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domingo, 20 de outubro de 2024

COMEÇOS DE LIVROS


Das mais gostosas aventuras nas longas, longas, longas leituras que tenho percorrido nesta vida, são os começos de livros. Também os finais. Também as capas.

E então as frases, os parágrafos, as páginas largamente sublinhadas?

No fundo de todos os fundos: os livros.

Ler prejudica gravemente  a ignorância.

Uma notícia muito triste que, recentemente, se soube: António Lobo Antunes não mais escreverá um romance. Uma linha sequer? pergunta-se. Perdeu a fala, perdeu a memória.

O começo que colocarei hoje, é o do Conhecimento do Inferno, o tempo em que António Lobo Antunes me maravilhava com os seus livros.

«O mar do Algarve é feito de cartão como nos cenários de teatro e os ingleses não percebem.»

terça-feira, 24 de setembro de 2024

COMEÇOS DE LIVROS

A Morte É Um Acto Solitário de Ray Bradbury

É um maravilhoso começo de livro

«Veneza, na Califórnia, tinha, nos velhos tempos, muito que a pudesse recomendasse a quem gostasse de estar triste. Era o nevoeiro quase todas as noites, e era, ao longo da costa, o gemer das máquinas nos poços de petróleo, e o bater da água suja nos canais, e o zumbir da areia a roçar as vidraças, quando o vento assobiava à volta das praças e ao longo das ruas desertas.

Era no tempo em que o pontão de Veneza, a cair aos bocados, morria no mar. E podia ver-se então gigantesca ossada de dinossauro, a montanha-russa, a coberto ou a descoberto, com o vaivém das marés.

No fim de um longo canal, viam-se as caravanas de um circo, decrépitas, para lá atiradas e abandonadas. E quem olhasse para as jaulas, à meia-noite, veria que lá dentro havia vida – peixes e camarões de ´+agua doce, que andavam ao sabor da maré. E tudo isto, afinal, era o circo do tempo, feito ruína, desfazendo-se em ferrugem.»

Quantos anos? Depois continuamos a recordar quem não queremos esquecer.

«Tenho tudo em meio e já não me restam muitos anos para acabar o que está e há-de vir.»

Mário Sacramento

«Morrer era agora minha liberdade, e eu tinha a vida inteira para executá-la

pormenorizadamente.»

Herberto Helder

Há dois géneros de pessoas: as que acham que tudo se passa no principio e as que acham que tudo se passa no fim. Foi isso que T.S. Eliot sobre isso escreveu: «In my beginning is my end».

Ou como diria o vagabundo no bar irlandês, acabando a última Pin:

Life is a bitch… and then you die.

Miguel Torga diz que o homem é em si uma solidão:

«Nascemos sós, vivemos sós, morremos sós.»

Uma prosa existente na papelada da casa e que não consegue saber o autor, ou os papéis de onde copiou, num guardanapo de café de bairro, a citação:

«Todos devemos deixar qualquer coisa atrás de nós, ao morrermos, dizia o meu avô. Um filho, um livro, um quadro, uma casa, uma parede ou um par de sapatos. Ou ainda um jardim plantado de flores. Qualquer coisa que a mão tocou e para onde irá a alma no instante da morte, E quando as pessoas olharem essa árvore ou essa flor que plantámos nós, estamos lá, sob os seus olhos.»

domingo, 14 de julho de 2024

COMEÇOS DE LIVROS


Os Nus e os Mortos de Norman Mailer.

Um grande livro.

Um bom começo:

«Ninguém podia dormir. Mal rompesse a manhã as lanchas de assalto seriam lançadas ao mar e a primeira vaga de tropas cavalgaria a rebentação e atacaria as praias de Anopopei. Em todo o comboio, em cada um dos barcos, os homens sabiam que dentro de poucas horas muitos deles estariam mortos.»

É verdade que são 703 páginas na edição do Círculo de Leitores mas terá que ser lido.

Deste livro Raoul Walsh fez um filme em mas o livro é que vale a pena.

Tudo se desenrola em torno de uma operação militar no Pacífico, durante a 2ª Guerra Mundial, onde um pelotão é alternadamente comandado por dois homens absolutamente distintos e inconciliáveis: um jovem tenente, culto, idealista e liberal e um sargento duro, intransigente, sádico e frustrado. Um violento choque de concepções antagónicas de comandar homens num teatro de guerra que demonstra a impossibilidade da coexistência do humanismo com a sobrevivência.

António Neves Pedro, o tradutor, numa pequena nota, avisa-nos para a linguagem descarnada sem artifícios literários, no fundo, uma tradução dificílima

Para que conste:

«Todas as personagens e incidentes descritos neste romance são pura ficção, e qualquer semelhança com alguma pessoa, viva ou morta, é simples coincidência.» 

domingo, 30 de junho de 2024

COMEÇOS DE LIVROS


 Mário de Carvalho a falar do começo de O Capote de Gogol em Quem disser o Contrário é Porque Está a Mentir, pág.94:

 «Repare que esta nota onde eu assinalei a importância e cautelas a ter com abertura do livro nem sempre, aparentemente, é tomada em conta por grandes autores. Gogol destarte: «Na repartição de… Mas será melhor não a nomearmos, porque nada há mais susceptível que os nossos empregados, públicos, desde os amanuenses aos chefes de repartição. Actualmente cada um sente-se em particular como se na sua pessoa toda a sociedade tivesse sido houvesse sido ofendida. Diz-se (…)» e prossegue com uma historieta sobre generalizações que pouco tem que ver com a acção propriamente dita. Só no final da página nos é apesentado o protagonista, Blanquemaquine, Acontece que «O Capote» é uma obra-prima. Não admitiríamos que qualquer professor de escrita craiativa admoestasse o grande escritor ucraniano: «Homem, mude lá isso. Deixe-de de derivações. Cut to the chase.»

 O exemplar de «O Capote» que existe na Biblioteca da Casa, é uma edição da importantíssima colecção «Cadernos Inquérito».

 É este começo da novela na tradução de José Marinho:

 «Na repartição de… mas será preferível não a nomearmos, porque nada de mais susceptível que os nossos empregados de repartição, desde os amanuenses aos chefes de serviço. Actualmente sente já cada particular como se na sua pessoa toda a sociedade houvesse sido ofendida.»

Da importância destes «Cadernos Inquérito», sublinha-se o que João Marques Lopes relata na «Biografia» de José Saramago:

«Á data, vive ainda com os pais no pequeno andar independente do número 11 da Rua Carlos Ribeiro, à Penha de França. Entre a casa, o emprego e as bibliotecas, o serralheiro mecânico iniciava um tímido processo de mobilidade social. Transitava a amanuense. Estava prestes a comprar os seus primeiros livros – todos da colecção «Cadernos Inquérito», à época instrumento importante de divulgação cultural e generalista – graças ao empréstimo de trezentos escudos feito por um colega de trabalho.»

Legenda: capas de exemplares da «Colecção Inquérito» tiradas do site da OLX

quinta-feira, 13 de junho de 2024

COMEÇOS DE LIVROS


Começo de Os Cus De Judas de António Lobo Antunes:

«Do que eu gostava mais no Jardim Zoológico era do ringue de patinagem sob as árvores e do professor preto muito direito a deslizar para trás no cimento em elipses vagarosas sem mover um músculo sequer, rodeado de meninas de saias curtas e botas brancas, que, se falassem, possuíam seguramente vozes tão de gaze como as que nos aeroportos anunciam a partida dos aviões, sílabas de algodão que se dissolvem nos ouvidos à maneira de fins de rebuçado na concha da língua.»

Um começo de livro que coloco no número dos meus preferidos.

É uma imagem que transporto dos meus distantes tempos de menino e quando a li expressa pela prosa de António Lobo Antunes, comovi-me.

Já por diversas vezes aqui expressei a ideia de que os recentes romances de António Lobo Antunes tornaram-se-me de difícil leitura, por vezes, mesmo incompreensível.

De um só fôlego li Memória de Elefante, Os Cus de Judas, Explicação dos Pássaros e disse para comigo que tinha ali um autor para a vida.

Acontece até que os títulos que Lobo Antunes arranja para os seus romances, são uns excelentes achados. Mas já são livros que não li, ou deixei-os nas primeiras 50 páginas, que é a medida que coloquei a mim mesmo para que um livro me leve até ao fim.

Exemplos:

Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura,

Que farei quando tudo arde?,

Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo,

Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra no Mar?,

Não É Meia Noite Quem Quer,

Caminho Como Uma Casa Em Chamas,

Para Aquela que Está Sentada no Escuro à Minha Espera 

Até Que as Pedras Se Tornem Mais Leves Que a Água

A Última Porta antes da Noite.

Sou, pois, um desistente leitor de António Lobo Antunes.

Hélas!

Já nem as crónicas, que sempre gostei de ler, o autor deixou de as escrever para os jornais e revistas que antes as publicavam. A editora que o suporta consentiu na patetice do autor, ou teve receios, dado o seu conhecido mau feitio, que saísse porta fora a caminho sabe-se lá de quê.

Legenda: contra capa da 1ª edição de Os Cus deJudas.

domingo, 26 de maio de 2024

COMEÇOS DE LIVROS


«O lendário Rio Grande, naquele trecho onde o cruzámos e naquela época do ano, não passava de um magro fio de água a escorrer melancólico pelo leito cor de cobre brunido.

- A seca – explica lacónico o chefe do comboio, sujeito baixo, de agudo perfil azteca.

A nossa composição – duas carruagens com pouquíssimos passageiros – era arrastada por uma velha locomotiva, lente e sem fôlego.

- Tu vês – murmurei para a companheira –nenhuma pessoa em seu juízo perfeito faz esta viagem de comboio…

- Os loucos viajam de avião – sorriu ela. – Até agora não tenho de que me queixar.»

Começo de México de Erico Veríssimo.

Teria os 13/14 anos, o meu pai encontrou-me num dos maples da Biblioteca da casa a ler este livro.

-Estás a ler um grande livro de um lindíssimo país.

Tinha toda a razão.

O epílogo do livro, com uma bonita capa de Bernardo Marque, compadre do poeta José Gomes Ferreira:

«É bom estar de volta. Tenho de confessar a mim mesmo que já sentia falta desta ordem, desta limpeza. Deste conforto.

Mas ai! O tempo passa, a saudade do México começa a assaltar-me com tanta frequência que termino numa confusão de sentimentos.

Eu sabia que o epílogo deste livro não podia ser feliz! Estou talvez condenado a oscilar o resto da vida entre esses dois amores, sem saber exactamente o que desejo mais, se o mundo mágico ou o mundo lógico. Só me resta uma esperança de salvação. É a de que, entre a tese americana e a antítese mexicana, o Brasil possa vir a ser um dia a desejada síntese.

Y quién sabe?»

A imagem deste texto, é um dos desenhos que Erico Veríssimo fez para ilustrar o seu livro. 

domingo, 12 de maio de 2024

COMEÇOS DE LIVROS


A minha vida de leitor está repleta de grandes livros, de grandes começos.

Há dias, reparei que Moby Dick ainda não tinha entrado em Olhar as Capas.

Espanto dos espantos.

Já lá mora e agora entra nos Começos de Livros.

Lamentavelmente perdeu-se – onde? Como? - a velha edição, comprada pelo meu pai, da Moby Dick da Estúdios Cor. A que hoje faz parte da Biblioteca da Casa é uma edição da Unibolso, mas mantém a tradução de Alfredo Margarido e Daniel Gonçalves.

É um enorme começo de livro de um fascinante livro, um clássico da literatura.

«Tratem-me por Ismael. Há alguns anos – não interessa quantos – achando-me com pouco ou nenhum dinheiro na carteira, e sem qualquer interesse particular que me prendesse à terra firme, apeteceu-me voltar a navegar e tornar a ver o mundo das águas. É uma maneira que eu tenho de afugentar o tédio e de normalizar a circulação. Sempre que sinto um sabor a fel na boca; sempre que a minha alma se transforma num Novembro brumoso e húmido; sempre que dou por mim a parar diante de agências funerárias e a marchar na esteira dos funerais que cruzam o meu caminho; e, principalmente, quando a neurastenia se apodera de mim de tal modo que preciso de todo o meu bom senso para não começar a arrancar os chapéus de todos os transeuntes que encontro na rua – percebo então que chegou a altura de voltar para o mar, tão cedo quanto possível. É uma forma de fugir ao suicídio.»

Sempre guardei – está devidamente sublinhado -  aquele:

«Sempre que sinto na boca uma amargura crescente, sempre que sinto na minha alma a humidade e a chuva de Novembro, sempre que minha hipocondria me domina de tal modo que é necessário um forte princípio moral para me impedir de sair deliberadamente para a rua e socar metodicamente o chapéu das pessoas - … então considero que é a altura de fazer-me ao mar e o mais depressa possível.»

Um grande livro e não poderá ser esquecido o filme que John Huston realizou em 1956. Uma daquelas tarefas julgadas quase impossíveis mas de que o velho John Huston, se sai mito bem, tal como Gregory Peck no papel do capitão Ahad, para nunca se deixasse de ouvir a perna de pau a bater no convés do navio Pequod.

Também não se pode esquecer, logo a abrir o livro, a Etimologia fornecida pelo defunto contínuo de uma escola elementar:

«O pálido contínuo! Bem me recordo dele, com a roupa, o coração, o corpo e o cérebro a largar o último fio… Sacudia sem cessar o pó dos seus velhos léxicos e das suas velhas gramáticas, com um lenço bizarro, cujo padrão, como por escárnio, representava as joviais bandeiras de todas as nações do mundo. Adorava espanar a poeira dos velhos calhamaços; aquilo era uma maneira subtil de não esquecer que também se havia de transformar em pó.»

O capitão Ahab impõe à sua tripulação a concretização do seu maior desejo – destruir a grande baleia branca. Sob o seu rígido comando a missão comercial do Pequod é alterada tornando-se uma missão de vingança.
Para Ahab, o monstro que destruiu o seu corpo não é uma criatura, mas sim o símbolo de algo desconhecido.
Sem medo das catástrofes naturais, dos maus presságios ou mesmo da morte, Ahab impele o seu navio em direcção ao perigo.

O capitão Ahab, lembra à sua tripulação que o objectivo da viagem comercial vai ser alterada e passa a ser uma demanda vingativa, a caça à baleia branca que o tinha deixado sem uma perna e que agora era uma perna que tinha sido confecionada a bordo com um pedaço de osso polido da queixada de um cachalote.

Mais à frente, páginas 310 surge-nos o avisos:

Não há portanto nenhum meio de saber-se como é a baleia sem irmos cacá-la. Simplesmente isso corresponde ao risco de uma pessoa ser esmagada pelo peso da sua curiosidade e depois arrastada para o fundo do mar. Portanto, aconselho ao leitor que modere a sua curiosidade a respeito das baleias.»

O livro está largamente sublinhado. Numa das margens a observação: ler o Sermão de Jonas na baleia. «O Senhor fez com que um grande peixe engolisse Jonas, e ele ficou dentro do peixe três dias e três noites».

Mas fiquemo-nos com o capitão Ahab monologando, páginas 167, com o seu cachimbo, recordando eu velhas frases lidas aqui e ali: «um fumador de cachimbo nunca está só», ou este pedaço de prosa do jornalista António Carvalho: «Quando os meus filhos nasceram, o fumo do meu cachimbo recebeu-os uma a um, como uma nuvem de boas vindas. Uma nuvem feita de imaginação e de sonho. Todas as minhas casas ficaram impregnadas desses odores – a cada um o seu perfume. Mais tarde quando me separei, os meus filhos confessavam-me que sentiam a falta do cheiro do meu cachimbo. Pelo menos ficou-lhes o meu rasto… Efémero, como qualquer fumo…»

Mas regressemos ao monólogo do capitão:

«Ahab ficou por um momento debruçado sobre a amurada, e depois, como já era seu costume recente, chamou um dos marinheiros de quarto e mandou-o buscar ao camarote o cachimbo e o banco de marfim. Acendendo o cachimbo na lâmpada da bitácula e colocando o banco a barlavento, sentou-se a fumar.

Duranta alguns momentos saíram da sua boca constantes e densas baforadas de fumo que o vento lhe arrojava à face.

«Porque será – monologou ele – que este fumo perdeo condão de ma calmar? Oh! meu cachimbo, triste vida a minha se os teus encantos se perderam! Aqui tenho estado eu a fumegar sem prazer – a fumar sem dar por isso, contra o vento; e soltando fumaças nervosas como uma baleia moribunda, cujos derradeiros jacto são mais violentos e cheios de agonia. Que se passa contigo, meu cachimbo? Foste criado para tranquilizar, para lnçar suaves vapores brancos para o meio de tranquilos cabelos brancos e não para as ásperas madeixas cor de ferro do teu amo. Não mais fumarei…

Lançou ao mar o cachimbo ainda aceso; o lume silvou nas ondas e no mesmo instante a ressaca do navio lançou para o largo a bolha que assinalava o ponto onde o cachimbo se tinha afundado.»

Legenda: Gregory Peck no filme Moby Dick de John Huston

terça-feira, 16 de abril de 2024

COMEÇOS DE LIVROS


Começo de O Fogo e as Cinzas de Manuel da Fonseca:

«Antigamente o largo era o centro do mundo. Hoje é apenas um cruzamento de estradas, com casas em volta e uma rua que sobe para a Vila. O vento dá nas faias e a ramaria farfalha num suave gemido; o pó redemoínha e cai sobre o chão deserto. Ninguém. A vida mudou-se para o outro lado da Vila».

Terá sido o primeiro livro que li de Manuel da Fonseca.

Todas as leituras que, na adolescência, fiz dos livros da Biblioteca da Casa, foram, na sua quase totalidade, pescaria à mão, à linha, feitas, sem qualquer indicação, sem qualquer orientação. Claro que houve livros que abandonei por não entender nada, por não encontrar um mínimo de chamamento. Deveria ter feito um registo dos livros que abandonei. Tentei um dia fazer esse apanhado, mas perdi-me por completo.

Claro que lendo Eça de Queiroz aos 14 anos, teria que a ele voltar. Sempre

Mas este começo do livro não pode enganar ninguém, um começo que, quando o releio, ainda, fortemente me comove.

«Ninguém. A vida mudou-se para o outro lado da Vila».


quinta-feira, 21 de março de 2024

COMEÇOS DE LIVROS


Começo de A Angústia do Guarda-Redes Antes do Penalty de Peter Handke:

«Quando o canalizador Josef  Bloch, que tinha sido um conhecido guarda-redes, se apresentou ao trabalho uma manhã, soube que fora despedido».

Há os começos de livros com meia dúzia de palavras. Como neste livro de Peter Handke.

São os melhores começos?

O mês das grandes festas populares em todas as cidades do país. O tempo de perfumes mágicos, o perfume dos manjericos das sardinheiras em flor, de sardinhas assadas, de bifanas de porco fritas. E toneladas de jarros de sangria.

Guardo da infância as quentes noites de Verão, lembro a miudagem a correr nas ruas, e as pessoas vinham para a porta da rua conversar, outras ficavam à janela, as pessoas conheciam-se, falavam, por vezes zangavam-se, outros iam para os jardins, ficavam pelos bancos ou bebiam cervejas e capilés nas leitarias do bairro.

A televisão viria a destruir o feliz convívio das gentes simples do meu bairro. As pessoas fecharam-se nas casas. E passámos a não saber nada uns dos outros, como numa peça de teatro de Peter Handke.

sábado, 2 de março de 2024

COMEÇOS DE LIVROS


«Em Megara, parte baixa de Cartago, e nos jardins de Amílcar.»

Esta é o começo de Salambô de Gustave Flaubert na tradução de F. da Silva Vieira, que existe na Biblioteca da Casa.

Contudo, Ana Cristina Leonardo, numa das suas crónicas com vai-vem ao café do Monte, considera que é um bom começo de livro e ela leu na tradução de Pedro Tamem:

«Era em Megara, subúrbio de Cartago, nos jardins de Amilcar.»

E adianta, Ana Cristina: «Mas mais felizes ainda os que conseguem ouvir a música da frase em francês:

«C’était à Megara, faubourg de Carthage, dans les jardins d’Hamilcar»

Os livros devem ler-se nas línguas originais.

Como saem os livros de José Saramago nas diversas traduções?

O meu pai sempre insistiu que, pelo menos, eu deveria aprender, a sério, o francês e o inglês.

Aconteceram, pela minha parte, os costumados ouvidos de mercador, fingir que não ouvi, fazer-me desentendido.

Hoje, pelas manhãs, torço a orelha.

sábado, 10 de fevereiro de 2024

COMEÇOS DE LIVROS

«A minha mãe e o meu pai eram ainda duas crianças quando se casaram. Ele tinha dezoito, ela tinha dezasseis e eu três anos.»

Lady Sings the Blues de Billie Holiday

sexta-feira, 1 de julho de 2022

AH! SIM, O COMEÇO DE LIVROS


O livro de José Carlos Barros, Um Amigo Para o Inverno é, segundo se pode ler na capa «a revisitação de uma história verdadeira mas quase desconhecida, do nosso passado recente», que também nos oferece episódios e palavras que marcam vidas. No capítulo I, página 13, determina-se: «Talvez seja verdade: quando tememos perder uma coisa é como se já a tivéssemos perdido» e a partir daqui arranca-se para a leitura que falará de algo que sempre me apaixonou: começos de livros:

«Miguel haverá de alertar-me para a importância das primeiras frases. Tantos os casos conhecidos. Os Cem Anos de Solidão e a fabulosa descoberta do gelo. O Quixote e o lugar de cujo nome o Autor não quer lembrar-se. A Ernestina e o binóculo capaz da transfiguração do olhar. Ninguém lê romances que começam com descabidas preocupações de estilo, a armar. Isso foi chão que deu uvas.»

Gosto de bons começos de livros.

Já comprei livros pelos começos, assim de repente lembro-me de A Morte é Um Acto Solitário do Ray Bradbury:

«Veneza, na Califórnia, tinha, nos velhos tempos, muito que a pudesse recomendasse a quem gostasse de estar triste. Era o nevoeiro quase todas as noites, e era, ao longo da costa, o gemer das máquinas nos poços de petróleo, e o bater da água suja nos canais, e o zumbir da areia a roçar as vidraças, quando o vento assobiava à volta das praças e ao longo das ruas desertas.

Era no tempo em que o pontão de Veneza, a cair aos bocados, morria no mar. E podia ver-se então gigantesca ossada de dinossauro, a montanha-russa, a coberto ou a descoberto, com o vaivém das marés.

No fim de um longo canal, viam-se as caravanas de um circo, decrépitas, para lá atiradas e abandonadas. E quem olhasse para as jaulas, à meia-noite, veria que lá dentro havia vida – peixes e camarões de água doce, que andavam ao sabor da maré. E tudo isto, afinal, era o circo do tempo, feito ruína, desfazendo-se em ferrugem.

O pai do Gin-Tonic deliciava-se com o começo de Thais de Anatole France:

«En ce temps-là le désert etait peuplé d’anachorètes.»

Maria Gabriela Llansol escreveu um livro, Na Casa de Julho e Agosto que começa assim:

«O começo de um livro é precioso. Muitos começos são preciosíssimos. Mas breve é o começo de um livro – mantém o começo prosseguindo. Quando este se prolonga, um livro seguinte se inicia. Basta esperar que a “decisão da intimidade” se pronuncie.»

Dinis Machado começa assim Reduto Quase Final:

«Abertura com a mais velha estação de comboios do mundo»  e acrescenta: «Qualquer maneira de começar é uma boa maneira de começar».                 

Poderia ainda falar do fabuloso começo de O Ano da Morte de Ricardo Reis de José Saramago:

«Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas de barro, há cheia nas lezírias. Um barco escuro sobe o fluxo soturno, é o Highland Brigade que vem atracar ao cais de Alcântara. O vapor é inglês, da Mala Real, usam-no para atravessar o Atlântico, entre Londres e Buenos Aires, como uma lançadeira nos caminhos do mar, para lá, para cá, escalando sempre os mesmos portos, La Plata, Montevideo, Santos, Rio de Janeiro, Pernambuco, Las Palmas, por esta ou inversa ordem, e, se não naufragar na viagem, ainda tocará em Vigo e Boilogne-sur-Mer, enfim entrará o Tamisa como agora vai entrando o Tejo, qual dos rios o maior, qual aldeia. Não é grande embarcação, desloca catorze mil toneladas, mas aguenta bem o mar, como outras vezes se provou nesta travessia, em que, apesar do mau tempo constante, só os aprendizes de viajante oceânico enjoaram, ou os que, mais veteranos, padecem de incurável delicadeza do estômago, e, por ser tão caseiro e confortável nos arranjos interiores, foi-lhe dado, carinhosamente, como ao Highland Monarch, seu irmão gémeo, o intimo apelativo de vapor de família. Ambos estão providos de tombadilhos espaçosos para sport e banhos de sol, pode-se jogar, por exemplo, o cricket, que, sendo jogo de campo, também é exercitável sobre as ondas do mar, deste modo se demonstrando que ao império britânico nada é impossível, assim seja a vontade de quem lá manda. Em dias de amena meteorologia, o Highland Brigade é jardim de crianças e paraíso de velhos, porém não hoje, que está chovendo e não iremos ter outra tarde. Por trás dos vidros embaciados de sal, os meninos espreitam a cidade cinzenta, urbe rasa sobre colinas, como se só de casas térreas construída, por acaso além de um zimbório alto, uma empresa mais esforçada, um vulto que parece ruína de castelo, salvo se tudo isto é ilusão, quimera miragem criada pela movediça cortina das águas que descem do céu fechado.»

E ainda o estonteante. galopante começo de Trabalhos e Paixões de Benito Prada do Fernando Assis Pacheco:

«Quando o Padeiro Velho de Casdemundo teve a certeza de que Manolo Cabra lhe desfeiteara a irmã, em dois segundos decidiu tudo. Nessa mesma noite matou-o de emboscada, arrastou o cadáver para o palheiro e foi acender o forno com umas vides que comprara para as empanadas da festa de San Bartolomé.

O irmão do meio encarregou-se de cortar a cabeça ao morto. O Padeiro Velho amanhou-o e depois chamuscou-o bem chamuscado. Às duas da manhã untou o Cabra de alto a baixo com o tempero, enfiando-lhe um espeto pelas nalgas. Às cinco estava assado.
«Caramba», disse o irmão do meio, que admirava todas as invenções do mais velho, «é à segoviana!»
«Mas não lhe pões o dente», cortou o outro.
Entretanto o mais novo, regressado já do Pereiro, aonde fora avisar o Padre Mestre, manifestou desejos de capar Manolo Cabra. O do meio olhou muito sério para o Padeiro Velho. Este cuspiu enojado e decretou:
«É tudo para os cães. E agora tragam-me lá a roupa do fiel defunto, que já não tem préstimo senão no inferno.»
Se perguntassem ao Padeiro Velho o que mais queria naquele momento, teria respondido:
«Assar-lhe até a memória.»

Mas agora terei de abandonar a prosa : «tenho um javali ao lume».

domingo, 22 de agosto de 2021

RELANÇANDO COMEÇOS DE LIVROS


Acima de tudo gosta de livros.

Já comprou livros pelos começos, já comprou livros pelas capas – a capa de um livro é uma arte a que hoje pouco se liga e há capas muito bonitas .-, já comprou livros pelos finais.

Mas, acima de tudo, gosta de livros.

 Era o tempo em que havia livrarias e se folheavam livros naqueles silêncios monásticos.

Maria Gabriela Llansol, escritora em que nunca conseguiu entrar, apesar de diversas tentativas – o problema é todo dele! – escreveu um livro, Na Casa de  Julho e Agosto, que começa assim:

«O começo de um livro é precioso. Muitos começos são preciosíssimos. Mas breve é o começo de um livro – mantém o começo prosseguindo. Quando este se prolonga, um livro seguinte se inicia. Basta esperar que a “decisão da intimidade” se pronuncie.»

Dinis Machado no começo de Reduto Quase Final:

«Abertura com a mais velha estação de comboios do mundo» e acrescenta: «Qualquer maneira de começar é uma boa maneira de começar».

Para começar, havia muitos excelentes começos de livros, mas o começo de Paixões e Trabalhos de Benito Prada de Fernando Assis Pacheco, é simplesmente extraordinário.

Terrível aquele até lhe assava a memória.

«Quando o Padeiro Velho de Casdemundo teve a certeza de que Manolo Cabra lhe desfeiteara a irmã, em dois segundos decidiu tudo. Nessa mesma noite matou-o de emboscada, arrastou o cadáver para o palheiro e foi acender o forno com umas vides que comprara para as empanadas da festa de San Bartolomé.

O irmão do meio encarregou-se de cortar a cabeça ao morto. O Padeiro Velho amanhou-o e depois chamuscou-o bem chamuscado. Às duas da manhã untou o Cabra de alto a baixo com o tempero, enfiando-lhe um espeto pelas nalgas. Às cinco estava assado.
«Caramba», disse o irmão do meio, que admirava todas as invenções do mais velho, «é à segoviana!»
«Mas não lhe pões o dente», cortou o outro.
Entretanto o mais novo, regressado já do Pereiro, aonde fora avisar o Padre Mestre, manifestou desejos de capar Manolo Cabra. O do meio olhou muito sério para o Padeiro Velho. Este cuspiu enojado e decretou:
«É tudo para os cães. E agora tragam-me lá a roupa do fiel defunto, que já não tem préstimo senão no inferno.»
Se perguntassem ao Padeiro Velho o que mais queria naquele momento, teria respondido:
«Assar-lhe até a memória.»