sábado, 2 de julho de 2022

CONVERSANDO


Certo, certo, não poderei garantir, mas a primeira vez que ouvi falar nas Berlengas foi na velha edição de Os Pescadores de Raúl Brandão, edição da Bertrand de 1923, que estava em casa do meu pai.

Sempre desejei ir às Berlengas.

Nunca arranjei companheiros para a viagem, talvez nem sequer me tenha esforçado em arranjá-los. Também nunca fui ao Bugio, ali na barra do Tejo, mas, por motivos profissionais, passei bem perto.

Leio agora que está difícil chegar até às Berlengas.

Burocracias várias e, acima de tudo, questões de segurança, regras que impõem um limite de 550 visitantes em simultâneo.

As Berlengas atraem milhares de pessoas, 65 mil por ano, mais de metade no Verão.

Gosto de faróis.

Ainda segundo Raul Brandão:

«Os homens devem ser felizes diante deste espectáculo sempre igual e sempre renovado.»

Não sendo um leitor atento e regular de Mário Cláudio, um dia, apenas pelo título, comprei O Último Faroleiro de Muckle Flugga. Tinha que ser pelo título que havia de comprar o livro, pois não tenho um grande entusiasmo pela escrita de Mário Cláudio.

O livro tem este começo:

 «Com os cotovelos da camisola gastos por se apoiar no balcão de linóleo, levantando a caneca de lager, e os fundilhos dos jeans puídos por se suster no banco do costume, à espera da tarde ou da noite de inopinada maravilha, decidiu que se impunha, que diabo, radicalizar a mudança de vida. Persistia a chuva de Aberdeen que molha profundamente, ainda quando não parece cair, e tardava a Primavera mais do que seria admissível, pondo a doer, de tão imobilizadas, as ubiquas lâmpadas de vapor de mercúrio.»

Li num Fugas do Público que, desde o início da automatização das funções reservadas aos faróis, não só resultou o fim de uma profissão lendária como ainda o consequente afastamento de faroleiros e respectivas famílias das pequenas fortificações, deixando espaço ao abandono e destruição. Foi a partir deste cenário que a Trinity House, a organização responsável pela gestão dos faróis na costa inglesa, encontrou na reconversão e renovação dos faróis a hotéis ou casas de turismo rural, uma saída para a situação. Murmurei então de mim para comigo: ora aqui está uma estupenda ideia para passar uns dias. Recortei o endereço e lancei a ideia para o baú das viagens-que-queria-fazer-mas-que-nunca-irão-acontecer . 

Fico-me então a olhar para as falésias verdes e selvagens da Grã Bretanha, para aquela costa da Cornualha.

E aqui o velho texto do Raul Brandão lido em Os Pesacdores:

Se houvesse justiça no planeta, eu já tinha sido nomeado vereador deste castelo, onde vivem três veteranos que de velhos criaram musgo — ou pelo menos faroleiro. Como sou um contemplativo, o lugar convinha-me perfeitamente. Os homens devem ser felizes diante deste espectáculo sempre igual e sempre renovado De Inverno nenhum barco atraca às Berlengas. Só e Deus no mais belo sítio da costa portuguesa!... Atrevo-me a falar a um velho musaranho, de focinho arreliador, que está metido no farol, de costas para o mar, fingindo que me não vê, a esfregar e a polir os metais reluzentes.

— Hein?...

— Hum!...

Rosna e não diz palavra que se entenda.

— Olá!

Olha-me com desprezo e continua a polir os metais já polidos, como se eu não existisse. Mas não desanimo facilmente e teimo:

— Que beleza, han?!...

Toquei-o. O homem sacode os ombros, levanta-se, atira o pa¬no fora, encara-me de frente, com os bigodes assanhados entre as rugas e um olho azul de faiança cheio de cólera:

— Que beleza o quê? Que beleza?... Isto?! — E ri-se. — O vento e o mar! Sempre o vento e o mar! O vento, que no Inverno não me deixa chegar à porta, e o mar todo o dia, toda a noite a bramir! O mar desesperado, o vento desesperado... Eu não sou um faroleiro — sou um náufrago. Que beleza, hein?... Nem posso dormir! Nem dormir! Toda a noite o vento uiva, toda a noite o mar ecoa, ameaçando submergir esta ilha do diabo!...

Julguei-me autorizado a interrompê-lo:

— Mas no Verão é esplêndido...

- Nem olho. Só me resta uma esperança — fugir. Se não me mudam, endoideço. O amigo sabe quantos endoideceram já? Três!...

E atirando os braços para o ar:

— Uma calamidade! Aqui não se sabe nada, aqui não chega nada. Nunca! Nunca! Nem a pneumónica aqui chegou. E não posso ter uma couve, não posso ter uma abóbora... Os coelhos devoram tudo. É uma praga!

— Dê-lhes tiros.

— Tiros?! — E ri-se com dois dentes e desprezo. - Quando quero um coelho, ato um anzol a um pau, meto o pau na lura e tiro o coelho para fora; quando quero um peixe, ato um anzol a uma linha e deito a linha à água... Mas o que eu quero é fugir! Fugir! Fugir para muito longe, para onde não ouça o mar, para onde não veja o mar!

Roncou... Percebi que repetia com escárnio: — Que beleza, han!... — E voltando-se, outra vez com o pano na mão, continuou a esfregar e a polir com desespero os metais — de costas viradas para o mar...

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