quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

POSTAIS SEM SELO


O grande problema não é saber-se poucas coisas. Tampouco saber-se mal as coisas. É antes um excesso de coisas erradas.

LIVROS PARA COMPLETAR A MOBÍLIA


William Wrigley, milionário da pastilha elástica, ao mobilar o seu sumptuoso apartamento, em Chicago, disse à secretária: «Meça-me aquelas prateleiras e compre-me livres suficientes para mas encher. Arranje-me uma data de livros de um verde e um encarnado vivos e com uma batelada de letras douradas.»

Há quem organizasse os livros pela cor da lombada. Da esquerda para a direita, o arco-íris de lombadas começava nas cores quentes. Seguia para neutras e terminava nas frias. Estantes catitas de olhar.

O Eça falava em estantes com livros para completar a mobília, apenas para completar a mobília.

Ou quem diga que os livros servem para ser lidos não para estarem em prateleiras.

Em As Viúvas das Quintas-Feiras de Claudia Piñeiro, a págs. 27, pode ler-se:

«Quando vi a casa pela primeira vez, o que mais me chamou a atenção foi o escritório de Antieri, aquele que acabámos por deitar abaixo. A ordem e limpeza que havia ali dentro intimidavam-me. Uma estante cheia de livros forrava todas as paredes. Lombadas perfeitas, intactas, de couro bordeaux ou verde. E duas vitrinas onde guardava as suas armas, de diferentes calibres e modelos. Polidas, sem um vestígio de pó, brilhantes. Enquanto percorríamos o escritório, Juani, que tinha apenas cinco anos, aproximou-se da estante, tirou um livro, atirou-o ao chão e pôs-se em cima dele. A lombada do livro foi abaixo. Ronie agarrou-o com um puxão de cabelos. Levou-o lá para fora para o castigar sem testemunhas, estava furioso. Eu ocupei-me do livro, sacudi-lhe a marca do sapato de Juani. Tentei arranjá-lo, achei-o leve e dei-lhe a volta. Era oco. Não tinha páginas no interior, apenas as capas duras, uma caixa de falsa literatura. Li, na lombada, Fausto, de Goethe. Coloquei-o no seu lugar. Entre A Vida é Sonho, de Calderón de la Barca, e Crime e Castigo, de Dostoievsky. Todos ocos. Para a direita, havia mais dois ou três clássicos e depois repetia-se, A Vida é Sonho, Fausto, Crime e Castigo, em letras douradas de filigrana. A mesma série em todas as prateleiras.»

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

QUOTIDIANOS


São preocupantes as notícias que vão chegando de Itália em relação à propagação do Covid-19.

Mais preocupante é o papel das redes sociais, das televisões, na divulgação de notícias, e não notícias, sobre a epidemia.

Um gravíssimo problema como este, não pode ter o tratamento jornalístico, os mesmos protagonistas de comentário, como se estivéssemos perante o julgamento mediático de um qualquer acto de corrupção, ou um caso de mera questão futebolística.

Mais do que do vírus, é desta gente que eu tenho medo.

NOTÍCIAS DO CIRCO


Não quero acreditar que no Partido Socialista não exista um outro nome, sem ser o de Vitalino Canas, para a substituição de juízes no Tribunal Constitucional.

Não quero mesmo, mas é o que está a acontecer.

Manuel Alegre, que tem a obrigação de o conhecer, considera que não é uma boa escolha pois está demasiado conotado com o mundo dos negócios.

Olha-se de fora e salta à vista que o eventual indigitado não tem perfil para entrar no Tribunal Constitucional.

Segundo o Expresso, uma larga maioria de deputados do PSD vão chumbar o nome de Vitalino Canas.

Publicamente ainda se desconhecem as reacções dos outros partidos mas, sabendo-se que é necessária uma maioria de dois terços para a sua escolha, a decisão do PSD, a manter-se, inviabiliza o nome de Canas.

domingo, 23 de fevereiro de 2020

ANTOLOGIA DO CAIS


Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram publicados.

UMA TARDE NA CAVE DO BUAL

Foi por finais de 1966, que, pela vez primeira, fui até à Amadora. Deixava-se a estação do comboio e em tudo à volta, só se viam quintas e mais quintas, e hoje deparamos com aquele triste e horrível mundo de cimento e mais cimento.

Os pais do Armindo tinham um pequeno tasco no nº 299 da Avenida Elias Garcia.

Aos almoços frequentado por operários, aos jantares por gente idosa com estatuto de comensais, tudo numa atmosfera a lembrar os romances do José Rodrigues Migueis. Foi nesse tasco que, por uma noite de ingénuas conspirações para derrubar o regime, comi a mais saborosa e suculenta mão de vaca de jardineira que em minha vida inteira ao dente me chegou. Tudo num sossego, um devagar nos tempos, rematado com um café de saco, um bagacinho caseiro, uma cigarrilha Alto.

As conversas com o Armindo eram abrangentes e, amiúde, pelo meio improvisava poemas, conversas soltas, algumas intermináveis, como uma sobre o “Herzog” do Saul Bellow, que nunca se concluiu porque, de repente, me apanhei na recruta em Tavira e nesse lapso o Armindo, para fugir à guerra colonial, deu o salto para França. Apenas um postal ilustrado de Grenoble a dizer que chegara, e depois não mais notícias do Armindo, nem do Zé Ferraz que com ele seguira viagem. Ficou o som das conversas, imagens outras, aquele vocativo que os homens dão ao que não conhecem. Também um abraço constante, nas grandes distâncias e no breve tempo.

Mais ou menos por esses tempos também frequentei a cave-estúdio-casa do pintor Artur Bual.

Uma vez, mais o Helder e o poeta e pintor Hugo Beja chegámos pelas duas da tarde e acabámos por perder o último comboio para Lisboa. Quem desfez o galho onde nos enfiámos foi o poeta~pânico Karlos Faria, que foi ter connosco à estação da Amadora onde, sentados, aguardávamos a passagem do primeiro comboio para Lisboa. Cada um dos três com um quadro que o Bual insistira que trouxéssemos.

O meu ainda hoje é presença marcante nas paredes aqui da casa.

Ao lado da cave do Bual, numa rua vulgar da Amadora, havia um tasco onde por diversas vezes o palhinhas foi-se enchendo de tintol. Cada um a pagar o seu, o do Bual foi para o rol.

O Artur Bual morreu em 11 de Janeiro de 1999. Tinha 72 anos.

Autodidacta, gostava de dizer que nunca se preocupara em aprender.

 Preocupavam-no sim, um bom bacalhau assado, um rosto de mulher, os jogos do Benfica que ouvia numa telefonia. Chamaram-lhe pintor maldito, tal como ao Luiz Pacheco chamaram escritor maldito. Não gostava de críticos e borrifava-se no que diziam. As exposições passavam-lhe ao lado.

O impulso é que é o grande estado de beleza da interioridade.

Naquela enorme tarde-noite de um Maio de 1967 não conseguimos que o Bual nos desse uma resposta sobre a sua obra. Uma apenas.

- Eh pá, não me chateiem a tola!

O Helder, on road para o excelente repórter que haveria de ser em A Capital, onde fez de tudo, até crítico gastronómico sob roupagem de Dom Pipas, cheio de ingenuidade, dizia-lhe que era uma pena ele andar a esbanjar tanto talento e o Bual, pegando no copo de tinto, a lançar-lhe um

- E se fosses chatear o c…!

Acabou por sair uma reportagem-entrevista completamente chalada, publicada no Diário de Lisboa, mais de metade cortada pela censura, e que está para aí  perdida nas caixas que hei-de um dia abrir, amanhã é que vai ser, e será o dia de são nunca à tarde, um qualquer 30 de Fevereiro.

Eu já devia ter avisado que sou um dispersivo, perguntam-me as horas começo por dizer como se fabricam os relógios na Suiça. Vim aqui para colocar um poema do Armindo Miranda sobre a velha Amadora e meti-me por becos e atalhos. e já não atino com o fim à meada. Como o paleio se foi estendendo,  o poema vai em post à parte, um golpe de asa, um terno, ao mesmo tempo cínico, pequeno retrato de uma Amadora onde um apartamento custava cento e trinta e cinco contos, “pois, pois, J. Pimenta!”, como dizia o anúncio dos Parodiantes de Lisboa.

Texto publicado em 18 de Fevereiro de 2011

O MAIS PERTO DO DIVINO QUE JÁ OUVI


Depois de um concerto meu em Sevilha, saiu uma crítica que dizia: “Portugal ya encontradio su Jacques Brel.” E pensei: “Grande elogio”, vou prestar atenção a Jacques Brel e disse: “Caraças, estamos aqui na presença do maior intérprete de todos os tempos.” Comecei a perceber as suas letras, verdadeiros poemas. Não sei se ele é um poeta que canta, um cantor que escreve poema, um ator que também canta ou um cantor que também representa. Só sei que é a coisa mais sublime e mais perto do divino que já ouvi na minha vida.

Salvador Sobral

TRUMPALHADAS


Donald Trump, durante uma acção de campanha no Colorado, disse não ter concordado com o Óscar de melhor filme  atribuído a Parasitas do norte-coreano Bong Joon-ho.

«O que raio foi aquilo? Já temos problemas suficientes com a Coreia do Sul no comércio e, agora, é-lhe atribuído o prémio de melhor filme do ano». queixou-se Trump.

A resposta da Neon, a distribuidora americana do filme, não se fez esperar:

 «É compreensível. Ele nem sabe ler!»

sábado, 22 de fevereiro de 2020

ANTOLOGIA DO CAIS

Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram publicados.


A FOTOGRAFIA É UM OLHAR NATURAL

Nos finais das tardes de segunda-feira, terminado o alinhamento do Juvenil, os passos do Mário Castrim, estendiam-se para a Pastelaria Orion, ali no cimo da Calçada do Combro: um copo de leite, torrada, a que se seguia uma bica escaldada.

Ali ficávamos à conversa.

                                             Chamava-se

                                             Orion o café
                                             onde encontrava à tardinha
                                             A minha última namorada. (1)

Numa dessas tardes de segunda-feira, já com um pé na Rua Luz Soriano:

- O Augusto Cabrita está à nossa espera.

A ideia era fazer um dos Encontros do Juvenil com a exibição do Belarmino do Fernando Lopes.

Foi a única vez que privei com Augusto Cabrita.

Fiquei com a sensação estranha que há homens que não são deste mundo.

Uma humildade desconcertante, um rosto quase a pedir desculpa do que tem para dizer e admite que o que diz não tem importância para quem ouve.

Não se consegue desviar o olhar, face a um rosto daqueles.

Assim como o Carlos Paredes, lembram-se?

Também o Artul Bual, alguns outros, não muitos, com essa arte de, apenas, quererem mostrar as maravilhosas obras que faziam, nunca se colocando em bicos dos pés, um horror a holofotes que, de imediato, lhes provocavam aceleradas fugas.




Não foi longa a conversa.

O Mário Castrim tinha – sempre! - de ir a correr para a casa, esperava-o a televisão a preto e branco da ditadura, para que no dia seguinte, no Diário de Lisboa, pudesse sair o Canal da Crítica, sistematicamente com cortes, por vezes, totalmente cortado, pelos lápis azuis manejado pelos coronéis da censura, analfabetos, crápulas sem nome, às ordens de Salazar, depois Marcelo Caetano.

As fotografias do Augusto Cabrita reflectem o homem que sempre foi: atento, sensível, aquele perfume a neo-realismo, que tantos e tantos não gostam - nunca gostaram! -  de cheirar.

Uma verdade frontal em cada fotografia tirada ao quotidiano do povo, a dureza da vida das gentes do seu Barreiro.

Uma ternura desarmante, um olhar único e tocante.

A retrospectiva da obra de Augusto Cabrita continua patente, no Auditório que no Barreiro tem o seu nome, até ao dia 2 de Maio.

(1) - Versos do poema Ali se Via o Mar em  Poemas do Avante de Mário Castrim.

Texto publicado no dia 28 de Abril de 2013 

Legenda: o título é uma frase de Augusto Cabrita.
Arriflex IIB 35mm, com tripé Arriflex IIB, que se vê na imagem, foi utilizada nas filmagens de Belarmino.

OLHAR AS CAPAS


O Elogio da Ginja

Paulo Moreiras
Noctivaga Editores, Leiria 2001

Na linguagem das flores, as ginjas significam boa educação. Assim oferecer um cálice de ginjinha (com elas) aos convidados é um gesto de boa educação e salutar amizade.

JÁ VIRAM O COMBOIO


Os que vão  às ceifas já viram o comboio,
já embarcaram no comboio,
já viram mundo!
Já viram o comboio...!
Eles não contam a fome nas ceifas,
não dizem do sol esbraseando-lhes a carne
pelas campinas nuas e lânguidas.
Eles não contam as saudades da mulher, as saudades dos filhos,
as saudades do morno lar.
já viram o comboio,
já embarcaram no comboio,
já viram mundo!
Contam a pintura desse mundo.

Fernando Namora de Terra em Novo Cancioneiro

Legenda: fotografia de Amadeu Ferrari

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

POSTAIS SEM SELO


Às vezes pergunto-me quem raio seria eu, se em vez de ter lido os livros que li, tivesse antes lido os que não li. Provavelmente cruzar-me-ia comigo na rua e não me reconheceria.

Manuel António Pina

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Reprodução das primeiras páginas de A Ilha do Tesouro de Robert Louis Stevenson.

Um livro encantador.

O meu imaginário está povoado de livros da infância e adolescència: Emílio Salgari, Júlio Verne, Alexandre Dumas, Walter Scott, Jack London, Robert Louis Stevenson, Mark Twain, tantos outros, Mas, com outros autores, devo muito a esta Biblioteca dos Rapazes da Portugália Editora.

Seguindo os obsoletos princípios da ditadura, rapazes de um lado, raparigas de outro, terá sido essa a razão de haver a Biblioteca das Raparigas, também da Portugália Editora. Uma rapariga não podia ler A Ilha do Tesouro? Os rapazes não podiam ler As Férias da Condessa de Ségur?

Só aquelas mentalidades velhas e doentias sabiam o porquê.

OLHAR AS CAPAS



A Ilha do Tesouro

Robert Louis Stevenson
Tradução. Alsácia Fontes Machado
Capa: Júlio Gil
Desenhos: Álvaro Duarte de Almeida
Biblioteca dos Rapazes nº 25
Portugália Editora, Lisboa s/d

O castelão Trelawney, o Dr. Livesey e outros senhores pediram-me que escrevesse tudo o que eu sabia sobre a Ilha do Tesouro, desde o princípio ao fim, sem esquecer nada, e apenas deixo em claro a localização da ilha porque ela guarda um tesouro que ainda não foi retirado. Peguei, pois, na pena no ano de graça de 17… e recuei até ao tempo em que meu pai tinha a estalagem do «Almirante Benbow» e em que o velho marinheiro, com a sua cicatriz duma sabrada, se instalou pela primeira vez sob o nosso tecto.
Lembro-me dele como se fosse ontem e vejo-o transpondo a porta da estalagem e trazendo atrás de si a sua mala de marujo. Era um homem alto, forte, pesado, de cor trigueira; uma alcatroada trança de cabelo caía-lhe sobre o casacão azul, cheio de nódoas; as mãos eram calosas, cobertas de cicatrizes, e as unhas enegrecidas e partidas; e a cicatriz da cutilada que lhe atravessava uma face, punha nela um traço branco e lívido. Vejo-o correndo a olhar em torno da enseada, assobiando em surdina, como ele costumava fazer, e depois trauteando essa velha canção que cantas vezes cantava:

Quinze homens na mala do morto…
Io-ho-ho, e uma garrafa de rum!

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

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Gosto muito da escrita de Mário de Carvalho.

 Nunca conversei com ele e encontro-o muitas vezes no Metropolitano, nas ruas que circundam aquela onde moro, em tempos, nas sessões de autógrafos da Festa do Avante ou da Feita do Livro, em outros tempos, às quintas-feiras, ele almoçava, com advogados amigos, num tasco para os lados das avenidas ditas novas, e, volta e meia também eu, com amigos meus, também amesentava por ali.

Mário de Carvalho nasceu em Setembro de 1944, eu em Março de 1945.

Morava na Rua das Enfermeiras da Grande Guerra, eu na Rua Mestre António Martins, ambas para os lados da Penha de França.

Andámos no Liceu Gil Vicente, a caminho sentíamos o delicioso cheiro, a chocolate, da Fábrica Favorita, ali a Sapadores, frequentámos as matinés do Cine-Oriente, do Royal, mas nunca nos encontrámos.

Certamente que um dia, chegarei à fala com Mário de Carvalho, para dizer não sei bem o quê, talvez a frase gasta e idiota: «gosto muito da sua escrita.»

Tenho em arquivo uma sua crónica publicada no Público, Março de 1993, que dá pelo nome de Uma Bandeira na Varanda. Quando a li comoveu-me muito e ainda hoje, quando a releio, sinto a mesma comoção.

Essa crónica está agora reunida em O Que Eu Ouvi Na Barrica das Maçãs, o que é um prazer e uma comoção redobrados.

Gosto de crónicas de jornais, algumas guardo-as e fico sempre à espera que os seus autores as reúnam em livro o que, nem sempre acontece e, infelizmente, no caso de António Lobo Antunes, é uma decisão definitiva: nunca mais publica um livro de crónicas.

O título do livro de Mário de Carvalho remete para as crónicas que sob esse mesmo nome escreveu para o Público e que é uma alusão a um capítulo de A Ilha do Tesouro, de Robert Louis Stevenson, «O que eu ouvi na barrica das maçãs.»

Como me faltam unhas para tocar guitarra, digo de Mário de Carvalho o que ele, em crónica inserta, também  na barrica das maças, diz de José Saramago:

«Eu, que sempre fui um repentista-do-dia-seguinte, não podia deixar de admirar e de invejar uma arte de dizer que me parecia coisa de feiticeiro. E, ainda por cima, num português impecável, capaz de ser posto logo em papel.»

Legenda: pormenor do capítulo 11 de A Ilha do Tesouro e onde Mário de Carvalho foi buscar o título do seu livro.

OLHAR AS CAPAS



O Que Eu Ouvi Na Barrica das Maçãs.

Prefácio: Francisco Belard
Porto Editora, Porto, Abril de 2019

Todos os anos, pelo 5 de Outubro, o meu pai punha uma bandeira portuguesa à varanda. Eu morava numa rua muito inclinada que se chama Rua das Enfermeiras da Grande Guerra e que era então habitada por uma pequena burguesia curvada e timorata. Mais nenhuma bandeira era hasteada na rua, nem noutras em redor, nem no bairro. Por um lado, aquela bandeira ao vento dava-me algum orgulho, porque, mesmo miúdo, sentia na minha varanda a vibração duma causa importante que – vim a sabê-lo depois – não era necessariamente a republicana; por outro lado, sofria o constrangimento de todos os gaiatos que são expostos à exibição de uma diferença. Os amigos manifestavam-me estranheza, eu não sabia que responder, e os conselhos que trazia de casa guardava-os bem guardados, porque só iriam complicar mais a relação com o meu grupo. Era uma caso, aquilo da bandeira na varanda…

PONTO DE ORVALHO


Nem se chega a saber como
um inusitado sorriso,
um volver de olhos doentes,
um caminhar indeciso
e cego por entre as gentes,
chamam a si, aglutinam,
essa dor que anda suspensa
( e é dor de toda a maneira)
como o vapor se condensa
sobre núcleos de poeira.
É essa angústia latente
boiando no ar parado
como um trovão iminente,
que em muda voz se pressente
num simples olhar trocado.
Essa angústia universal,
esse humano desespero,
revela-se num sinal,
numa ferida natural
que rói com lento exagero.
Não deita sangue nem pus,
não se mede nem se pesa,
não diz, não chora, não reza,
não se explica nem traduz.
A gente chega, respira,
olha, sorri, cumprimenta,
fala do frio que apoquenta
ou do suor que transpira,
e pronto, sem saber como,
inútil, seco, vazio,
cai na penumbra do rio,
emerge, bóia, soçobra,
fácil e desinteressado
como um papel que se dobra
por onde já foi dobrado.

António Gedeão de Teatro do Mundo em Poesias Completas

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

POSTAIS SEM SELO


Por mais que me esforce não consigo juntar o meu entusiasmo à gente que vai perder a noite para ver os astronautas aos saltinhos na Lua.
Oxalá não estraguem o Luar, nem mandem uma bomba nova aos vietcongs.

José Gomes Ferreira no seu Dias Comuns Volume VII

Legenda: imagem de A Viagem à Lua de Georges Méliès, filme de 1902, baseado na Viagem à Lua de Júlio Verne e Os Primeiros Homens na Lua de H. G. Wells.

OLHAR AS CAPAS


Tentação Perigosa

A. A. Fair
Tradução: Fernanda Pinto Rodrigues
Capa: Lima de Freitas
Colecção Vampiro nº 281
Livros do Brasil, Lisboa s/d

Elsie Brand Estendeu-me um postal.
- Talvez queira o seu correio, antes de ir com Mrs. Cool, Mr. Lam.
Peguei no postal que viera de Havana, Cuba, por via aérea. Era- me dirigido pessoalmente e dizia:
«Amor: Estou a passar uma férias deliciosas. Gostaria tanto que estivesse comigo! Millie.»
As palavras «Gostaria tanto que estivesse comigo!» tinham sido sublinhadas com força.
Bertha Cool passou-me afectuosamente um braço pelos ombros.
- Venha, seu patifão, e conte à Bertha tudo acerca dos quarenta mil dólares! Meia-leca mais esperto não há!

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Fly me To The Moon, que se ouve em Space Cowboys, está envolvida na voz de Frank Sinatra, acompanhado pela Orquestra de Count Basie e para a qual Quincy Jones fez um soberbo arranjo.
Juntam-se estas lendas da música americana e pergunta-mo-nos por que raio teremos de morrer e deixar de ouvir estas pérolas musicais.

SPACE ODYSSEY


Consta que no dia 21 de Julho de 1969 a Humanidade deu um enorme salto em frente.

Precisamente às 2.56 UTC…

Mas eu não dei por nada…

Tinha sido um fim-de-semana desgastante a subir e a descer arribas entre a Praia da Adraga e a Praia da Ursa com o meu amigo João Pedro, e quando os pais dele me depositaram em casa no Domingo à hora do jantar, não obstante toda a juventude dos meus dezasseis aninhos,  estava arrasado e só queria ver a cama à minha frente…

Pedi lá em casa para, na altura própria, me acordarem.

Mas ninguém me veio chamar…

Esquecidos pela emoção do momento ou por se estarem, pura e simplesmente, a borrifar para o puto, nenhuma santa alminha se lembrou de me vir acordar, como lhes tinha pedido…

Assim, terei sido das poucas pessoas deste Mundo dito civilizado a perder esse momento histórico.

Mas quando na manhã do dia seguinte me levantei e vi, irritado, as imagens em repetição, larguei dois ou três berros ofensivos para quem estava à minha volta e jurei que ainda um dia haveria de ir ali…

Ali não era a lua, claro está, mas Cape Canaveral, de onde Armstrong, Aldrin e Collins tinham partido cinco dias antes.

E o facto de só ter cumprido a promessa quase 50 anos depois não teve, para mim,  qualquer importância…

A caminho do mítico lugar, e sem saber muito bem o que me iria esperar, comecei a salivar imaginando o que gostaria que fosse.


Os americanos, de tão profissionais que são, não iriam deixar de me impressionar com uma magnífica e diversificada exposição. Certamente que haveria, imaginei eu, um espaço destinado ao Cinema de temática espacial, outro destinado à Música, um outro ainda à Literatura, e por aí fora…

Em relação ao Cinema, não poderia haver qualquer dúvida… Então não tinha o cinema de ficção começado, precisamente, com uma deliciosa “Viagem à Lua” (Georges Méliés, 1902)…? E não deram as viagens espaciais, por todo o Mundo e não apenas na América, pano para mangas ao Cinema, desde os tempos do mudo (o dinamarquês “A Trip to Mars” de 1918, o soviético “Aaelita”, de 1924 , o alemão “Uma Mulher na Lua” de 1929, …) até aos grandes Clássicos dos  dias de hoje, passando por todos aqueles magníficos pequenos  filmes de série B dos anos 50 (“Destination Moon”, “Forbiden Planet”, “From the Earth to the Moon”, “Day the Earth Stood Still”, “Earth vs. Flying Saucers”, são tantos, meu Deus…!), em que tantas vezes naves espaciais e seres vindos de outros Planetas mais não eram do que fantasmas do outro lado da Cortina, próprios daqueles anos de “guerra fria”.


Na Literatura iria encontrar Jules Verne e H. G. Welles, claro está, e tinha quase a certeza de que também iria descobrir, algures no fundo da sala e em tamanho gigante, um poster daquela inesquecível capa do Tintim e da sua “Viagem à Lua”, da minha meninice. Mas também não deixaria de encontrar por lá, certamente, uma homenagem a todos aqueles pequenos/grandes escritores da Ficção Cientifica dos anos 40/50 (Arthur C. Clark, Isaac Asimov, Philip K. Dick, …) os quais, com exceção do Stanislaw Lem e do Ray Bradbury, só conheço de ouvir falar e de ter visto alguns dos seus livros adaptados ao Cinema, porque desde muito cedo o meu coração balançou sempre muito mais para o Romance Policial do que para a Ficção Científica…


Em relação à Música, Kubrick fez com que não pudéssemos deixar de imaginar passeios no espaço sem ouvirmos o “Danúbio Azul” mas, muitos anos mais tarde, Clint Eastwwod provou que também poderemos ter a mesma sensação ao som dos velhos “standards” da Música Popular Americana.

Mas foi ao relembrar as músicas da minha adolescência que deparei com uma coincidência que nunca antes me tinha vindo à cabeça: então não é que uma das bandas que mais gosto de usar em longas viagens de carro pela estrada fora (os Byrds…) foi, entre o amor pelos aviões de Roger McGuinn e o pavor de andar neles de Gene Clark,  também aquela que mais atenção dedicou à música espacial…?  E não me refiro, apenas, às suas músicas que acabaram por ser catalogadas como “space rock” (Mr. Spaceman, “CTA – 102”, “Eight Miles High”, …),  muitas delas meras metáforas de outras “trips” e outros espaços, mas a homenagens mais óbvias e singelas,  como “Spacey Oyssey” do álbum “The Notorious Byrd Brothers”, que antecipa Kubrick ao se inspirar na mesma “short Story” de Arthur C. Clarke que viria a dar origem ao “2001”, mas também, e acima de tudo, a “Armstong, Aldrin and Collins”, do LP “Ballad of Easy Ryder”, que celebra o lançamento da Apollo 11 e que começa com a contagem decrescente, passa ao acionamento dos motores e acompanha o barulho da nave a subir  enquanto é lançada pelos ares:


                “Minus 20 in counting … 19..18..17..16..15..14..13..12..11..10..9..8..7..6..5..
                 We have ignition … 3..2..1
                 We have lift off”

E depois a voz de Roger McGuinn:

                 “Armstrong, Aldrin and Collins were launched away is space
                  Millions of hearts were lifted, proud of the human race
                  Space controla at Huston , Radio Command
                  The team below that gave the go, they had God’s helping hand”

E quanto mais pensava nisto tudo rolando pela 528 a caminho de Cape Canaveral, mais salivava…

 E foi assim, com um sorriso no rosto, que finalmente entrei no Kennedy Space Center, disposto a degustar todos estes meus pequenos prazeres…

E depois….

Bem, depois foi um tremendo soco no estômago…


O espaço era gigantesco, mas estava inteiramente devotado à Técnica, à história da exploração espacial e à propaganda da NASA, e tudo o mais foi esquecido.  Como, aliás, teria sido  de esperar, não fosse eu o otimista que sou, os americanos borrifaram-se nas outras formas de Cultura e da sua  ligação às viagens espaciais…!

Poderia ter almoçado com um astronauta veterano...

Teria sido possível, se não tivesse chegado a desoras, apanhar um “shuttle” para a base da rampa de lançamento dos foguetões…

Poderia ter tido (como na realidade tive…) a sensação de viver uma simulação de lançamento no interior de uma nave espacial…

Mas dos meus pequenos prazeres, nicles…

Desolado e sabendo que a Técnica pouco me interessava, limitei-me a fazer render o investimento deambulando pelo meio de foguetes, foguetões, vai-vem espaciais, ogivas e outros peças de inquestionável interesse histórico, como a réplica da cápsula da amaragem  do Apollo 11, mas que não me aqueciam o coração… 

E foi entristecido que, com a minha mulher e a minha filha, me meti de novo ao caminho, em direção a Daytona Beach.

Mas ainda me ri para comigo à saída, lembrando-me do Bowie e do seu Major Tom, bem capaz de ainda andar lá por cima às voltas a rir-se de todos nós:


“Ground control to Major Tom
Grand control to Major Tom
Your circuit’s dead, there’s something wrong…
Can you hear me, Major Tom…?
…………………………………………………………………..
…………………………………………………………………..
…………………………………………………………………..
“Here am I floating ‘round my tin can
Far above the moon
Planet heart is blue
And there’s nothing I can do…”


PS: Quanto à evolução da Humanidade, estamos conversados…

Texto e fotografias de Luís Miguel Mira

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

APANHADOS DO FACEBOOK


NOTÍCIAS DO CIRCO


Sabe-se: não aprendemos nada com os nossos erros: povo, bancos e governos.

O que nos acontece depois, é um filme que já vimos e que tinha tudo para não gostarmos e, muito menos, voltarmos a ver.

Os bancos e essas tretas que emprestam dinheiro à papo-seco, disponibilizaram perto de 3,7 mil milhões de euros em crédito ao consumo na primeira metade do ano.

Trata-se de um novo máximo do histórico do Banco de Portugal e significa que, em média, os portugueses pediram mais de 20 milhões de euros por dia em empréstimos.

OLHARES


A publicação da crónica do José Quitério sobre a Solmar, fez-me lembrar que teria por aí uma fotografia do reclame que desde longos tempos sempre me encantou.

Acabei por a encontrar.

Não tenho referência da data em que a tirei, mas foi há mais de 10 anos.

Há muito que não passo por aqueles lados mas, segundo informes, o espaço interior não sofreu grandes alterações mas tudo o resto é para esquecer.

VELHOS RECORTES


Em arrumações, fui dar com uma caixa em que, no meio de himalaias de papelada encontrei, algumas crónicas sobre vinhos e comidas de José Quitério publicadas no Expresso.

José Quitério é um homem de cultura, telúrico, ético, que por finais do ano de 2014 teve de deixar de fazer as suas crónicas de apreciador de comida, como ele gostava de dizer em vez de gastronomia, que é palavra gasta e confusa.

Disse, então ao Baptista-Bastos: «Estou quase cego.»

Foram 38 anos a deliciar-nos com escrita de mestre e era a única coisa que valia a pena ler no semanário de Pinto Balsemão.

Esta crónica sobre a Solmar, foi publicada no Expresso de 8 de Fevereiro de 2014.