Certo, certo, não
poderei garantir, mas a primeira vez que ouvi falar nas Berlengas foi na velha
edição de Os Pescadores de Raúl Brandão, edição da Bertrand de 1923, que estava
em casa do meu pai.
Sempre desejei ir às
Berlengas.
Nunca arranjei
companheiros para a viagem, talvez nem sequer me tenha esforçado em
arranjá-los. Também nunca fui ao Bugio, ali na barra do Tejo, mas, por motivos
profissionais, passei bem perto.
Leio agora que está
difícil chegar até às Berlengas.
Burocracias várias e,
acima de tudo, questões de segurança, regras que impõem um limite de 550
visitantes em simultâneo.
As Berlengas atraem
milhares de pessoas, 65 mil por ano, mais de metade no Verão.
Gosto de faróis.
Ainda segundo Raul
Brandão:
«Os homens devem ser felizes diante deste espectáculo sempre igual e
sempre renovado.»
Não sendo um leitor
atento e regular de Mário Cláudio, um dia, apenas pelo título, comprei O Último Faroleiro de Muckle Flugga.
Tinha que ser pelo título que havia de comprar o livro, pois não tenho um
grande entusiasmo pela escrita de
O livro tem este começo:
«Com os cotovelos da camisola gastos por se apoiar no balcão de
linóleo, levantando a caneca de lager, e os fundilhos dos jeans puídos por se
suster no banco do costume, à espera da tarde ou da noite de inopinada
maravilha, decidiu que se impunha, que diabo, radicalizar a mudança de vida.
Persistia a chuva de Aberdeen que molha profundamente, ainda quando não parece
cair, e tardava a Primavera mais do que seria admissível, pondo a doer, de tão
imobilizadas, as ubiquas lâmpadas de vapor de mercúrio.»
Li num Fugas do Público que, desde o início da automatização das funções reservadas
aos faróis, não só resultou o fim de uma profissão lendária como ainda o
consequente afastamento de faroleiros e respectivas famílias das pequenas
fortificações, deixando espaço ao abandono e destruição. Foi a partir deste
cenário que a Trinity House, a
organização responsável pela gestão dos faróis na costa inglesa, encontrou na
reconversão e renovação dos faróis a hotéis ou casas de turismo rural, uma
saída para a situação. Murmurei então de mim para comigo: ora aqui está uma
estupenda ideia para passar uns dias. Recortei o endereço e lancei a ideia para
o baú das viagens-que-queria-fazer-mas-que-nunca-irão-acontecer .
Fico-me então a olhar para as falésias verdes e selvagens da Grã Bretanha, para aquela costa da Cornualha.
E aqui o velho texto do Raul Brandão lido em Os Pesacdores:
Se houvesse justiça no
planeta, eu já tinha sido nomeado vereador deste castelo, onde vivem três
veteranos que de velhos criaram musgo — ou pelo menos faroleiro. Como sou um
contemplativo, o lugar convinha-me perfeitamente. Os homens devem ser felizes
diante deste espectáculo sempre igual e sempre renovado De Inverno nenhum barco
atraca às Berlengas. Só e Deus no mais belo sítio da costa portuguesa!...
Atrevo-me a falar a um velho musaranho, de focinho arreliador, que está metido
no farol, de costas para o mar, fingindo que me não vê, a esfregar e a polir os
metais reluzentes.
— Hein?...
— Hum!...
Rosna e não diz palavra que se entenda.
— Olá!
Olha-me com desprezo e continua a polir os metais já polidos, como se eu não
existisse. Mas não desanimo facilmente e teimo:
— Que beleza, han?!...
Toquei-o. O homem sacode os ombros, levanta-se, atira o pa¬no fora, encara-me
de frente, com os bigodes assanhados entre as rugas e um olho azul de faiança
cheio de cólera:
— Que beleza o quê? Que beleza?... Isto?! — E ri-se. — O vento e o mar! Sempre
o vento e o mar! O vento, que no Inverno não me deixa chegar à porta, e o mar
todo o dia, toda a noite a bramir! O mar desesperado, o vento desesperado... Eu
não sou um faroleiro — sou um náufrago. Que beleza, hein?... Nem posso dormir!
Nem dormir! Toda a noite o vento uiva, toda a noite o mar ecoa, ameaçando
submergir esta ilha do diabo!...
Julguei-me autorizado a interrompê-lo:
— Mas no Verão é esplêndido...
- Nem olho. Só me resta uma esperança — fugir. Se não me mudam, endoideço. O
amigo sabe quantos endoideceram já? Três!...
E atirando os braços para o ar:
— Uma calamidade! Aqui não se sabe nada, aqui não chega nada. Nunca! Nunca! Nem
a pneumónica aqui chegou. E não posso ter uma couve, não posso ter uma
abóbora... Os coelhos devoram tudo. É uma praga!
— Dê-lhes tiros.
— Tiros?! — E ri-se com dois dentes e desprezo. - Quando quero um coelho, ato
um anzol a um pau, meto o pau na lura e tiro o coelho para fora; quando quero
um peixe, ato um anzol a uma linha e deito a linha à água... Mas o que eu quero
é fugir! Fugir! Fugir para muito longe, para onde não ouça o mar, para onde não
veja o mar!
Roncou... Percebi que repetia com escárnio: — Que beleza, han!... — E
voltando-se, outra vez com o pano na mão, continuou a esfregar e a polir com
desespero os metais — de costas viradas para o mar...
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