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terça-feira, 9 de abril de 2024

NÃO TENHO PARA TI QUOTIDIANO

Não tenho para ti quotidiano
mais que a polpa seca ou vento grosso,
ter existido e existir ainda,
querer a mais a mola que tu sejas,
saber que te conheço e vai chegar
a mão rasa de lona para amar.

Não tenho braço livre mais que olhar
para ele, e o que faz que tu não queiras.
Tenho um tremido leito em vala aberta,
olhos maduros, cartas e certezas.

Neste comboio longo, surdo e quente,
vou lá ao fundo, marco o Ocupado.
Penso em ti, meu amor, em qualquer lado.
Batem-me à porta e digo que está gente.


Pedro Tamen de Daniel na Cova dos Leões em Tábua das Matérias

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

OLHAR AS CAPAS


As Palavras da Tribo

Antologia pessoal de poemas dos autores

Fernando Guimarães

Mário Cláudio

Nuno Júdice

Pedro Tamen

Desenhos de José Guimarães

Quetzal, Lisboa 1985

 

Não tenho para ti quotidiano
mais que a polpa seca ou vento grosso,
ter existido e existir ainda,
querer a mais a mola que tu sejas,
saber que te conheço e vai chegar
a mão rasa de lona para amar.

Não tenho braço livre mais que olhar
para ele, e o que faz que tu não queiras.
Tenho um tremido leito em vala aberta,
olhos maduros, cartas e certezas.

Neste comboio longo, surdo e quente,
vou lá ao fundo, marco o Ocupado.
Penso em ti, meu amor, em qualquer lado.
Batem-me à porta e digo que está gente.

 

Poema de Pedro Tamen.

terça-feira, 12 de setembro de 2023

ODE

Agenda, meu desforço,
subtil celeridade com que esqueço
os termos de ser moço
nos tempos que feneço.

De que me vingas tu, senão
de não ser de compras e de festas
mas de ir comprando pão?
Agenda que me emprestas

mas não me dás nem vendes,
que me vestes gravatas e coletes,
me afagas, me consolas, me defendes.
Fecho-me a sete chaves nas retretes

e assento em ti palavras que desvivo
no rio de que rio aguadamente.
E assim me liberto se me esquivo
Habilidoso e rente.

Pedro Tamen em Tábua das Matérias

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

O MAR É LONGE

O mar é longe, mas somos nós o vento;
e a lembrança que tira, até ser ele,
é doutro e mesmo, é ar da tua boca
onde o silêncio pasce e a noite aceita.
Donde estás, que névoa me perturba
mais que não ver os olhos da manhã
com que tu mesma a vês e te convém?
Cabelos, dedos, sal e a longa pele,
onde se escondem a tua vida os dá;
e é com mãos solenes, fugitivas,
que te recolho viva e me concedo
a hora em que as ondas se confundem
e nada é necessário ao pé do mar.


Pedro Tamen

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

DISSESTE

Disseste: o sol nasceu.

Foi verdadeiramente então que o sol nasceu

e que nos habituámos todos a dizer

que o sol nasceu.

Às vezes pensamos que acontece várias vezes

mas é uma ilusão de óptica que não nos deixa ver

o grande círculo azul em cujo centro

tu dizes eternamente: o sol nasceu.

 

Pedro Tamen 

quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

CHAVE, KLEE

És, como no Klee
a máquina de chilrear
a liquidez perfeita dos passos,
a música dos surdos.

Que húmido pilar
sustenta, amor, o paço
em que me acoito e durmo
que não seja teu canto

ao canto do meu dia?
És, como no Klee,
a virgem matemática
que tudo me desvenda

e sem que eu faça contas
calculas somas, sumos,
entre o covo das ondas
e azul astronomia.

És, como no mundo,
a pintura delida
de que sobrou apenas
um osso branco e flauta.

Pedro Tamen

quarta-feira, 18 de maio de 2022

IVAN ILITCH

Não perguntei ao agonizante que paisagem

via para além dos pés da cama

que era aquilo dos rostos inquietos

se de verdade inquietos

aos pés da cama há tantos dia     ai

há tantos     tantos dias

espreitando     espreitando de olhos molhadinhos

a passa passividade     a quase bem passada

posição deitada mas respirante ainda

 

Não perguntei se do outro lado

por cima ou   bem melhor     atrás

da vazia cabeça   alguma coisa ardia

sem nada anunciar

tudo pronunciando

 

Pedro Tamen

sexta-feira, 30 de julho de 2021

PRIMEIRO DIA SEM PEDRO TAMEN


Amar-te é vir de longe,
descer o rio verde atrás de ti,
abrir os braços longos desde os sete
anos sob a latada ao pé do largo,
guardar o cheiro a figos vistos lá,
a olho nu, ao pé, ao pé de ti,
parar a beber água numa fonte,
um acaso perdido no caminho
onde os vimes me roçam a memória
e te anunciam mãos e te perfazem;
como se o sino à hora de tocar
já fosse o tempo todo badalado,
e a tua boca se abrisse atrás do tojo,
e abaixo dos calções as pernas nuas
se rasgassem só para o pequeno sangue,
tal o pequeno preço que me pedes.
Atrás da curva estavas, és, serias,
nos muros de granito, nas amoras.
Amar-te era lembrança e profecias,
uma porta já feita para abrir,
e encontrar o lar ou música lavada
onde, se nasces, vives, duras, moras
— meu nome exacto e pão
no chão das alegrias.


Pedro Tamen de Escrito de Memória em Tábua das Matérias

quinta-feira, 29 de julho de 2021

PEDRO TAMEN (1934-2021)


Morreu Pedro Tamen.

Um poeta de mão cheia, um Príncipe.

É uma grande perda, mas ficamos com o agasalho dos seus versos, das suas traduções, do enorme exemplo que nos deixou como pessoa e como intelectual,

sempre a fugir dos holofotes, das parangonas de jornais e revistas.

 

Chave, Klee

 

És, como Klee

a máquina de chilrear

a liquidez perfeita dos passos,

a música dos surdos.

 

Que húmido pilar

sustenta, amor, o paço

em que me acoito e durmo

que não seja teu canto

 

ao canto do meu dia?

És, como Klee,

a virgem matemática

que tudo me desvenda

 

e sem que eu faça contas

calculas somas, sumos,

entre o covo das ondas

e azul astronomia.

 

És, como no mundo,

a pintura delida

de que sobrou apenas

um osso branco e flauta.

 

Pedro Tamen em Rosado Mundo


sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

HERODES


                 Para Miguel Viqueira

Gritam, mijam, cheiram a leite
azedo. Andam por aí
pelos colos das mães, montados
em burros poeirentos. E há um
que aqueles pretos dizem que há-de um dia
sentar no meu coxim o cu borrado.
Não sabem nada, uns e outros,
soltam vagidos que ninguém entende.
Dou-lhes na mona a uns
e os outros que passeiem.
Detesto gente parva.

Pedro Tamén em Natal… Natais

domingo, 29 de setembro de 2019

NAQUELE TEMPO


Naquele tempo, viver era a melhor coisa do mundo.
Quando nascia o sol todas as pessoas viam
e os homens eram crianças para além dos montes.
Era uma planície, grande como convém a todas as planícies
E plana porque tudo estava certo.
Naquele tempo tínhamos sido criados e éramos iguais às ervas e às flores.

Tu,
tão perfeita que era impossível não seres,
tão erguida como um riso de andorinha,
tu estavas ao meu lado, naturalmente fresca,
e não havia motivos nem razões porque sabíamos tudo.
A nossa teologia era o beijo da criança mais próxima
e ao deitarmo-nos na terra como folhas da mesma planta,
gratos, reduzidos, conscientes.
Olhando para cima, o céu abria-se e todos os Anjos vinham sentar-se no rebordo
e riam como nós pequenas gargalhadas.
Eu cantava canções mais belas do que não tendo palavras
e ouvias-me em silêncio e de olhos abertos exactamente como a todos os sons.

Pedro Tamen de Os Dias em Tábua das Matérias

quinta-feira, 11 de abril de 2019

ENQUANTO


Enquanto ponto a ponto coso
uma coisa a outra coisa
tornando um o que era dois ou mais
morreram tantas     tantas pessoas

e eu também morri
deixando as minhas mãos
e as partes que cosi

Pedro Tamen em O Livro do Sapateiro

sexta-feira, 18 de maio de 2018

NASCESTE TU ONDE OS CAVALOS BEBEM


Nasceste tu onde os cavalos bebem,
onde os rios se viram para o vento
e o vento um ao outro se perseguem
até ao nó do seu sustentamento.

Vieste de onde a noite se distingue
tão lentamente em cacto e amarelo;
de onde a papoila aberta não se finge
outra coisa que o grito, a paz e o selo

dos elementos limpos, da alegria
do silêncio acabado de nascer
- tal como tu, que estás na periferia

cheia de centro, e força de viver
a hora longa do primeiro dia
na humildade firme de aparecer.

Pedro Tamen em Tábua das Matérias

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

EU, SEM PAI, NEM MÃE...


Eu, sem pai, nem mãe, aqui presente,
declaro hirsuto que não temi de mais
quando, mais doído que doente,
não me levaram de casa de meus pais
por não os ter, nem casa, nem menino
ou moço ser. Corri comigo,
e pardacento, alvar e asinino,
fui para o campo a mordiscar o perigo.

Pedro Tamen em Tábua das Matérias

segunda-feira, 13 de março de 2017

OLHAR AS CAPAS


Tábua das Matérias
(1956/1991)

Pedro Tamen
Capa: Levina Valentim
Círculo de Leitores, Lisboa, Fevereiro de 1995

Adis-Abeba tem belos eucaliptos
e quatrocentos mil abexins
ruas rasgadas para o sudoeste da cidade
e um grande leão coroado a caracóis
O sol cai sincero sobre o pó
mas eu tenho a minha mesa
à sombra onde três cubos de gelo
lentamente se transformam em John Haig
Logo à noite há um passeio até aos coqueiros
uma etíope cristã de nome Parka
e estrelas insolúveis evidentes
até que venha o sono
Com Adis-Abeba só sei falar por gestos
por isso eu sei de peles sobretudo morenas

domingo, 27 de dezembro de 2015

OLHAR AS CAPAS


Natal… Natais
Oito séculos de Poesia sobre o Natal

Antologia de Vasco Graça Moura
Capa: Graça Castanheira
Público, Lisboa, s/d

Não digo do Natal – digo da nata
do tempo que se coalha com o frio
e nos fica branquíssima e exacta
nas mãos que não sabem de que cio

nasceu esta semente; mas que invade
esses tempos relíquidos e pardos
e faz assim que o coração se agrade
de terrenos de pedras e de cardos

por dezembros cobertos. Só então
é que descobre dias de brancura
esta nova pupila, outra visão,

e as cores da terra são feroz loucura
moídas numa só, e feitas pão
com que a vida resiste, e anda, e dura.

(Pedro Tamen)

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

TRÊS FRAGMENTOS À MEMÓRIA DE CRISTOVAM PAVIA


1

O fundo esse por onde tu saíste
qual é ele? Só uma coisa sei:
que é, e por aí
foste encontrar as glicínias virgens.
E mais do que nunca no maior silêncio
nos repetes teu branco telegrama.
Nos caminhos da quinta, as doninhas
também elas se calam, e as palmeiras:
o mundo inteiro é tua testemunha.


2

Quando já era tarde e eu não mais falava
(eu; que tu amavas dentro)
as ruas eram ocas, transparentes,
começava a nascer o outro dia.
Porque era ainda cedo.

3

E hoje o teu rosto é uma faca
que nos divide em um.


(1968)


Pedro Tamen, de Inéditos e Esparsos em Tábuadas Matérias,

quinta-feira, 24 de abril de 2014

O QU'É QUE VAI NO PIOLHO?


Os Verdes Anos, filme de Paulo Rocha, com argumento de Nuno Bragança e música de Carlos Paredes, poema de Pedro Tamen

De Os Verdes Anos, diz Jorge Silva Melo em Século Passado, memórias suas, que viu o filme no São Luiz, tinha quinze anos e nenhum outro filme  tenha rasgado mais o céu possível do que este pequeno filme juvenil, inseguro tímido e lírico de Paulo Rocha, filme feito aos vinte e cinco anos ( o Paulo nasceu em Dezembro de 1936, o filme traz a data de 1963).
Com que então, era possível? Filmar os locais que eu conhecia, filmar desencontros de amor pelo entardecer do campo grande, filmar as barracas que se construíam em cima da Avenida do Aeroporto, até perdermos a vista noutras Chelas e, agora, o parque do Rock in Rio? Filmar Floresta do Ginjal, aquela escada íngreme forrada a conchas? Filmar pessoas, como a criada eu andava pela casa dos meus pais chorando com os folhetins da rádio e aos domingos de namoro? E ver nisto, inscrever na paisagem que todos os dias eu via (a esquina do Vává…) a violência daquele final, a morte da rapariga, o rapaz que desafia a cidade?
Ele havia Salazares, a Pide era mesmo ao lado do São Luiz, a censura não estava longe, mas aquele foi um dia rasgado, puro e limpo, o dia sob a ditadura em que vi os Verdes Anos.
«É o filme que melhor dá a ver Lisboa e Portugal como espaços de frustração, espaços claustrofóbicos, sem saída, onde tudo se frustra e tudo agoniza numa morte branda», diz João Bénard da Costa, e ninguém sabe mais do que ele.
E o Paredes continua a tocar. Até ao sabugo, como o Paulo Rocha.

O Poema Possível

Era o amor
que chegava e partia:
estarmos os dois
era um calor
que arrefecia
sem antes nem depois…
Era um segredo
sem ninguém para ouvir:
eram enganos
e era um medo,
a morte a rir
nos nossos verdes anos...

Teus olhos não eram paz,
não eram consolação.
O amor que o tempo traz
o tempo o leva na mão.

Foi o tempo que secou
a flor que ainda não era.
Como o Outono chegou
no lugar da Primavera!

No nosso sangue corria
um vento de sermos sós.
Nascia a noite e era dia,
e o dia acabava em nós…

O que em nós mal começava
não teve nome de vida:
era um beijo que se dava
numa boca já perdida.



quarta-feira, 28 de março de 2012

COISAS EXTINTAS OU EM VIAS DE...


Mais um velho bilhete da CARRIS que estava a fazer de marca num livro que, por mera curiosidade,pode dizer-se que é Notícia da Cidade Silvestre da Lídia Jorge.
Como isto anda tudo ligado, o bilhete serve de pretexto para publicar um poema do Pedro Tamem:

 Transporte Colectivo

Estatelam-se as estátuas; abre-se a morte
como um jacinto novo à chuva da manhã.
Aai, porém, a tarde vai-se ao mais profundo
e cai longe de nós. Agora vem ao Leme
a perfeita figura entretecida de água
e fogo. Agarra-nos de perto e somo dela.

Se alguma janela aberta o incomoda
peça ao condutor que feche.

Agora os ventos calmos; já não correm,
antes poisados velam, interligam
de A a Z o tímpano das coisas.
Descoberta, revela-se a memória:
Se uma janela fechada o incomoda
O Condutor,  pedindo-lhe, abrirá.

Pedro Tamem do livro Poemas a Isto em Tábua das Matérias. 

sexta-feira, 2 de abril de 2010

CARLOS PAREDES É NOME DE GUITARRA

CARLOS PAREDES GUITARRA PORTUGUESA
COLUMBIA SPMX 5002
Editado em 1967
Acompanhamento à viola de Pedro Alvim
Fotografia de Augusto Cabrita

Tinham palavras as músicas, havia poemas recitados e havia música sem palavras.

A música de Carlos Paredes, este LP de capa preta, a acompanhar os dias a caminho de um tal Abril.

Lado 1
Variações em Ré Maior – Porto Santo – Fantasia – Melodia Nº 2 – Dança – Canção Verdes Anos
Lado 2
Divertimento - Romance Nº 1 – Romance Nº 2 – Pantomina – Melodia Nº 1

Ouvir Carlos Paredes é voltar sempre aos verdes anos, àquele mudar de vida. Sentir a ofegante respiração em cada espira dos seus discos, um respirar de dignidade, de carácter, de génio, um corpo dobrado sobre uma guitarra.
“Gosto demasiado da música para viver às custas dela.”, disse, um dia, com aquela desconcertante simplicidade que o acompanhava a todas as horas.
Rui Vieira Nery chamou-lhe “um príncipe”.

Dele disse José Saramago:

“Não o pensava antes, quando escutava a guitarra de Carlos Paredes, mas hoje, recordando-a, compreendo que aquela música era feita de alvoradas, canto de pássaros anunciando o sol. Ainda tivemos de esperar uma década antes que outra madrugada viesse abrir-se para a liberdade, mas o inesquecível tema de Verdes Anos, esse cantar de extática alegria que ao mesmo tempo se entretece em harpejos de uma surda e irreprimível melancolia, tornou-se para nós numa espécie de oração laica, um toque a reunir de esperanças e vontades. Já seria muito, mas ainda não era tudo. O resto que ainda faltava conhecer era o homem de dedos geniais, o homem que nos mostrava como podia ser belo e robusto o som de uma guitarra, e que era, a par de músico e intérprete excepcional, um exemplo extraordinário de simplicidade e grandeza de
carácter. A Carlos Paredes não era preciso pedir que nos franqueasse as portas do seu coração. 

Estavam sempre abertas.”

“Canção Verdes Anos”, que Carlos Paredes escreveu para o filme de Paulo Rocha “Os Verdes Anos” (1963) tem poema de Pedro Tamem:

Era o amor
Que chegava e partia
Estarmos os dois
Era um calor, que arrefece
Sem antes nem depois

Era um segredo
Sem ninguém para ouvir
Eram enganos e era um medo
A morte a rir
Dos nossos verdes anos

Foi o tempo que secou
A flor que ainda não era
Como o outono chegou
No lugar da primavera

No nosso sangue corria
Um vento de sermos sós
Nascia a noite e era dia
E o dia acabava em nós