monumentos

Ei-la ocupada inerte desventrada
com música de tiros e chicote

Ei-la Santa-Maria-Ateia maculada
ignóbil e miraculosamente erecta
branca quase feliz quase feliz
Ei-la resplendente de amor teoria

e prática nocturna mistério acontecido
doce habitável ah sobretudo habitável
vestido acolhedor café à noite
a voz distante e amada ao telefone

Ei-la a que fica e sobrevive
e reflecte neons nos lagos do jardim
mesmo quando partimos e as lágrimas inúteis
roçam de espanto a solidão crescendo
Ei-la a cidade prometida

esperamos por ela tanto tempo
que tememos olhar o seu perfil exacto
flor da raiz que somos
meu amor

Daniel Filipe em  A Invenção do Amor e Outros Poemas

Legenda: fotografia de Filipe Jorge em Lisboa Vista do Céu

quarta-feira, 24 de abril de 2024

POSTAIS SEM SELO


Tomemos então, nós, cidadãos comuns, a palavra e a iniciativa. Com a mesma veemência e a mesma força com que reivindicarmos os nossos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres.

José Saramago

Legenda: imagem cedida por Aida Santos

VIAGENS POR ABRIL


              Este não é o dia seguinte do dia que foi ontem.

                                                       João Bénard da Costa

Será um desfilar de histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias, figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação do dia, mês, ano em que aconteceram.

 24 de Abril de 1974

Quando o país bocejante se deitou, só alguns dos seus habitantes, muito poucos, sabiam que esta não seria uma noite igual a tantas outras, seria mesmo uma noite invulgar.
Quando os espectadores que assistiram à “Traviata”, começaram a sair do Coliseu, já João Paulo Dinis, na emissão do Rádio Peninsular dos Emissores Associados, tinha enviado o primeiro sinal para os militares: “Faltam cinco minutos para as 23,00 horas. Convosco, Paulo de Carvalho com o Eurofestival 74 – E Depois do Adeus”.
          

O “Diário de Notícias” há-de escrever que um Coliseu, repleto de público, assistiu a uma récita da “Traviata” com Alfred Kraus e que consagrou Joan Sutherland e que a récita terminou em delírio colectivo, com ovações intermináveis e inúmeros cravos atirados das frisas.

 O MESMO DIÁRIO DE NOTÍCIAS, publica na 1ª página um editorial com o título: “Balas de Papel”. Terminava assim:
“Só nós, Portugueses, somos senhores do nosso destino. E estamos tão estoicamente empenhados na defesa dos lusos territórios ultramarinos, como preparados para enfrentar as batalhas de opinião, desencadeadas – sabe-se lá – por que interesses feridos ou conveniências não acauteladas…
Parece-nos, entretanto, oportuno prevenir os franco-atiradores dispersos pelos países amigos, de que não receamos as balas de papel – como não tememos as outras. Elas não conseguirão desalojar-nos das atitudes assumidas e das posições tomadas.”

LOGO PELA MANHÃ, Otelo Saraiva de Carvalho desloca-se à estação dos CTT da Estefânia, fronteira à Academia Militar, de onde envia para os Açores o telegrama codificado que combinara com Melo Antunes, com a data e a hora do golpe:

 “Tia Aurora parte Estados Unidos 250300. Primo António.”

EM CONVERSA TELEFÓNICA com um dos seus ministros, que lhe dá conta dá conta de movimentações militares, Marcelo Caetano terá dito:

 “Isso é mais um boato desgastante”
Marcelo Caetano no seu “Depoimento”, publicado no exílio no Brasil, escreve que “a
Revolução veio efectivamente de surpresa.”

O chefe de Estado, almirante Américo Tomás deslocou-se à Feira Internacional de Lisboa para uma visita ao Salão de Antiguidades. Será este o último acto oficial como mestre-corta-fitas da ditadura.

FORAM ESTAS AS últimas determinações, dos serviços de censura do reino, para os jornais que se publicavam no Porto.

PARA O DIA 25, os serviços de meteorologia previam: “Céu pouco nublado, por vezes muito nublado; vento fraco de norte; possibilidade de trovoada e aguaceiros”

NOS PRIMEIROS VINTE MINUTOS DO NOVO DIA, no programa “Limite”, transmitido pelos emissores da Rádio Renascença, o locutor Leite de Vasconcelos dirá a primeira quadra de “Grândola, Vila Morena” e começam a ouvir-se aqueles passos cadenciados na estrada que anunciam que “o povo é quem mais ordena, dentro de ti ó cidade.”

O navio de sonhos largara do cais de silêncio rumo à estrela polar.

Chegara o Dia das Surpresas.

Como nos anos 60, ouvindo Beethoven, poetisara José Saramago.

OLHAR AS CAPAS


MFA e Luta de Classes

Ramiro Correia, Pedro Soldado, João Marujo

Biblioteca Ulmeiro nº 2

Editora Ulmeiro, Lisboa s/d

Vasco Gonçalves, a defesa lúcida dos trabalhadores, o democrata que não pactuava com manobras palacianas, que não aceitava pressões externas humilhantes, que sabia bem como a divisão dos militares progressistas enfraquecia perigosamente a Revolução, é objecto de uma das mais demagógicas campanhas de difamação de que há memória neste País (período fascista incluído), campanha que, por vezes, atingiu a vileza, pela mentira, pelo despudor, pela ausência de ética, pela irresponsabilidade. 

O QU'É QUE VAI NO PIOLHO?



 O Luís Miguel Mira apresenta hoje, pelas 15,00 horas na Nova Atena, Universidade Senior,  na Rua Almeida Garrett, 20, em Linda-a-Velha, «O Inimigo Público» de Woody Allen:

                                                    O INIMIGO PÚBLICO (1969)

                                                      (Take the Money and Run)

 

Realização: Woody Allen

Argumento: Woody Allen e Mickey Rose

Montagem: Ralph Rosenblum, James T. Heckert, Paul Jordan e  Ron Kalish

Fotografia: Lester Shorr

Música: Marvin Hamlisch e Felix Giglio

Direção Artística: Fred Harpman

Interpretação:  Woody Allen (Virgil Starkwell), Janet Margolin (Louise), Ethel Sokolow (a mãe de Virgil), Henry Leff (o pai de Virgil), Don Frazier (o psiquiatra), Jacquelyn Hyde (mademoisele Blair), James Anderson (o guarda prisional), Marcel Hillaire (Fritz), Lonny Chapman (Jake),  Louisse Lasser (Kay Lewis), Jackson Beck (a voz do narrador), etc 

Produção: Sidney Glazier, Charles H. Joffe e Jack Grossberg, para a Palomar Pictures International

Duração: 85 mn

No que respeita ao “Riso”, já por aqui passaram pela mão do Prof. Jorge Barata Preto, no âmbito deste recente ciclo “O Riso e as Lágrimas”, alguns dos principais vultos da Comédia Americana: Charles Chaplin, Buster Keaton, os Irmãos Marx, Jerry Lewis, Mel Brooks. 

Dos grandes “Clássicos”, julgo que só faltaram Harold Lloyd, Harry Langdon, Stan Laurel e Oliver Hardy (o Bucha e o Estica…), W. C. Fields e talvez Woody Allen, embora não esteja certo de que ele não tenha por aqui passado noutro ciclo…

Para além destes, houve uma série de comediantes americanos de grande sucesso no seu tempo, mas para os quais a memória dos cinéfilos não foi tão generosa como em relação aos outros que mencionei: falo-vos de nomes como Eddie Cantor, Bob Hope, Bud Abbot e Lou Costello (o Gordo e o Magro), Danny Kaye e, muito mais recentemente, Jim Carrey, “o novo Jerry Lewis”.

Embora tenha com ele uma relação de Amor/Ódio, escolhi para concluir a minha intervenção neste ciclo um filme de Woody Allen, porque ele merece estar ao lado dos maiores.

Mas porquê esse Amor/Ódio, perguntar-me-ão vocês, talvez intrigados, tal a unanimidade que o autor de “Annie Hall” habitualmente suscita…?

Amor, porque gosto muito de muitos dos filmes de Woody Allen.

Ódio (a palavra é excessiva, confesso…), porque a ascensão de Allen correspondeu ao declínio de Jerry Lewis, que era o meu ídolo de infância, de adolescência e até de juventude, através dos filmes dele que frequentemente via na televisão e das saudosas retrospetivas mais tarde organizadas nos anos 70 por Lauro António, no Apolo 70 e no Caleidoscópio. 

É que, na verdade, entre 1969 (data do primeiro filme de Allen) e 1983 (data do último filme de Lewis), o autor de “O Homem das Mulheres” apenas teve oportunidade de realizar cinco filmes (um dos quais, “Le Jour oú le Clown Pleura”, realizado em França e na Suécia em 1972, ainda hoje se mantém inédito…), enquanto o autor de “Manhattan” realizou dez. E, a partir de então e até hoje, Allen realizaria pelo menos um todos os anos, só falhando em 2018, 2021 e 2022.  

E é claro que culpei Woody Allen pela caída em desgraça de Jerry Lewis… 

Antes de entrar em força no Cinema já Allen era um nome sobejamente conhecido no meio cultural americano, e sobretudo na cena nova-iorquina.

Começou a trabalhar nos anos 50, ainda adolescente, escrevendo diálogos para a televisão.

O sucesso que teve levou-o a ser chamado a colaborar com comediantes de cada vez maior nomeada, para os quais escrevia sketches para shows, peças de teatro e revistas da Boadway que viriam a obter grande sucesso.

Farto de ficar na sombra e de ver os outros beneficiarem, em fama e proveito, do seu próprio trabalho, Allen, embora já na altura muito bem pago para a sua idade, decidiu ultrapassar a sua timidez natural e subir sozinho ao palco em 1961, vindo a tornar-se um dos principais vultos da chamada stand-up comedy americana, com digressões por teatros e night clubs de todo o país e presença assídua na televisão. E o seu sucesso não se iria limitar aos “monólogos” que fazia em palco, porque também já começara a escrever para diversas publicações de prestígio, como era o caso da “New Yorker”, e as gravações em disco de alguns dos seus espetáculos também obtiveram êxito, levando-o, até, a ganhar um Grammy por uma delas em 1964.  

Allen viria a estrear-se no cinema em 1963, escrevendo o argumento e desempenhando um papel secundário em “O Que Há de Novo Gatinha” (“What’s New Pussycat”), de Clive Donner, que alguns de vós provavelmente se recordarão de ter visto no antigo cinema São Jorge, já que por cá obteve um grande sucesso, com a inesquecível música do Tom Jones.

Seguir-se-ia, em 1967, “Casino Royale”, muito maltratado por diversos realizadores, entre eles John Huston, do qual foi coargumentista, para além de ter, igualmente, um pequeno papel como ator.


Cansado da maneira, que considerava desajustada, como os seus argumentos eram postos em cena (em 1969 estreara-se, também, “Don’t Drink the Water”, realizado por Howard Morris e baseado numa peça sua), Allen começou a acalentar a ideia de ser ele próprio a realizar os filmes que escrevia.

Mas ainda antes disso, lançou-se numa obra bizarra: pegar num anónimo filme japonês, misto de policial e de “kung-fu”, retirar-lhe a banda sonora original e substituí-la por uma inteiramente concebida por si, tanto na escolha da música como na escrita dos diálogos. O resultado deu pelo nome de “What’s Up Tiger Lily” e foi lançado nos Estados Unidos em 1966. O DVD que tenho na minha coleção chama-se “O Que se Passa, Tigresa?”, mas não tenho qualquer memória da estreia deste filme em Portugal.

É só por isso que “O Inimigo Público”, o nosso filme de hoje, surge em segundo lugar na filmografia de Woody Allen enquanto realizador, apesar de ter sido, na verdade, o primeiro filme escrito, realizado e interpretado por si. E esse sim, lembro-me muito bem onde se estreou em Lisboa: no saudoso Cinema Berna, que ficava nas Avenidas Novas, mesmo ao lado da Igreja de Nossa Senhora de Fátima.

Oito anos e quatro comédias mais ou menos burlescas depois (para além de participação, como ator principal, em dois outros filmes não por si realizados), Allen obteria, em 1977, o maior dos seus êxitos na América, com os quatro Óscares recebidos por “Annie Hall”.

A partir daqui o cinema de Woody Allen não mais seria o mesmo, mas a sua carreira não é o principal objeto deste texto.

Fiquemo-nos, pois, por “O Inimigo Público”, realizado em 1969. 

Em tom sério de documentário, com a voz “off” de um narrador, excertos de entrevistas ao próprio Virgil e a outras pessoas que lhe são próximas ou que com ele se relacionaram pontualmente (o pai e a mãe, devidamente disfarçados para não passarem a vergonham de se verem associados ao filho, a mulher, o psiquiatra que o acompanhou, o juiz que o condenou, colegas de prisão, vizinhos e amigos de infância, etc), o filme conta-nos a história de Virgil Starkwell, considerado um dos mais perigosos criminosos daquela época, desde os primeiros tempos de delinquência juvenil no bairro desfavorecido de Baltimore onde nascera, até à sua derradeira e mais penosa condenação.

Pelo meio são evocadas outras peripécias da sua vida: os primeiros assaltos, as primeiras vivências na prisão, as primeiras tentativas de fuga, a libertação que conseguiu por se ter oferecido como cobaia para experiências com uma nova vacina nunca antes testada num Ser Humano, a forma como conheceu a sua mulher, ternamente contada pelo próprio Virgil, que nos confessa tê-la visto deitada na relva de um jardim e lhe pretender roubar a mala, mas que lhe bastaram 15 minutos de conversa com ela para se aperceber que era essa a mulher dos seus sonhos com quem se desejaria casar, e que 30 minutos depois já tinha desistido, em definitivo, da ideia de lhe roubar a carteira...

Casado e com novas responsabilidades familiares no horizonte, Virgil, como todo o bom criminoso que se preza, sonha em dar o último e definitivo golpe que lhe assegurará, para sempre, a subsistência da família, mas a coisa corre-lhe mal. É condenado a trabalhos forçados numa prisão de alta segurança, mas, persistente como é, dela também se consegue libertar, na companhia de outros reclusos.

De novo ao lado da mulher e do filho, Virgil tenta seguir caminhos mais honestos, mas não se consegue adaptar a essa vida. Uma nova tentativa de assalto volta a correr-lhe mal e vamos encontrá-lo, no final, condenado a 800 anos de prisão por 52 assaltos, embora, otimista como sempre, ele esteja esperançado de que, se tiver um comportamento exemplar, essa pena lhe possa ser reduzida a metade. Mas nem por isso deixa de se preocupar em construir, artificialmente, uma pistola…

Quanto à profissão que escolheu, diz que não se arrepende de nada… “Somos o nosso próprio patrão, tem -se liberdade de horário, viaja-se imenso, conhece-se muita gente interessante”… Que mais se pode desejar…? Uma única tristeza lhe ficou, certamente: apesar de tão badalado e de ter sido nomeado “Gangster do Ano”, nunca ter integrado o “Top 10” dos maiores criminosos…

Nas suas “Memórias”, publicadas em 2020, Woody Allen não se alonga demasiado acerca deste filme e só parece dar importância a duas coisas: o gozo que lhe deu ter conseguido filmar no interior da célebre prisão de San Quentin e a preciosa ajuda que recebeu de Ralph Rosenblum, chamado à última hora para o apoiar na montagem do filme.

Em relação à primeira escreve mesmo o seguinte: “o primeiro dia de filmagens seria na Penitenciária de San Quentin. Todo o meu entusiasmo se prendia com o facto de ir a uma prisão e ali estarem reclusos e eu veria uma gigantesca casa icónica, sobre a qual apenas tinha lido ou visto versões em velhos filmes a preto e branco. Queria lá saber que me estava a estrear como realizador. Era pela prisão que eu estava fascinado” (1) 

Quanto à segunda, tenho de me deter mais algum vagar, porque é essencial para a compreensão do próprio filme.

Na sua total ignorância do que era a realização de um filme, Allen não se preocupou demasiado com a montagem final nem com a forma como a escolha da música poderia condicionar, em muito, o próprio ritmo do seu filme.

Preocupou-se, unicamente e com o apoio dos técnicos que tinha ao seus dispor, em rodar corretamente cenas cómicas umas atrás das outras, e nisto até se revelou um bom aluno porque não só acabou as filmagens antes da data prevista, como também conseguiu ficar aquém do orçamento previsto.

O grande problema foi que, após realizada a preview screening (2), toda a produção deitou as mãos à cabeça. O filme era um autêntico desastre. A pouca música escolhida era desadequada, a montagem não fazia muito sentido, era evidente a falta de ritmo de toda a obra e estava à vista de todos, incluindo a de Allen, um verdadeiro descalabro.

Fez-se então apelo a Ralph Rosenblum, um montador experiente que fez tábua rasa dessa primeira versão de montagem, visionou todas as bobinas que haviam sido filmadas e chegou à versão final que hoje conhecemos, à qual juntou música diversificada, incluindo algumas peças de jazz de New Orleans para fazer acelerar o ritmo de algumas cenas. Foi considerado o verdadeiro salvador do filme, que viria a ter algum êxito nos Estados Unidos.    

Apesar de tudo isto, “O Inimigo Público” não deixa de ser um filme algo desequilibrado, como desenvolverei no final. 


Quando estamos perante a primeira obra de um realizador, sobretudo quando se trata, como no caso de Woody Allen, de um “Autor” consagrado e detentor de uma vasta Obra, existe sempre a tendência de nele procurarmos encontrar os primeiros sinais do “Universo do Autor”, ou seja, o seu estilo, os seus temas prediletos, as suas obsessões, a sua visão do Mundo, os seus “tiques”…

Ora no caso de “O Inimigo Público” não será difícil descortinar um esboço daquilo que viria a ser o trabalho futuro do seu realizador.

Vejamos, seguidamente, alguns exemplos.

  1. Allen sempre incorporou em muitos dos seus filmes aspetos autobiográficos. Na primeira versão do guião deste filme, Virgil chamava-se … Woody Allen!; depois, a forma como retrata os pais de Virgil é muito semelhante àquela como, ao longo da sua vida artística, nos foi falando dos seus próprios pais, com uma ligeira diferença: ao contrário do que sucede no filme, era o seu pai, e não a sua mãe, o mais tolerante em relação a ele (acerca da sua mãe, Allen chegou a escrever o seguinte: “a teoria edipiana de Freud de que todos os homens querem, inconscientemente, matar os pais para casarem com as mães choca com uma parede de tijolo no que diz respeito à minha mãe…” (3)); por outro lado, o bairro desfavorecido de Baltimore onde Virgil passa a sua infância também parece ter alguns traços de semelhança com o de Midwood, em Brooklyn, onde o próprio Allen deu os primeiros passos e que tão bem nos mostrou em “Os Dias da Rádio”; tal como Allen, Virgil também parece gostar de música, mas não ter lá muito jeito para o seu instrumento favorito; e que me dirão vocês se vos disser que Allen escolheu para data de nascimento de Virgil (1 de Dezembro de 1935) … o dia seguinte ao do seu próprio nascimento…; mas a mais deliciosa das private jokes de Allen parece-me ser a de ter dado à sua mulher Louisse Lasser, com quem então já estava em acelerado processo de divórcio, aquela hilariante tirada final, qualquer coisa como isto (cito de memória): “Acho que ele era um génio. Quando descobri que ele era um criminoso, não pude acreditar, porque nunca vi ninguém que dissimulasse algo tão bem. Excelente trabalho de ator. E eu que pensava que ele era um idiota…!”;

2.                  Tal como Vigil Starkwell, muitos dos personagens principais dos filmes de Allen são homens (quase sempre, mas também há mulheres…) torturados e inseguros, com alguma timidez e complexo de inferioridade resultante, por vezes, de uma infância castradora, todos estes problemas confluindo numa enorme insegurança no relacionamento com as mulheres. E, em relação, a Allen, isto também terá qualquer coisa de autobiográfico…;

3.                  Pelos motivos que referi no ponto anterior, muitos dos personagens dos seus filmes recorrem, ou já recorreram no passado à psicanálise, e isso é sempre mencionado em tom jocoso. Ora referências à psicanálise são coisas que abundam no filme de hoje, em especial na hilariante cena em que o seu psicanalista é satirizado, explicando-nos o papel do violoncelo na mente tortuosa de Virgil… E é também evidente que, subjacente a todo o filme, está a teoria determinista, então muito em voga naqueles tempos na Psicologia e na Sociologia, de que é a família, a educação e o meio envolvente quem mais determina a formação de uma personalidade. E foi o próprio Allen quem, na altura, afirmou que Virgil poderia muito bem ter sido ele próprio, se em momentos-chave da sua adolescência tivesse enveredado por outros caminhos, como alguns dos seus companheiros do passado o fizeram;  

4.                  Um certo fatalismo, quase que ilustrando a Lei de Murphy (se algo pode correr mal, é certo que irá correr (mesmo) mal…) parece acompanhar a vida e a “carreira” do pobre Virgil, como também a de muitos dos personagens do cinema de Allen;

5.                  É sabido que Woody Allen estudou cinema na sua juventude e frequentou avidamente as salas de cinema, primeiro levado pela mão de uma sua prima 5 anos mais velha e, mais tarde, por conta própria. Esta cinefilia é algo que se torna evidente em muitos dos seus filmes. Os seus personagens são, muitas vezes, pessoas ligadas ao cinema e/ou à televisão, o seu cinema homenageia e cita frequentemente realizadores como Bergman, Fellini e Antonioni, muitas são as cenas dos seus filmes que decorrem no interior ou à porta de cinemas ditos “de Arte e Ensaio”, em cujos letreiros luminosos se anunciam clássicos do cinema americano e europeu, etc. No filme de hoje, que Allen pretendia realizar a preto e branco e a Produtora recusou, para além da memória dos velhos documentários que no passado abriam as sessões de cinema e aos quais me refiro no ponto seguinte, a inspiração veio-lhe dos velhos filmes de “gangsters” com fundo social, bem como dos “filmes de prisão” dos anos 30 e 40, em particular “Anjos de Cara Suja” e “I’m a Fugitive From a Chain Gang”, do qual chega a copiar uma cena inteira. E as “delicodoces” cenas nos parques e à beira-mar, que aqui surgem claramente como sátira, eram coisas que abundavam no cinema americano dos anos 60…; como homenagem à cena final de “Bonnie and Clyde”, Allen chegou a filmar um final diferente para este filme, no qual Virgil era apanhado numa emboscada e fuzilado, como no filme de Arthur Penn, cena esta que foi abandonada na remontagem de que atrás vos falei; mas, para os cinéfilos mais inveterados, a cereja no topo do bolo das “homenagens” é Allen ter filmado uma cena no interior do célebre Restaurante Ernie’s, em São Francisco, onde Hitchcock também havia rodado duas cenas capitais em “Vertigo / A Mulher que Viveu Duas Vezes”, hoje um verdadeiro “filme de culto”

6.                  Indiscutivelmente, um dos motivos de atração deste filme é o tom de documentário no qual ele é estruturado, e uma boa parte do seu humor reside no profundo contraste entre a seriedade da locução e a comicidade das imagens que, em contraponto, nos são mostradas. Allen tinha na memória, como vos disse atrás, os velhos documentários do passado e levou esta homenagem a um tal ponto de perfeccionismo que quem foi convidar para locutor foi Jackson Beck, a própria voz dos documentários da Paramount dos anos 40. E essa mesma estrutura em documentário, aqui e além acompanhada por imagens da época, acabou por ser um esboço para “Zelig”, um dos grandes filmes de Allen realizado 14 anos depois, e esse sim, inteiramente baseado em documentários de época;

Mais exemplos haveria para salientar, mas creio que já vos macei demasiado…

E se comecei falando-vos de Jerry Lewis, com ele irei terminar. É que este filme era para ter sido realizado por Lewis, e não por Woody Allen. Suspeitando (e, pelos vistos, com alguma razão…) da capacidade e da experiência deste como realizador, a Produtora começou por dar o seu acordo ao filme, mas na condição de este ser realizado por Lewis, e Allen concordou, embora com alguma relutância. 

Seguiram-se contactos entre Allen e Lewis, mas este acabou por declinar a oferta por não se sentir muito convencido do projeto, em especial devido à estrutura do guião demasiado baseada em sucessivos sketches, que Allen se recusava a alterar significativamente. Esta recusa de Lewis deve ter sido recebida com grande alívio por parte Allen, em cujo ego não cairia, certamente, muito bem o facto de, num projeto tão pessoal, se ver dirigido pelo seu maior rival, com quem poderia, fatalmente, entrar em conflito, como sucedeu com Peter Sellers no “Casino Royale”.  

Curiosamente, nem Lewis nem Allen se referem a este facto nas respetivas autobiografias, mas quem o relata com algum detalhe é John Baxter, na sua obra de referência sobre o autor de “Manhattan” (4).

Disse-vos atrás que, em minha opinião, este é um filme algo desequilibrado, com evidentes problemas de ritmo na sua parte final, em contraste com a forma frenética como o filme se inicia. Por exemplo, a cena dos prisioneiros acorrentados uns aos outros, se no início tem a sua graça, a partir de determinada altura torna-se algo penosa, tantas foram as vezes que foi repetida. E o mesmo se diga das sucessivas cenas do bilhete com os supostos erros ortográficos no assalto ao banco, que de tanto serem repetidas acabam por perder alguma eficácia.

Nada disso altera, porém, o interesse que tem o visionamento deste filme histórico, o qual contém, certamente, muitas cenas que poderíamos selecionar para uma antologia do humor de Woody Allen: as impagáveis cenas em que intervêm os pais de Virgil, disfarçados de Groucho Marx; as diversas cenas de assaltos e de fugas fracassadas, com os gags das pistolas; a cena ao espelho com a toalha é cintura; a teoria do psiquiatra em relação ao violoncelo; as hilariantes tiradas de humor judaico… 

Woody Allen é, indiscutivelmente, um dos grandes realizadores do nosso tempo. Ao contrário de outros grandes realizadores clássicos, de quem não chegámos a ser contemporâneos, enquanto cinéfilos, com Allen tivemos a oportunidade de acompanhar a construção de todo o edifício da sua Obra, tijolo após tijolo, e julgo ser imperdível ver este momento inicial em que, timidamente, começou a dar os primeiros passos. 

Espero que estejam de acordo comigo e se divirtam.

Sendo esta a minha última intervenção, mais uma vez os meus agradecimentos a quem me convidou e a quem teve a paciência de me ler e de me ouvir.


LUÍS MIGUEL MIRA


  1. ALLEN, Woody, “A Propósito de Nada”, Ediçoes 70, 2020, pág. 195

2.                   Desde os primórdios da Indústria Cinematográfica era habitual os Estúdios e/ou os produtores dos filmes realizarem, antes da sua estreia oficial, sessões prévias de apresentação para uma audiência selecionada, a fim de testarem a reação do público. Em função desta e dos inquéritos individuais lançados à assistência, os filmes podiam ser modificados, por forma a colmatar as principais insuficiências detetadas. No caso deste primeiro filme de Allen, foram escolhidos como publico um grupo de soldados americanos em licença no país, tendo o filme sido projetado com uma muito reduzida e suave banda sonora. A reação da plateia foi péssima…


3.                  Vd (1), pág. 12


4.                  Vd (1), pág. 12   BAXTER, John, “Woody Allen”, Edição Flammarion, 2000, pág. 207