Ao longo dos tempos, fui comprando alguns livros que, de imediato, por isto ou por aquilo,
fui deixando num canto. Um desses livros, é O Cemitério de Praga, de Umberto Eco.
Peguei, deixei, repeguei, anda a ser lido aos tropeções.
Nos tempos que vão correndo,
sou mais de reler do que descobrir.
Não sendo um
entusiasta dos livros de Fernando Namora, apenas gosto das primeiras obras, em
que o neo-realismo passeia por ali, mais as lindíssimas capas e ilustrações de
Manuel Ribeiro de Pavia. Principalmente Retalhos da Vida de um Médico,
aquele conto do primeiro parto e das palavras de que nunca me esqueci:
– Se quer fazer alguma coisa, senhor
Doutor, saiba que a criança está nas nalgas. Está presa no osso da rabadilha.
O conto
«História de um Parto», começa assim:
«Com 24 anos medrosos e um diploma
de médico, tinha começado a minha vida em Monsanto. Ali, a província bravia
despede-se da campina (de Idanha), ergue-se nos degraus das fragas para olhar
com altivez as serras de Espanha, enquanto o friso de planaltos que corre as
linhas da fronteira espreita as surtidas do contrabando e a fuga dos rios.
Aquele povo soturno, endurecido a subir
e descer abismos, frutificando uma terra alheia, pressentiu o perigo da minha
inexperiência. Os camponeses vinham ao consultório fechados em meias palavras,
avaliando dos meus dotes de mágico, e nas suas faces obstinadas havia apenas
desconfiança e desafio Algumas vezes, a morte estava ali entre mim e eles,
troçando da minha humildade apavorada, e nem assim me davam um estímulo.»
Avançamos nas
palavras de Namora:
«Mas sendo eu médico avençado – eis a
cortesia em jogo – o posto pertencia-me, devia ser procurado para o trabalho e
para o pago. E a família acabou por correr o risco: seria eu o escolhido. Para
mim o transporte do burro, o sobressalto, a apreensão pelo que poderia
acontecer. O meu nervosismo ainda foi avivado por uma rude prova de fraqueza
dos campónios: sucedeu que, mal eu chegara junto da esmorecida parturiente, me
confessaram, com ressaibos de deferência, as dúvidas que haviam tido na minha
escolha!
E ali fiquei, humilde, embrutecido,
perante a comadre escura que me vigiava. Os olhos dela, vorazes, eram mais
temíveis do que esse ventre desgastado de esforços vãos, do que a bacia
estreita que se opunha à vida. Esperei minutos, horas, para me dispor àquilo
que desde logo me pareceu indicado: uma intervenção com os medonhos ferros que
são o pesadelo das parturientes e das famílias aldeãs. Até que a comadre, não
suportando já as minhas hesitações, levou à frente das palavras um dedo sujo,
antes que eu pudesse simular uma reacção, e enfiou-o nesse abismo insondável. E
disse, sem meias-tintas:
– Se quer fazer alguma coisa, senhor
Doutor, saiba que a criança está nas nalgas. Está presa no osso da rabadilha.
Aquela frase ficou inteira nas minhas
recordações, ainda hoje me assusta os ouvidos.»
E chegamos às
palavras finais:
«A criança chegou às minhas mãos, mãos
heroicamente ensanguentadas, sem uma beliscadura. Tirei-a depois com ostentação
dos dedos engelhados da comadre, lavei-a com carinho, feliz, alvoroçado.
Amava-a como se me pertencesse.
Eu, agora, dominava o ambiente. Dominava
os corvos e, entre eles, o mais sinistro: a comadre. Ela, então, ergueu as
mãos, em transe:
– Milagre! Vi nascer centenas de
meninos, vi horas boas e más, mas um trabalho destes… A criança está aí sem um
arranhão. Onde eu chegar, senhor Doutor…
E ficámos amigos.
Cá fora esperava-me uma noite afogueada
de Outono. O velho tinha aparelhado o jerico e engolia saliva a todo o momento,
ondulando o pescoço, mudo de emoção. De chapéu erguido, os olhos brilhantes,
esperava que eu partisse. Entesado numa posição de sentido, quedou-se de chapéu
em jeito de bandeira, até que desapareci na dobra da rua. E só depois conseguiu
rouquejar:
– Obrigado, senhor Doutor! Obrigado.
Viva!, para sempre!»´
Legenda:
ilustração de Manuel Ribeiro de Pavia
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