terça-feira, 31 de março de 2020

DIÁRIO DOS DIAS DIFÍCEIS


Andrew Cuomo, governador do estado de Nova Iorque, lançou hoje um apelo urgente de ajuda a voluntários médicos e enfermeiros reformados perante o cenário aterrador de milhares e milhares de pessoas infectados pelo Covid-19 e com o número de mortos que já está perto dos mil óbitos.

«Por favor, venham para Nova Iorque ajudar-nos. Agora».

Entretanto, o presidente-tarado vai twitando a sua ignorância e o seu desprezo pelo povo.

Barack Obama, considerou hoje que o seu sucessor, Donald Trump, ignorou os avisos sobre os riscos de uma pandemia do novo coronavírus, e recordou o mesmo comportamento quanto às alterações climáticas. 

Pelos dias terríveis que se vivem em Nova Iorque, um poema de Federico Garcia Lorca cantado por Chico Buarque e Raimundo Fagner:

1.

Na India foram decretados 21 dias de confinamento social: fábricas, lojas e restaurantes encerraram as suas actividades.

A paragem de muitas das actividades produtivas deixou milhões de trabalhadores sem salários e sem condições de subsistência. Muitos estão a regressar a pé às zonas rurais de que são originários.

Segundo o jornal inglês The Guardian, Mamta, uma ex-empregada fabril de Gugaon diz que ela e a sua família, sem comida e sem dinheiro, não tiveram outra escolha senão partir e que «a fome vai matar-nos antes do Coronavirus.»

Entretanto, sucedem-se os confrontos e os trabalhadores migrantes e a polícia.

2.

A TAP vai avançar com um processo de 'lay-off' para 90% dos trabalhadores e com a redução do período normal de trabalho em 20% para os restantes colaboradores.
Governo já recebeu 3.600 pedidos de empresas para adesão ao novo lay-off

3.

A PSP deteve em Braga uma mulher de 43 anos por distúrbios no interior de uma padaria, dizendo que estava infetada com o vírus da covid-19 e cuspindo em objetos e em pessoas, chegando mesmo a agredi-las.

4.

A Direcção Geral de Saúde admite que existam em Portugal cerca de 9.500 infectados.

5.

Que leva três inspectores do SEF, no aeroporto de Lisboa, a agredirem um ucraniano ao ponto de lhe provocarem a morte?

Registe-se ainda as cumplicidades várias que tiveram para chegarem à ignomínia de informarem a embaixada de que o cidadão Igor morrera, no hospital, devido a um ataque epiléptico.

Estará esta mentalidade, de violência e mentira, generalizada nas forças de segurança que temos?

Este, o país dito dos brandos costumes!...

Numa sua canção, o catalão Pi de La Serra diz:

«Se os filhos da puta voassem, nunca veríamos mais o sol.»

6.

Os números negros:

Itália

12.428 mortos

Espanha

8.464 mortos

Estados Unidos

3.415 mortos

França

3.523 mortos

China

3.187 mortos

Irão

2.898 mortos

Grã-Bretanha

1.789 mortos

Holanda

1.039 mortos

Portugal

160 mortos

Mundo

42.032 mortos

7.

Vergílio Ferreira no 2º volume de Conta-Corrente:

A velhice é isso - sermos só nós a nossa testemunha.

HANK WILLIAMS OU A SOLIDÃO ACOMPANHADA


“He sang fron his heart, took the pain for his fans
Who watched the pain in his heart
Them they sat and they clapped their hands”

Tim Hardin, “Tribute to Hank Williams”

Nas suas “Chronicles Vol. 1” Bob Dylan afirma que Hank Williams era a sua grande referência até ter mergulhado em Woodie Guthrie.

E vai mais longe. Conta que quando soube da morte de Hank naquele dia 1 de Janeiro, fez figas para que não fosse verdade. Quando se deu conta, diz ele, foi como se uma árvore gigantesca tombasse com estrondo, ou um peso enorme lhe tivesse caído em cima dos ombros... 

Muitas décadas depois a devoção de Dylan ainda não tinha esmorecido e ele foi um dos impulsionadores do muito agradável projeto coletivo “The Lost Notebooks of  Hank Williams” (2011), no qual colaborou também o seu filho Jakob, feito com base em letras e ideias para canções deixadas em esboço por Hank Williams.

Há muitas maneiras de entrar em Hank Williams.

Dylan é um “construtor de canções” e nas “Chronicles” espraia-se longamente sobre a “estrutura  das canções”, a “aritmética das silabas”,  os pilares em que assenta   a “arquitetura” de uma poesia cantada... 


A mim faltam-me conhecimentos e nunca lhe poderia entrar por aí…

Mas basta-me ouvir um simples acorde e sei, de imediato, que estou numa canção de Hank Williams. Muito antes  de começar a ouvir a sua voz anasalada, que parecia tão estranha para a “Country” como a da Billie Holiday o era para o Jazz vocal.

Quanto às canções, prefiro entrar-lhes pela porta da solidão…

Não conheço, de facto, cantor nenhum cuja música evoque tantas vezes a palavra “lonesome”,  seja nos títulos seja nas próprias letras das canções.

As canções de Hank Williams são um rosário de infortúnios, tristezas, desencontros, sonhos perdidos,  esperanças esfumadas...

Um perfeito melodrama em longa rotação e talvez seja por isso que eu, gostando tanto de melodramas, delas também tanto gosto.

Na Folk dos anos 60 cantava-se muito “it takes a worried man to sing a worried song”, e  tomo de empréstimo a ideia para vos garantir que  “it takes a lonely man to sing a lonesome song”…

Muitos dos personagens das canções de Hank Williams foram destroçados por uma mulher:

“Like a bird that’s lost its mate in flight
I’m alone and, oh, so blue tonight
Like a litle peace of driftwood in the sea
May you never be alone like me

I believe those lies you told me
When you whispered “Deer, I worship thee!”
Now here I am, alone and blue
All because I loved no one but you

I gave up my friends, I left my home
When you promised to be mine alone
Now you’re gone, our love could never be
May you never be alone like me”

(“May You Never Be Alone” - 1949)

                         ou

“Hear that lonesome whippoorwill
He sounds too blue to fly
The midnight train is whinning low
I’m so lonesome I could cry

The silence of a falling star
Lights up a purple sky
And as I wonder where you are
I’m so lonesome I could cry”

(“I’m só Lonesome I Could Cry - 1949)

                  ou ainda

“Take this chains from my heart and set me free
You’ve grown cold and no longer care for me
All my fate in you is gone, but the heartaches linger on
Take this chains from my heart and set me free

Take this tears from my eyes and let me see
Just a spark of the love that used to be
If you love somebody new, let me find a new love too
Take this chains from my heart and set me free”

(“Take This Chains From My Heart” - 1952)


Mas apesar de usados e enganados, parecem guardar dentro de si uma enorme saudade:  

“I had a woman who couldn’t be true
She made me for my money and she made be blue
A man needs a woman that he can lean on
But my leanin’ post is done left and gone
She’s long gone, and now I’m lonesome blue”

(“Long Gone Lonesome Blues - 1950)

                     ou

“Today I passed you on the street
And my heart fell at your feet
I can’t help it if I’m still in love with you

Somebody else stood by your side
And he looked so satisfied
I can’t help it if I’m still in love with you

A picture from the past came slowly stealin’
As I brushed your arm and walked so close to you
Then suddenly I got that old time feelin’
I can’t help it if I’m still in love with you”

(“I Can’t Help It (If I’m Still in Love With You)” - 1951) 

O cúmulo do sofrimento, para eles, parece ser verem, ao longe,  a sua antiga companheira casar-se com outro:

“I have the invitation that you sent me
You wanted me to see you change your name
I couldn’t stand to see you with another
But dear I hope you’re happy just the same

Wedding bells are ringing in the chapel
That should be ringing out for you and me
Down the aisle with someone else you’re walking
Those wedding bells will never ring for me”

(“Wedding Bells” - 1949)

                            ou


“I’ll pretend I’m free from sorrow
Make believe that wrong is right
Your wedding day will be tomorrow
But there’ ll be no teardrops tonight

Why, oh why,  should you desert me?
Are you doing this for spite?
And If you only want to hurt me
There’ ll be no teardrops tonight”
      
(“There’ll be no Teardrops Tonight” - 1949)


Para depois imaginarem, mais tarde, o seu próprio filho chamar pai a outro homem:

“Tonight my head is bowed in sorrow
I can’t keep the tears from my eyes
My son calls  another man daddy
The right to his love I’ve been denied

My son calls another man daddy
He’ll never know my name nor my face
God only knows how it hurts me
For another to be in my place”

(“My Son Calls Another Man Daddy” - 1950)

E chegarem à conclusão que ninguém sente a sua falta e que a sua morte mais não deixará do que indiferença:

“Everybody’s lonesome for somebody else
But nobody’s lonesome for me
Everybody’s thinking about somebody else
But nobody thinks about me

When the time rolls around me to lay down and die
I’ll bet I’ll have to go and hire someone to cry
Everybody’s lonesome for somebody else
Nobody’s lonesome for me”

(“Nobody’s Lonesome For Me” - 1951)

Outras vezes, porém, a culpa da solidão e do sofrimento é apenas deles e dos pecados que terão cometido na vida:

“I’m a rolling stone, all alone and lost
For a life of sin, I have paid the cost
When I pass by, all the people say
“Just another guy on the lost highway”

I was just a lad, nearly twenty-two
Neither good or bad, just a boy like you
And now I’m lost, too late to pray
Lord I’ve paid the cost on the lost highway”

(“Lost Highway” - 1948”)

                  ou

“All alone, I bear the shame
I’m a number, not a name
When the evening train goes by
I heard that lonesome wistle
All I do is sit and cry
When the evining train goes by
I hear that lonesome whistle blow

I’ll be locked here in this cell
‘till my body’s just a shell
And my hair turns whiter than snow
I’ll never see that girl of mine
Lord I’m in Georgia doing time
I heard that lonesome wihstle blow”

(“(I Heard) That Lonesome Whistle - 1951)

                   

Hank Williams tinha um espécie de pseudónimo, Luke The Drifter, sob o qual  interpretava canções de forte inspiração religiosa, a maior parte das vezes declamadas, sussurradas, muito mais do que cantadas, com um discreto acompanhamento musical. 

Como em “Beyond the Sunset” (1950), uma das mais bonitas:

“Beyond the sunset, oh blissful morning
When with our Saviour, Heaven is begun
Earth’s toilling ended, oh glory downing
Beyond the sunset, when day is done”

Bob Dylan conta que ouvia as canções de Luke The Drifter até à exaustão, nelas se envolvendo com tal fervor que saia a acreditar, piamente, na bondade dos homens...

Uma vez, no Texas, Hank Williams era suposto cantar num piquenique gigante, mas naquele dia não estava pr’aí virado. Tentou baldar-se mas os promotores do evento encostaram-no à parede, porque centenas de pessoas já tinham pago o seu bilhete de acesso e haveria distúrbios, pela certa...

Aborrecido, Hank rendeu-se à evidência. Mas quem subiu ao palco naquele dia não foi ele, mas Luke The Drifter…

Agora imaginem aquelas centenas de texanos de tronco nu, uma caneca de cerveja numa mão e uma perna de borrego na outra, à espera de poderem cantar e rodopiar, apanharem com um sermão acerca dos pecados nesta terra e dos desígnios do Senhor…!

Teve dificuldades em abandonar o local e, apesar de tudo,  muita sorte, porque no Texas de outros tempos teria saído dali nu, mergulhado em alcatrão e coberto de penas de aves…!

Mas Hank Williams não era sempre assim tão sério nem sempre assim tão triste…


Quando se sentia bem cantava os prazeres desta vida, como em “Jambalaya”, dedicada a um dos principais petiscos do Louisiana, com a qual me lembro de ter, numa noite bem regada,  massacrado os meus amigos com todas as versões que dela tinha, e eram muitas, garanto-vos, começando em Fats Domino e acabando na Emmylou Harris...:

“Goodbye Joe me gotta go me oh my oh
Me gotta go pole the pirogue down the Bayou
My Yvonne the sweetest one me oh my oh
Son of me gun we’ll have big fun on the Bayou
Jambalaya and a crawfish pie on a filé gumbo
‘cause tonight I’m gonna see my cher amio
Pick guitar, fillet fruit jar and be gay-o
Son of the gun we’ll have big fun on the Bayou”

(“Jambalaya (On the Bayou)” - 1952)

  E até dava, de vez em quando, uma de Quim Barreiros:

“Say hey good loookin’, what ya got cookin’ ?
How’s about cookin’ something up with me?
Hey sweet beby, don’t you think maybe
We can find us a brand recipe?”

(“Hey Good Lookin’” – 1951)

Mas ninguém lhe levava a mal….

Poderíamos continuar por aí fora, mas não vos quero maçar mais…

Ponhamos uma destas músicas a tocar...

Apaguemos a luz, façamos silêncio e acabemos a história dando, de novo, a palavra a Bob Dylan...   

“When I hear Hank sing, all movement ceases, the slighter whisper seems sacrilege”


Legenda:

- Capa de uma das muitas colectâneas de canções de Hank Williams
- Guitarra de Hank Williams no “Country Music and Hall of Fame Museum”, de Nashville
- Placa no “Hall of Fame”, no mesmo Museu
- Vista geral do Hall of Fame
- Postal do Museu HW de Montgomery 

VELHOS DISCOS


Crispian St. Peter’s (1939-2010) foi um cantor inglês da década de 60, que deixou duas canções que fizeram sucesso: The Pied Piper e You Were on My Mind.

The Pied Piper ouvi-a, pela primeira vez nesse extraordinário programa que deu pelo nome de Em Órbita, as primeiras espiras a rodarem e a voz única do Cândido Mota a recitar: «sigam-me que eu sou o tocador da flauta mágica», um, dois dias depois, no dia 30 de Junho de 1966, o EP a ser comprado na Discoteca Universal ma Rua do Carmo, que o incêndio do Chiado, Agosto de 1988, destruiu por completo.

OLHAR AS CAPAS



Sonetos

Antero de Quental
Edição organizada, prefaciada e anotada por António Sérgio
Colecção Clássicos Sá da Costa
Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1963

                         A Germano Meireles

Só males são reais, só dor existe:
Prazeres só os gera a fantasia;
Em nada[, um] imaginar, o bem consiste,
Anda o mal em cada hora e instante e dia.

Se buscamos o que é, o que devia
Por natureza ser não nos assiste;
Se fiamos num bem, que a mente cria,
Que outro remédio há [aí] senão ser triste?

Oh! Quem tanto pudera que passasse
A vida em sonhos só. E nada vira...
Mas, no que se não vê, labor perdido!

Quem fora tão ditoso que olvidasse...
Mas nem seu mal com ele então dormira,
Que sempre o mal pior é ter nascido!

segunda-feira, 30 de março de 2020

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A história do disco de que se fala em Diário dos Dias Difíceis:

«Sempre foi mais de gin do que de whisky, mas aprecia os anúncios do “JB”: a sincronia entre texto e imagens, a voz off , mas acima de tudo pela música.

Agradava-lhe ter aquela música. Não sabia como descobrir o nome, o intérprete.

Uma noite assistiu à apresentação, pelo Sr. João Bénard da Costa, numa das sessões “do seu cinema”, no Canal 2 da Televisão Pública, do filme “Badlands” de Terrence Malick.

A conversas tantas, Bénard da Costa fazia referência ao facto de uma das músicas do filme ser fundo musical de um muito conhecido anuncio. Lá estava a tal música. ´

Correu à procura da banda sonora de “Badlands”. Não a encontrou em parte nenhuma.

Contactou amigos um pouco por toda a parte, vasculhou no “Amazon”, mas nada feito, acabando por concluir que do filme não tinham extraído banda sonora.

Um dia, os amigos chamaram-no para a audição de um disco. Às primeiras notas reconheceu logo a música do tal anúncio, a tal música.

Como foi?

Entraram pelo “You Tube” dentro, chamaram “JB advertising” e depararam que já andara muita gente à procura do mesmo e que, algures perdida no mundo, já uma alma disponibilizara a informação.

Trata-se de uma compilação de trabalhos da “Orff-Schulwerk”, uma escola criada por Carl Orff e Gunnild Keetman, um disco, um divertimento simplesmente delicioso.

Depois foi só contactar a “Amazon” que, num abrir e fechar de olhos, colocou o disco a caminho de Lisboa.

Chamam-lhe o admirável mundo de novo. O mundo informático sempre foi um mistério que nunca resolveu muito bem e vê-se envolvido em sombras e ignorâncias várias, próprias de quem gostava ainda de escrever em ardósia, ou enviar mensagens por pombo-correio.»


Colaboração de Gin-Tonic

Cortesia de Ié-Ié

DIÁRIO DOS DIAS DIFÍCEIS


No meio de todo este turbilhão, começo a sentir dificuldades em separar as águas.

Estou mais que chateado…

O José Cardoso Pires, quando estava chateado, dizia: «a culpa é dos padres!»

A música de hoje é um delicioso divertimento tirado de um disco que é uma compilação de trabalhos de uma escola criada por por Carl Orff e Gunnild Keetman.

Um tal de Gin-tonic, conta a história desse disco num texto publicado, há uns anos, no blogue IÉ-IÉ de Luís Pinheiro.

A historinha pode ser lida, já a seguir em RELACIONADOS.


A imagem no topo do texto é uma pintura de Edward Hopper.



1.

A gentalha de direita continua a bater no governo.

Vejo agora mais televisão do que antes da quarentena.

Há canais que não frequento e a SIC vou já largar da mão.

Tem por lá um rapaz, que dá pelo nome Bernardo Ferrão que alegremente disse – não ouvi! - «Ninguém vai escapar ao contágio».

O governo tem os seus erros – quem os não teria? –, as suas limitações, mas confiemos que possa levar  a nau a porto calmo.

Entre a tal gentalha da direita, todos se acham que podem ser primeiros-ministros, mas todos fogem de ser administradores do condomínio lá do prédio.

2.

Há muitos anos, nas paredes da Tasquinha do Aires, na Trafaria, por entre capas de discos, coisas diversas, podia ler-se num azulejo:

«Coma e beba porque vai passar muito tempo morto.»

3.

Um anónimo deixou este comentário no blogue de Maria do Rosário Pedreira:

«Eu estou de quarentena há muitos anos, encerrado em casa há muito tempo - excepto aos sábados, em que costumava dar uma volta -, pelo que não estranho muito. O tempo nunca me chega para os discos que tenho para ouvir, os livros que tenho para ler... 24 horas é poucochinho. E ainda preciso de dormir, imaginem a perda de tempo! Sempre me aborreci mais na rua do que em casa. Somos todos diferentes.
Para dar um toque intelectual ao meu comentário cito T. S. Eliot: "a espécie humana não pode suportar muita realidade".»

4.

Uma turba de gente, durante o fim-de-semana, foi barrada na Ponte 25 de Abril.
Muitos, apenas queriam ir à praia em pleno estado de emergência.

5.

A CGTP denunciou 1.600 despedimentos em cantinas escolares e em empresas portuguesas do setor do calçado, têxtil e indústria automóvel, alertando para os abusos laborais que decorrem da crise económica provocada pelo surto do novo coronavírus.


6.

Os números negros:

Itália

11.591 mortes

 Espanha

7.340 mortes

China

3.186 mortes

França

3.024  mortes

Irão

2.757 mortes

Grã-Bretanha

1.408 mortes

Portugal

140 mortes

No Mundo

37.140 mortes

7.

José Saramago escreveu um dia que o universo não tem notícia da nossa existência.

UMA FRASE QUE ASSUSTA OS OUVIDOS


Ao longo dos tempos, fui comprando alguns livros que, de imediato, por isto ou por aquilo, fui deixando num canto. Um desses livros,  é O Cemitério de Praga, de Umberto Eco.

Peguei, deixei, repeguei, anda a ser lido aos tropeções.

Nos tempos que vão correndo, sou mais de reler do que descobrir.

Não sendo um entusiasta dos livros de Fernando Namora, apenas gosto das primeiras obras, em que o neo-realismo passeia por ali, mais as lindíssimas capas e ilustrações de Manuel Ribeiro de Pavia. Principalmente Retalhos da Vida de um Médico, aquele conto do primeiro parto e das palavras de que nunca me esqueci:

– Se quer fazer alguma coisa, senhor Doutor, saiba que a criança está nas nalgas. Está presa no osso da rabadilha.

O conto «História de um Parto», começa assim:

 «Com 24 anos medrosos e um diploma de médico, tinha começado a minha vida em Monsanto. Ali, a província bravia despede-se da campina (de Idanha), ergue-se nos degraus das fragas para olhar com altivez as serras de Espanha, enquanto o friso de planaltos que corre as linhas da fronteira espreita as surtidas do contrabando e a fuga dos rios.
Aquele povo soturno, endurecido a subir e descer abismos, frutificando uma terra alheia, pressentiu o perigo da minha inexperiência. Os camponeses vinham ao consultório fechados em meias palavras, avaliando dos meus dotes de mágico, e nas suas faces obstinadas havia apenas desconfiança e desafio Algumas vezes, a morte estava ali entre mim e eles, troçando da minha humildade apavorada, e nem assim me davam um estímulo.»

Avançamos nas palavras de Namora:

«Mas sendo eu médico avençado – eis a cortesia em jogo – o posto pertencia-me, devia ser procurado para o trabalho e para o pago. E a família acabou por correr o risco: seria eu o escolhido. Para mim o transporte do burro, o sobressalto, a apreensão pelo que poderia acontecer. O meu nervosismo ainda foi avivado por uma rude prova de fraqueza dos campónios: sucedeu que, mal eu chegara junto da esmorecida parturiente, me confessaram, com ressaibos de deferência, as dúvidas que haviam tido na minha escolha!
E ali fiquei, humilde, embrutecido, perante a comadre escura que me vigiava. Os olhos dela, vorazes, eram mais temíveis do que esse ventre desgastado de esforços vãos, do que a bacia estreita que se opunha à vida. Esperei minutos, horas, para me dispor àquilo que desde logo me pareceu indicado: uma intervenção com os medonhos ferros que são o pesadelo das parturientes e das famílias aldeãs. Até que a comadre, não suportando já as minhas hesitações, levou à frente das palavras um dedo sujo, antes que eu pudesse simular uma reacção, e enfiou-o nesse abismo insondável. E disse, sem meias-tintas:
– Se quer fazer alguma coisa, senhor Doutor, saiba que a criança está nas nalgas. Está presa no osso da rabadilha.
Aquela frase ficou inteira nas minhas recordações, ainda hoje me assusta os ouvidos.»

E chegamos às palavras finais:

«A criança chegou às minhas mãos, mãos heroicamente ensanguentadas, sem uma beliscadura. Tirei-a depois com ostentação dos dedos engelhados da comadre, lavei-a com carinho, feliz, alvoroçado. Amava-a como se me pertencesse.
Eu, agora, dominava o ambiente. Dominava os corvos e, entre eles, o mais sinistro: a comadre. Ela, então, ergueu as mãos, em transe:
– Milagre! Vi nascer centenas de meninos, vi horas boas e más, mas um trabalho destes… A criança está aí sem um arranhão. Onde eu chegar, senhor Doutor…
E ficámos amigos.
Cá fora esperava-me uma noite afogueada de Outono. O velho tinha aparelhado o jerico e engolia saliva a todo o momento, ondulando o pescoço, mudo de emoção. De chapéu erguido, os olhos brilhantes, esperava que eu partisse. Entesado numa posição de sentido, quedou-se de chapéu em jeito de bandeira, até que desapareci na dobra da rua. E só depois conseguiu rouquejar:
– Obrigado, senhor Doutor! Obrigado. Viva!, para sempre!»´

Legenda: ilustração de Manuel Ribeiro de Pavia

SAM SHEPARD - MR. WILLIAMS


No seu livro de crónicas de viagem “Days Out of Days” (2010), que na minha edição francesa se chama “Chroniques des Jours Enfuis”,  Sam Shepard tem um texto acerca da morte de Hank Williams.

Não é das melhores peças saídas da mão do autor de “Crónicas da América”, mas tem a enorme vantagem de se poder juntar a nós à conversa, como que aderindo à versão da morte no hotel.

Nessa crónica a história é contada através do porteiro do hotel, que jura ter visto Mr. Williams morto e bem morto… Morto e rígido como uma estaca… E terá sido o médico, com a injeção que lhe deu, quem o matou...

Mas vestiram-no assim mesmo...

Um fatinho azul claro.

Uma camisa de um branco imaculado.

Uma gravata amarela com uma pequena palmeira bordada a meio.


Botas de um preto cintilante, com pequenas guitarras e notas de música encrostadas.

E um chapéu Stetson branco creme bem enfiado na cabeça.

Arrastaram-no assim até ao carro, o “chauffeur” de um lado, o porteiro do outro.

Ao atravessarem o “hall”  de entrada o rececionista meteu-se com eles, perguntando se Mr. Williams não teria bebido um copito a mais…

Mas o mais estranho, conta ele, é que, apesar de morto, um estranho ruído rouco saia da boca de Mr. Williams, como um impercetível som de folhas levadas pelo vento. O murmúrio da morte, certamente, o último pedaço de ar que se escapa do corpo...  

Vê-se tanta coisa quando se é porteiro de um hotel, mas uma destas nunca antes tinha visto.

Um som terrível, de facto.


Estranha coisa esta um homem que passou a sua vida inteira a cantar como um pássaro sublime, acabar os seus dias com um som como este…




PS:

A crónica de Sam Shepard é muito curta e anexo-a, para quem por ela se interessar.

Texto de Luís Miguel Mira

CANTARÃO OS GALOS



Cantarão os galos, quando morrermos,
e uma brisa leve, de mãos delicadas,
tocará nas franjas, nas sedas
mortuárias.

E o sono da noite irá transpirando
sobre as claras vidraças.

E os grilos, ao longe, serrarão silêncios,
talos de cristal, frios, longos ermos,
e o enorme aroma das árvores.

Ah, que doce lua verá nossa calma
face ainda mais calma que o seu grande espelho
de prata!

Que frescura espessa em nossos cabelos,
livres como os campos pela madrugada!

Na névoa da aurora,
a última estrela
subirá pálida.

Que grande sossego, sem falas humanas,
sem o lábio dos rostos de lobo,
sem ódio, sem amor, sem nada!

Como escuros profetas perdidos,
conversarão apenas os cães, pelas várzeas.
Fortes perguntas. Vastas pausas.

Nós estaremos na morte
com aquele suave contorno
de uma concha dentro d’ água.

Cecília Meireles em Antologia Poética

domingo, 29 de março de 2020

DIÁRIO DOS DIAS DIFÍCEIS


Está a findar mais um domingo desta quarentena de que não se conhece o fim.

O que me levou a guardar esta frase do Jorge Silva Melo, lida numa crónica do Público de 6 de Novembro de 2005?

«Tanta gente na rua, domingo em Lisboa, gente a passear, bonita de tanta gente.»

Ao tempo que isto foi, mas houve um motivo, motivo que conhecia no dia em que a guardei, agora não lembro qual foi, mas de certeza que não tinha nada a ver com  este domingo de Lisboa, triste, dramático, sem gente a passear nas ruas.

Nunca me entendi muito bem com Gustav Mahler.

As muitas dificuldades são minhas, reconheço.

Tempos houve que me dediquei a trasnpôr os osbstáculos do obsessivo Mahler.

Quase nenhuns resultados.

Hei-de continuar.

Disse Mahler:

«A tradição é alimentar o fogo, não ficar a olhar as cinzas.»

Neste domingo, deixo-vos com o final da sua 2ª sinfonia «Ressurreição», gravação de um dos Concertos Promenade.




1.

Os números negros:

Itália

10 779 mortes

 Espanha

6 802 mortes 

China

3 182 mortes

Irão

2 640 mortes

França

2 606 mortes

Reino Unido

1 228 mortes

Portugal

119 mortes

No Mundo

33.854

2.

Palavras de António Ramos Rosa, para o findar deste domingo e tiradas do seu livro O Aprendiz Secreto:

Tudo será construído no silêncio, pela força do silêncio, mas o pilar mais forte da construção será uma palavra. Tão viva e densa como o silêncio e que, nascida do silêncio, ao silêncio conduzirá.