O livro de José Carlos Barros, Um Amigo Para o Inverno é, segundo se pode ler na capa «a revisitação de uma história verdadeira mas quase desconhecida, do nosso passado recente», que também nos oferece episódios e palavras que marcam vidas. No capítulo I, página 13, determina-se: «Talvez seja verdade: quando tememos perder uma coisa é como se já a tivéssemos perdido» e a partir daqui arranca-se para a leitura que falará de algo que sempre me apaixonou: começos de livros:
«Miguel haverá de alertar-me para a importância das primeiras frases. Tantos os casos conhecidos. Os Cem Anos de Solidão e a fabulosa descoberta do gelo. O Quixote e o lugar de cujo nome o Autor não quer lembrar-se. A Ernestina e o binóculo capaz da transfiguração do olhar. Ninguém lê romances que começam com descabidas preocupações de estilo, a armar. Isso foi chão que deu uvas.»
Gosto de bons começos de livros.
Já comprei livros pelos começos, assim de repente lembro-me de A Morte é Um Acto Solitário do Ray Bradbury:
«Veneza,
na Califórnia, tinha, nos velhos tempos, muito que a pudesse recomendasse a
quem gostasse de estar triste. Era o nevoeiro quase todas as noites, e era, ao
longo da costa, o gemer das máquinas nos poços de petróleo, e o bater da água suja
nos canais, e o zumbir da areia a roçar as vidraças, quando o vento assobiava à
volta das praças e ao longo das ruas desertas.
Era no tempo em que o pontão de Veneza, a cair aos
bocados, morria no mar. E podia ver-se então gigantesca ossada de dinossauro, a
montanha-russa, a coberto ou a descoberto, com o vaivém das marés.
No fim de um longo canal, viam-se as caravanas de um circo, decrépitas, para lá atiradas e abandonadas. E quem olhasse para as jaulas, à meia-noite, veria que lá dentro havia vida – peixes e camarões de água doce, que andavam ao sabor da maré. E tudo isto, afinal, era o circo do tempo, feito ruína, desfazendo-se em ferrugem.
O pai do Gin-Tonic deliciava-se
com o começo de Thais de Anatole
France:
«En ce temps-là le désert etait peuplé d’anachorètes.»
Maria Gabriela Llansol escreveu um livro, Na Casa de Julho e Agosto que começa assim:
«O começo de um livro é precioso. Muitos começos são preciosíssimos. Mas breve é o começo de um livro – mantém o começo prosseguindo. Quando este se prolonga, um livro seguinte se inicia. Basta esperar que a “decisão da intimidade” se pronuncie.»
Dinis Machado começa assim Reduto Quase Final:
«Abertura com a mais velha estação de comboios do mundo» e acrescenta: «Qualquer maneira de começar é uma boa maneira de começar».
Poderia ainda falar
do fabuloso começo de O Ano da Morte de
Ricardo Reis de José Saramago:
«Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas de barro, há cheia nas lezírias. Um barco escuro sobe o fluxo soturno, é o Highland Brigade que vem atracar ao cais de Alcântara. O vapor é inglês, da Mala Real, usam-no para atravessar o Atlântico, entre Londres e Buenos Aires, como uma lançadeira nos caminhos do mar, para lá, para cá, escalando sempre os mesmos portos, La Plata, Montevideo, Santos, Rio de Janeiro, Pernambuco, Las Palmas, por esta ou inversa ordem, e, se não naufragar na viagem, ainda tocará em Vigo e Boilogne-sur-Mer, enfim entrará o Tamisa como agora vai entrando o Tejo, qual dos rios o maior, qual aldeia. Não é grande embarcação, desloca catorze mil toneladas, mas aguenta bem o mar, como outras vezes se provou nesta travessia, em que, apesar do mau tempo constante, só os aprendizes de viajante oceânico enjoaram, ou os que, mais veteranos, padecem de incurável delicadeza do estômago, e, por ser tão caseiro e confortável nos arranjos interiores, foi-lhe dado, carinhosamente, como ao Highland Monarch, seu irmão gémeo, o intimo apelativo de vapor de família. Ambos estão providos de tombadilhos espaçosos para sport e banhos de sol, pode-se jogar, por exemplo, o cricket, que, sendo jogo de campo, também é exercitável sobre as ondas do mar, deste modo se demonstrando que ao império britânico nada é impossível, assim seja a vontade de quem lá manda. Em dias de amena meteorologia, o Highland Brigade é jardim de crianças e paraíso de velhos, porém não hoje, que está chovendo e não iremos ter outra tarde. Por trás dos vidros embaciados de sal, os meninos espreitam a cidade cinzenta, urbe rasa sobre colinas, como se só de casas térreas construída, por acaso além de um zimbório alto, uma empresa mais esforçada, um vulto que parece ruína de castelo, salvo se tudo isto é ilusão, quimera miragem criada pela movediça cortina das águas que descem do céu fechado.»
E ainda o estonteante. galopante começo de Trabalhos e Paixões de Benito Prada do Fernando Assis Pacheco:
«Quando o Padeiro Velho de Casdemundo teve a certeza
de que Manolo Cabra lhe desfeiteara a irmã, em dois segundos decidiu tudo.
Nessa mesma noite matou-o de emboscada, arrastou o cadáver para o palheiro e
foi acender o forno com umas vides que comprara para as empanadas da festa de
San Bartolomé.
O irmão do meio encarregou-se de cortar a cabeça ao
morto. O Padeiro Velho amanhou-o e depois chamuscou-o bem chamuscado. Às duas
da manhã untou o Cabra de alto a baixo com o tempero, enfiando-lhe um espeto
pelas nalgas. Às cinco estava assado.
«Caramba», disse o irmão do meio, que admirava todas as invenções do mais
velho, «é à segoviana!»
«Mas não lhe pões o dente», cortou o outro.
Entretanto o mais novo, regressado já do Pereiro, aonde fora avisar o Padre
Mestre, manifestou desejos de capar Manolo Cabra. O do meio olhou muito sério
para o Padeiro Velho. Este cuspiu enojado e decretou:
«É tudo para os cães. E agora tragam-me lá a roupa do fiel defunto, que já não
tem préstimo senão no inferno.»
Se perguntassem ao Padeiro Velho o que mais queria naquele momento, teria
respondido:
«Assar-lhe até a memória.»
Mas agora terei
de abandonar a prosa : «tenho um javali ao lume».
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