Este não é o dia seguinte do dia que foi ontem.
João Bénard da Costa
Será um desfilar de histórias, de opiniões, de
livros, de discos, poemas, canções, fotografias, figuras e figurões, que irão aparecendo
sem obedecer a qualquer especificação do dia, mês, ano em que aconteceram.
O Alexandre O’ Neill, no seu livro «No Reino da
Dinamarca», tem um poema chamado «Uma Lisboa Remanchada».
Um dos sítios dessa Lisboa remanchada pelo poeta é a
«Avenida da Liberdade»
Devido ao tempo de pandemia que nos assaltou, no
ano de 2020, não houve o habitual desfile do dia 25 de Abril.
Mas um homem, Carlos Ferreira de seu nome, de
bandeira ao ombro, desfilou sozinho pela Avenida.
Um longo grito de silêncio nos tempos difíceis por
que passávamos.
Carlos Ferreira, vítima de um AVC, morreria em
Junho de 2021. Tinha 73 anos.
Por bandeiras, mais uma história.
O meu
avô paterno foi uma das referências da minha vida de criança e adolescente.
Sempre que
necessário, apresentava-se assim:
«Mário
Santos, republicano histórico, benfiquista e anticlerical.»
Todos os
anos, pelo 5 de Outubro, subia ao Cemitério do Alto São João, depois à Praça
António José de Almeida para uns «Viva à República».
Morreu em
1968, com 93 anos.
Foi um dos
muitos que morreu sem saber qual a cor da liberdade.
Estava na
Praça António José de Almeida, quando, no 5 de Outubro de 1958, a PIDE prendeu
o General Humberto Delgado.
O meu pai
dizia-lhe que ele devia deixar-se dessas romagens que não conduziam a nada.
«Dizes tu! Eu
e o homem da bandeira nunca falhamos!»
Referia-se a
um republicano que, no 5 de Outubro, aparecia com uma grande bandeira
portuguesa. Esse chegou a ver a cor da liberdade e, depois de Abril, foi
militante do Partido Socialista.
O meu pai
morreu em Junho de 1990.
Num 25 de
Abril, 1988 (?), o meu pai whiscava, eu gintonicava, Cecília Bartoli, em fundo,
cantava Vivaldi, discorríamos sobre os tempos idos, dos que estavam para chegar
e ele batia na tecla de que o 25 de Abril acabaria nas mesmas
evocações-quase-solitárias do meu avô e dos companheiros republicanos
históricos.
Sucedeu
nascer um desesperante silêncio, agitei o gelo no copo, olhei a rodela de
limão, murmurei para dentro de mim que o meu pai era capaz de ter razão, mas
deixei o silêncio escorrer…
Que nada
perturbe esse silêncio… ainda estou a ouvi-lo… e numa, difusa, vagamente
avermelhada, imagem, admito ver o meu avô e o homem da bandeira…
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