O INIMIGO PÚBLICO
(1969)
(Take the
Money and Run)
Realização:
Woody Allen
Argumento:
Woody Allen e Mickey Rose
Montagem:
Ralph Rosenblum, James T. Heckert, Paul Jordan e Ron Kalish
Fotografia:
Lester Shorr
Música:
Marvin Hamlisch e Felix Giglio
Direção
Artística: Fred Harpman
Interpretação:
Woody Allen (Virgil Starkwell), Janet Margolin (Louise), Ethel Sokolow (a mãe
de Virgil), Henry Leff (o pai de Virgil), Don Frazier (o psiquiatra), Jacquelyn
Hyde (mademoisele Blair), James Anderson (o guarda prisional), Marcel Hillaire
(Fritz), Lonny Chapman (Jake), Louisse Lasser (Kay Lewis), Jackson Beck
(a voz do narrador), etc
Produção:
Sidney Glazier, Charles H. Joffe e Jack Grossberg, para a Palomar Pictures
International
Duração: 85
mn
No que
respeita ao “Riso”, já por aqui passaram pela mão do Prof. Jorge Barata Preto,
no âmbito deste recente ciclo “O Riso e as Lágrimas”, alguns dos principais
vultos da Comédia Americana: Charles Chaplin, Buster Keaton, os Irmãos Marx,
Jerry Lewis, Mel Brooks.
Dos grandes
“Clássicos”, julgo que só faltaram Harold Lloyd, Harry Langdon, Stan Laurel e
Oliver Hardy (o Bucha e o Estica…), W. C. Fields e talvez Woody Allen, embora
não esteja certo de que ele não tenha por aqui passado noutro ciclo…
Para além
destes, houve uma série de comediantes americanos de grande sucesso no seu
tempo, mas para os quais a memória dos cinéfilos não foi tão generosa como em
relação aos outros que mencionei: falo-vos de nomes como Eddie Cantor, Bob
Hope, Bud Abbot e Lou Costello (o Gordo e o Magro), Danny Kaye e, muito mais
recentemente, Jim Carrey, “o novo Jerry Lewis”.
Embora tenha
com ele uma relação de Amor/Ódio, escolhi para concluir a minha intervenção
neste ciclo um filme de Woody Allen, porque ele merece estar ao lado dos
maiores.
Mas porquê esse
Amor/Ódio, perguntar-me-ão vocês, talvez intrigados, tal a unanimidade que o
autor de “Annie Hall” habitualmente suscita…?
Amor, porque
gosto muito de muitos dos filmes de Woody Allen.
Ódio (a
palavra é excessiva, confesso…), porque a ascensão de Allen correspondeu ao
declínio de Jerry Lewis, que era o meu ídolo de infância, de adolescência e até
de juventude, através dos filmes dele que frequentemente via na televisão e das
saudosas retrospetivas mais tarde organizadas nos anos 70 por Lauro António, no
Apolo 70 e no Caleidoscópio.
É que, na
verdade, entre 1969 (data do primeiro filme de Allen) e 1983 (data do último
filme de Lewis), o autor de “O Homem das Mulheres” apenas teve oportunidade de
realizar cinco filmes (um dos quais, “Le Jour oú le Clown Pleura”, realizado em
França e na Suécia em 1972, ainda hoje se mantém inédito…), enquanto o autor de
“Manhattan” realizou dez. E, a partir de então e até hoje, Allen realizaria
pelo menos um todos os anos, só falhando em 2018, 2021 e 2022.
E é claro que culpei Woody Allen pela caída em desgraça de Jerry Lewis…
Antes de
entrar em força no Cinema já Allen era um nome sobejamente conhecido no meio
cultural americano, e sobretudo na cena nova-iorquina.
Começou a
trabalhar nos anos 50, ainda adolescente, escrevendo diálogos para a televisão.
O sucesso que
teve levou-o a ser chamado a colaborar com comediantes de cada vez maior
nomeada, para os quais escrevia sketches para shows, peças de
teatro e revistas da Boadway que viriam a obter grande sucesso.
Farto de
ficar na sombra e de ver os outros beneficiarem, em fama e proveito, do seu
próprio trabalho, Allen, embora já na altura muito bem pago para a sua idade,
decidiu ultrapassar a sua timidez natural e subir sozinho ao palco em 1961,
vindo a tornar-se um dos principais vultos da chamada stand-up comedy
americana, com digressões por teatros e night clubs de todo o país e
presença assídua na televisão. E o seu sucesso não se iria limitar aos
“monólogos” que fazia em palco, porque também já começara a escrever para
diversas publicações de prestígio, como era o caso da “New Yorker”, e as
gravações em disco de alguns dos seus espetáculos também obtiveram êxito,
levando-o, até, a ganhar um Grammy por uma delas em 1964.
Allen viria a
estrear-se no cinema em 1963, escrevendo o argumento e desempenhando um papel
secundário em “O Que Há de Novo Gatinha” (“What’s New Pussycat”), de Clive
Donner, que alguns de vós provavelmente se recordarão de ter visto no antigo
cinema São Jorge, já que por cá obteve um grande sucesso, com a inesquecível
música do Tom Jones.
Seguir-se-ia,
em 1967, “Casino Royale”, muito maltratado por diversos realizadores, entre
eles John Huston, do qual foi coargumentista, para além de ter, igualmente, um
pequeno papel como ator.
Cansado da
maneira, que considerava desajustada, como os seus argumentos eram postos em
cena (em 1969 estreara-se, também, “Don’t Drink the Water”, realizado por
Howard Morris e baseado numa peça sua), Allen começou a acalentar a ideia de
ser ele próprio a realizar os filmes que escrevia.
Mas ainda
antes disso, lançou-se numa obra bizarra: pegar num anónimo filme japonês,
misto de policial e de “kung-fu”, retirar-lhe a banda sonora original e
substituí-la por uma inteiramente concebida por si, tanto na escolha da música
como na escrita dos diálogos. O resultado deu pelo nome de “What’s Up Tiger
Lily” e foi lançado nos Estados Unidos em 1966. O DVD que tenho na minha
coleção chama-se “O Que se Passa, Tigresa?”, mas não tenho qualquer memória da
estreia deste filme em Portugal.
É só por isso
que “O Inimigo Público”, o nosso filme de hoje, surge em segundo lugar na
filmografia de Woody Allen enquanto realizador, apesar de ter sido, na verdade,
o primeiro filme escrito, realizado e interpretado por si. E esse sim,
lembro-me muito bem onde se estreou em Lisboa: no saudoso Cinema Berna, que
ficava nas Avenidas Novas, mesmo ao lado da Igreja de Nossa Senhora de Fátima.
Oito anos e
quatro comédias mais ou menos burlescas depois (para além de participação, como
ator principal, em dois outros filmes não por si realizados), Allen obteria, em
1977, o maior dos seus êxitos na América, com os quatro Óscares recebidos por
“Annie Hall”.
A partir
daqui o cinema de Woody Allen não mais seria o mesmo, mas a sua carreira não é
o principal objeto deste texto.
Fiquemo-nos,
pois, por “O Inimigo Público”, realizado em 1969.
Em tom sério
de documentário, com a voz “off” de um narrador, excertos de entrevistas ao
próprio Virgil e a outras pessoas que lhe são próximas ou que com ele se
relacionaram pontualmente (o pai e a mãe, devidamente disfarçados para não
passarem a vergonham de se verem associados ao filho, a mulher, o psiquiatra
que o acompanhou, o juiz que o condenou, colegas de prisão, vizinhos e amigos
de infância, etc), o filme conta-nos a história de Virgil Starkwell,
considerado um dos mais perigosos criminosos daquela época, desde os primeiros
tempos de delinquência juvenil no bairro desfavorecido de Baltimore onde
nascera, até à sua derradeira e mais penosa condenação.
Pelo meio são
evocadas outras peripécias da sua vida: os primeiros assaltos, as primeiras
vivências na prisão, as primeiras tentativas de fuga, a libertação que
conseguiu por se ter oferecido como cobaia para experiências com uma nova
vacina nunca antes testada num Ser Humano, a forma como conheceu a sua mulher,
ternamente contada pelo próprio Virgil, que nos confessa tê-la visto deitada na
relva de um jardim e lhe pretender roubar a mala, mas que lhe bastaram 15
minutos de conversa com ela para se aperceber que era essa a mulher dos seus
sonhos com quem se desejaria casar, e que 30 minutos depois já tinha desistido,
em definitivo, da ideia de lhe roubar a carteira...
Casado e com
novas responsabilidades familiares no horizonte, Virgil, como todo o bom
criminoso que se preza, sonha em dar o último e definitivo golpe que lhe
assegurará, para sempre, a subsistência da família, mas a coisa corre-lhe mal.
É condenado a trabalhos forçados numa prisão de alta segurança, mas,
persistente como é, dela também se consegue libertar, na companhia de outros
reclusos.
De novo ao
lado da mulher e do filho, Virgil tenta seguir caminhos mais honestos, mas não
se consegue adaptar a essa vida. Uma nova tentativa de assalto volta a
correr-lhe mal e vamos encontrá-lo, no final, condenado a 800 anos de prisão
por 52 assaltos, embora, otimista como sempre, ele esteja esperançado de que,
se tiver um comportamento exemplar, essa pena lhe possa ser reduzida a metade.
Mas nem por isso deixa de se preocupar em construir, artificialmente, uma
pistola…
Quanto à
profissão que escolheu, diz que não se arrepende de nada… “Somos o nosso
próprio patrão, tem -se liberdade de horário, viaja-se imenso, conhece-se muita
gente interessante”… Que mais se pode desejar…? Uma única tristeza lhe
ficou, certamente: apesar de tão badalado e de ter sido nomeado “Gangster do
Ano”, nunca ter integrado o “Top 10” dos maiores criminosos…
Nas suas
“Memórias”, publicadas em 2020, Woody Allen não se alonga demasiado acerca
deste filme e só parece dar importância a duas coisas: o gozo que lhe deu ter
conseguido filmar no interior da célebre prisão de San Quentin e a preciosa
ajuda que recebeu de Ralph Rosenblum, chamado à última hora para o apoiar na
montagem do filme.
Em relação à
primeira escreve mesmo o seguinte: “o primeiro dia de filmagens seria
na Penitenciária de San Quentin. Todo o meu entusiasmo se prendia com o facto
de ir a uma prisão e ali estarem reclusos e eu veria uma gigantesca casa
icónica, sobre a qual apenas tinha lido ou visto versões em velhos filmes a
preto e branco. Queria lá saber que me estava a estrear como realizador. Era
pela prisão que eu estava fascinado” (1)
Quanto à
segunda, tenho de me deter mais algum vagar, porque é essencial para a
compreensão do próprio filme.
Na sua total
ignorância do que era a realização de um filme, Allen não se preocupou
demasiado com a montagem final nem com a forma como a escolha da música poderia
condicionar, em muito, o próprio ritmo do seu filme.
Preocupou-se,
unicamente e com o apoio dos técnicos que tinha ao seus dispor, em rodar corretamente
cenas cómicas umas atrás das outras, e nisto até se revelou um bom aluno porque
não só acabou as filmagens antes da data prevista, como também conseguiu ficar
aquém do orçamento previsto.
O grande
problema foi que, após realizada a preview screening (2), toda a
produção deitou as mãos à cabeça. O filme era um autêntico desastre. A pouca
música escolhida era desadequada, a montagem não fazia muito sentido, era
evidente a falta de ritmo de toda a obra e estava à vista de todos, incluindo a
de Allen, um verdadeiro descalabro.
Fez-se então
apelo a Ralph Rosenblum, um montador experiente que fez tábua rasa dessa
primeira versão de montagem, visionou todas as bobinas que haviam sido filmadas
e chegou à versão final que hoje conhecemos, à qual juntou música
diversificada, incluindo algumas peças de jazz de New Orleans para fazer
acelerar o ritmo de algumas cenas. Foi considerado o verdadeiro salvador do
filme, que viria a ter algum êxito nos Estados Unidos.
Apesar de tudo isto, “O Inimigo Público” não deixa de ser um filme algo desequilibrado, como desenvolverei no final.
Quando
estamos perante a primeira obra de um realizador, sobretudo quando se trata,
como no caso de Woody Allen, de um “Autor” consagrado e detentor de uma vasta
Obra, existe sempre a tendência de nele procurarmos encontrar os primeiros
sinais do “Universo do Autor”, ou seja, o seu estilo, os seus temas prediletos,
as suas obsessões, a sua visão do Mundo, os seus “tiques”…
Ora no caso
de “O Inimigo Público” não será difícil descortinar um esboço daquilo que viria
a ser o trabalho futuro do seu realizador.
Vejamos,
seguidamente, alguns exemplos.
- Allen sempre incorporou em muitos dos seus filmes aspetos autobiográficos. Na primeira versão do guião deste filme, Virgil chamava-se … Woody Allen!; depois, a forma como retrata os pais de Virgil é muito semelhante àquela como, ao longo da sua vida artística, nos foi falando dos seus próprios pais, com uma ligeira diferença: ao contrário do que sucede no filme, era o seu pai, e não a sua mãe, o mais tolerante em relação a ele (acerca da sua mãe, Allen chegou a escrever o seguinte: “a teoria edipiana de Freud de que todos os homens querem, inconscientemente, matar os pais para casarem com as mães choca com uma parede de tijolo no que diz respeito à minha mãe…” (3)); por outro lado, o bairro desfavorecido de Baltimore onde Virgil passa a sua infância também parece ter alguns traços de semelhança com o de Midwood, em Brooklyn, onde o próprio Allen deu os primeiros passos e que tão bem nos mostrou em “Os Dias da Rádio”; tal como Allen, Virgil também parece gostar de música, mas não ter lá muito jeito para o seu instrumento favorito; e que me dirão vocês se vos disser que Allen escolheu para data de nascimento de Virgil (1 de Dezembro de 1935) … o dia seguinte ao do seu próprio nascimento…; mas a mais deliciosa das private jokes de Allen parece-me ser a de ter dado à sua mulher Louisse Lasser, com quem então já estava em acelerado processo de divórcio, aquela hilariante tirada final, qualquer coisa como isto (cito de memória): “Acho que ele era um génio. Quando descobri que ele era um criminoso, não pude acreditar, porque nunca vi ninguém que dissimulasse algo tão bem. Excelente trabalho de ator. E eu que pensava que ele era um idiota…!”;
2. Tal como Vigil Starkwell, muitos dos personagens principais dos filmes de Allen são homens (quase sempre, mas também há mulheres…) torturados e inseguros, com alguma timidez e complexo de inferioridade resultante, por vezes, de uma infância castradora, todos estes problemas confluindo numa enorme insegurança no relacionamento com as mulheres. E, em relação, a Allen, isto também terá qualquer coisa de autobiográfico…;
3. Pelos motivos que referi no ponto anterior, muitos dos personagens dos seus filmes recorrem, ou já recorreram no passado à psicanálise, e isso é sempre mencionado em tom jocoso. Ora referências à psicanálise são coisas que abundam no filme de hoje, em especial na hilariante cena em que o seu psicanalista é satirizado, explicando-nos o papel do violoncelo na mente tortuosa de Virgil… E é também evidente que, subjacente a todo o filme, está a teoria determinista, então muito em voga naqueles tempos na Psicologia e na Sociologia, de que é a família, a educação e o meio envolvente quem mais determina a formação de uma personalidade. E foi o próprio Allen quem, na altura, afirmou que Virgil poderia muito bem ter sido ele próprio, se em momentos-chave da sua adolescência tivesse enveredado por outros caminhos, como alguns dos seus companheiros do passado o fizeram;
4. Um certo fatalismo, quase que ilustrando a Lei de Murphy (se algo pode correr mal, é certo que irá correr (mesmo) mal…) parece acompanhar a vida e a “carreira” do pobre Virgil, como também a de muitos dos personagens do cinema de Allen;
5. É sabido que Woody Allen estudou cinema na sua juventude e frequentou avidamente as salas de cinema, primeiro levado pela mão de uma sua prima 5 anos mais velha e, mais tarde, por conta própria. Esta cinefilia é algo que se torna evidente em muitos dos seus filmes. Os seus personagens são, muitas vezes, pessoas ligadas ao cinema e/ou à televisão, o seu cinema homenageia e cita frequentemente realizadores como Bergman, Fellini e Antonioni, muitas são as cenas dos seus filmes que decorrem no interior ou à porta de cinemas ditos “de Arte e Ensaio”, em cujos letreiros luminosos se anunciam clássicos do cinema americano e europeu, etc. No filme de hoje, que Allen pretendia realizar a preto e branco e a Produtora recusou, para além da memória dos velhos documentários que no passado abriam as sessões de cinema e aos quais me refiro no ponto seguinte, a inspiração veio-lhe dos velhos filmes de “gangsters” com fundo social, bem como dos “filmes de prisão” dos anos 30 e 40, em particular “Anjos de Cara Suja” e “I’m a Fugitive From a Chain Gang”, do qual chega a copiar uma cena inteira. E as “delicodoces” cenas nos parques e à beira-mar, que aqui surgem claramente como sátira, eram coisas que abundavam no cinema americano dos anos 60…; como homenagem à cena final de “Bonnie and Clyde”, Allen chegou a filmar um final diferente para este filme, no qual Virgil era apanhado numa emboscada e fuzilado, como no filme de Arthur Penn, cena esta que foi abandonada na remontagem de que atrás vos falei; mas, para os cinéfilos mais inveterados, a cereja no topo do bolo das “homenagens” é Allen ter filmado uma cena no interior do célebre Restaurante Ernie’s, em São Francisco, onde Hitchcock também havia rodado duas cenas capitais em “Vertigo / A Mulher que Viveu Duas Vezes”, hoje um verdadeiro “filme de culto”
6.
Indiscutivelmente,
um dos motivos de atração deste filme é o tom de documentário no qual ele é
estruturado, e uma boa parte do seu humor reside no profundo contraste entre a
seriedade da locução e a comicidade das imagens que, em contraponto, nos são
mostradas. Allen tinha na memória, como vos disse atrás, os velhos
documentários do passado e levou esta homenagem a um tal ponto de
perfeccionismo que quem foi convidar para locutor foi Jackson Beck, a própria
voz dos documentários da Paramount dos anos 40. E essa mesma estrutura em
documentário, aqui e além acompanhada por imagens da época, acabou por ser um
esboço para “Zelig”, um dos grandes filmes de Allen realizado 14 anos depois, e
esse sim, inteiramente baseado em documentários de época;
Mais exemplos
haveria para salientar, mas creio que já vos macei demasiado…
E se comecei
falando-vos de Jerry Lewis, com ele irei terminar. É que este filme era para
ter sido realizado por Lewis, e não por Woody Allen. Suspeitando (e, pelos vistos,
com alguma razão…) da capacidade e da experiência deste como realizador, a
Produtora começou por dar o seu acordo ao filme, mas na condição de este ser
realizado por Lewis, e Allen concordou, embora com alguma relutância.
Seguiram-se
contactos entre Allen e Lewis, mas este acabou por declinar a oferta por não se
sentir muito convencido do projeto, em especial devido à estrutura do guião
demasiado baseada em sucessivos sketches, que Allen se recusava a
alterar significativamente. Esta recusa de Lewis deve ter sido recebida com
grande alívio por parte Allen, em cujo ego não cairia, certamente, muito bem o
facto de, num projeto tão pessoal, se ver dirigido pelo seu maior rival, com
quem poderia, fatalmente, entrar em conflito, como sucedeu com Peter Sellers no
“Casino Royale”.
Curiosamente,
nem Lewis nem Allen se referem a este facto nas respetivas autobiografias, mas
quem o relata com algum detalhe é John Baxter, na sua obra de referência sobre
o autor de “Manhattan” (4).
Disse-vos
atrás que, em minha opinião, este é um filme algo desequilibrado, com evidentes
problemas de ritmo na sua parte final, em contraste com a forma frenética como
o filme se inicia. Por exemplo, a cena dos prisioneiros acorrentados uns aos
outros, se no início tem a sua graça, a partir de determinada altura torna-se
algo penosa, tantas foram as vezes que foi repetida. E o mesmo se diga das
sucessivas cenas do bilhete com os supostos erros ortográficos no assalto ao
banco, que de tanto serem repetidas acabam por perder alguma eficácia.
Nada disso
altera, porém, o interesse que tem o visionamento deste filme histórico, o qual
contém, certamente, muitas cenas que poderíamos selecionar para uma antologia
do humor de Woody Allen: as impagáveis cenas em que intervêm os pais de Virgil,
disfarçados de Groucho Marx; as diversas cenas de assaltos e de fugas
fracassadas, com os gags das pistolas; a cena ao espelho com a toalha é
cintura; a teoria do psiquiatra em relação ao violoncelo; as hilariantes
tiradas de humor judaico…
Woody Allen
é, indiscutivelmente, um dos grandes realizadores do nosso tempo. Ao contrário
de outros grandes realizadores clássicos, de quem não chegámos a ser
contemporâneos, enquanto cinéfilos, com Allen tivemos a oportunidade de
acompanhar a construção de todo o edifício da sua Obra, tijolo após tijolo, e
julgo ser imperdível ver este momento inicial em que, timidamente, começou a
dar os primeiros passos.
Espero que
estejam de acordo comigo e se divirtam.
Sendo esta a
minha última intervenção, mais uma vez os meus agradecimentos a quem me
convidou e a quem teve a paciência de me ler e de me ouvir.
LUÍS MIGUEL MIRA
- ALLEN, Woody, “A Propósito de Nada”, Ediçoes 70, 2020, pág. 195
2.
Desde
os primórdios da Indústria Cinematográfica era habitual os Estúdios e/ou os
produtores dos filmes realizarem, antes da sua estreia oficial, sessões prévias
de apresentação para uma audiência selecionada, a fim de testarem a reação do
público. Em função desta e dos inquéritos individuais lançados à assistência,
os filmes podiam ser modificados, por forma a colmatar as principais
insuficiências detetadas. No caso deste primeiro filme de Allen, foram
escolhidos como publico um grupo de soldados americanos em licença no país,
tendo o filme sido projetado com uma muito reduzida e suave banda sonora. A
reação da plateia foi péssima…
3. Vd (1), pág. 12
4. Vd (1), pág. 12 BAXTER, John, “Woody Allen”, Edição Flammarion, 2000, pág. 207
Sem comentários:
Enviar um comentário