Não
tenho para ti quotidiano
mais que a polpa seca ou vento grosso,
ter existido e existir ainda,
querer a mais a mola que tu sejas,
saber que te conheço e vai chegar
a mão rasa de lona para amar.
Não tenho braço livre mais que olhar
para ele, e o que faz que tu não queiras.
Tenho um tremido leito em vala aberta,
olhos maduros, cartas e certezas.
Neste comboio longo, surdo e quente,
vou lá ao fundo, marco o Ocupado.
Penso em ti, meu amor, em qualquer lado.
Batem-me à porta e digo que está gente.
Não tenho para ti
quotidiano
mais que a polpa seca ou vento grosso,
ter existido e existir ainda,
querer a mais a mola que tu sejas,
saber que te conheço e vai chegar
a mão rasa de lona para amar.
Não tenho braço livre mais que olhar
para ele, e o que faz que tu não queiras.
Tenho um tremido leito em vala aberta,
olhos maduros, cartas e certezas.
Neste comboio longo, surdo e quente,
vou lá ao fundo, marco o Ocupado.
Penso em ti, meu amor, em qualquer lado.
Batem-me à porta e digo que está gente.
O mar é longe, mas somos nós o vento;
e a lembrança que tira, até ser ele,
é doutro e mesmo, é ar da tua boca
onde o silêncio pasce e a noite aceita.
Donde estás, que névoa me perturba
mais que não ver os olhos da manhã
com que tu mesma a vês e te convém?
Cabelos, dedos, sal e a longa pele,
onde se escondem a tua vida os dá;
e é com mãos solenes, fugitivas,
que te recolho viva e me concedo
a hora em que as ondas se confundem
e nada é necessário ao pé do mar.
Amar-te é vir de longe,
descer o rio verde atrás de ti,
abrir os braços longos desde os sete
anos sob a latada ao pé do largo,
guardar o cheiro a figos vistos lá,
a olho nu, ao pé, ao pé de ti,
parar a beber água numa fonte,
um acaso perdido no caminho
onde os vimes me roçam a memória
e te anunciam mãos e te perfazem;
como se o sino à hora de tocar
já fosse o tempo todo badalado,
e a tua boca se abrisse atrás do tojo,
e abaixo dos calções as pernas nuas
se rasgassem só para o pequeno sangue,
tal o pequeno preço que me pedes.
Atrás da curva estavas, és, serias,
nos muros de granito, nas amoras.
Amar-te era lembrança e profecias,
uma porta já feita para abrir,
e encontrar o lar ou música lavada
onde, se nasces, vives, duras, moras
— meu nome exacto e pão
no chão das alegrias.
O fundo esse por onde tu saíste
qual é ele? Só uma coisa sei:
que é, e por aí
foste encontrar as glicínias virgens.
E mais do que nunca no maior silêncio
nos repetes teu branco telegrama.
Nos caminhos da quinta, as doninhas
também elas se calam, e as palmeiras:
o mundo inteiro é tua testemunha.
2
Quando já era tarde e eu não mais falava
(eu; que tu amavas dentro)
as ruas eram ocas, transparentes,
começava a nascer o outro dia.
Porque era ainda cedo.
3
E hoje o teu rosto é uma faca
que nos divide em um.
Os Verdes Anos, filme de Paulo Rocha, com argumento de Nuno Bragança e música de Carlos Paredes, poema de Pedro Tamen
De Os Verdes Anos, diz Jorge Silva Melo em
Século
Passado, memórias suas, que viu o filme no São Luiz, tinha quinze anos
e nenhum outro filme tenha
rasgado mais o céu possível do que este pequeno filme juvenil, inseguro tímido
e lírico de Paulo Rocha, filme feito aos vinte e cinco anos ( o Paulo nasceu em
Dezembro de 1936, o filme traz a data de 1963).
Com que então, era possível? Filmar os locais que eu conhecia, filmar
desencontros de amor pelo entardecer do campo grande, filmar as barracas que se
construíam em cima da Avenida do Aeroporto, até perdermos a vista noutras
Chelas e, agora, o parque do Rock in Rio? Filmar Floresta do Ginjal, aquela
escada íngreme forrada a conchas? Filmar pessoas, como a criada eu andava pela
casa dos meus pais chorando com os folhetins da rádio e aos domingos de namoro?
E ver nisto, inscrever na paisagem que todos os dias eu via (a esquina do Vává…)
a violência daquele final, a morte da rapariga, o rapaz que desafia a cidade?
Ele havia Salazares, a Pide era mesmo ao lado do São Luiz, a censura
não estava longe, mas aquele foi um dia rasgado, puro e limpo, o dia sob a
ditadura em que vi os Verdes Anos.
«É o filme que melhor dá a ver Lisboa e Portugal como espaços de
frustração, espaços claustrofóbicos, sem saída, onde tudo se frustra e tudo
agoniza numa morte branda», diz João Bénard da Costa, e ninguém sabe mais do
que ele.
E o Paredes continua a tocar. Até ao sabugo, como o Paulo Rocha.
O Poema Possível
Era o amor
que chegava e partia:
estarmos os dois
era um calor
que arrefecia
sem antes nem depois…
Era um segredo
sem ninguém para ouvir:
eram enganos
e era um medo,
a morte a rir
nos nossos verdes anos...
Teus olhos não eram paz,
não eram consolação.
O amor que o tempo traz
o tempo o leva na mão.
Foi o tempo que secou
a flor que ainda não era.
Como o Outono chegou
no lugar da Primavera!
No nosso sangue corria
um vento de sermos sós.
Nascia a noite e era dia,
e o dia acabava em nós…
O que em nós mal começava
não teve nome de vida:
era um beijo que se dava
numa boca já perdida.
Mais um velho bilhete da CARRIS que estava a fazer de marca num livro que, por mera curiosidade,pode dizer-se que é Notícia da Cidade Silvestre da Lídia Jorge.
Como isto anda tudo ligado, o bilhete serve de pretexto para publicar um poema do Pedro Tamem:
Transporte Colectivo
Estatelam-se as estátuas; abre-se a morte
como um jacinto novo à chuva da manhã.
Aai, porém, a tarde vai-se ao mais profundo
e cai longe de nós. Agora vem ao Leme
a perfeita figura entretecida de água
e fogo. Agarra-nos de perto e somo dela.
Se alguma janela aberta o incomoda
peça ao condutor que feche.
Agora os ventos calmos; já não correm,
antes poisados velam, interligam
de A a Z o tímpano das coisas.
Descoberta, revela-se a memória:
Se uma janela fechada o incomoda
O Condutor, pedindo-lhe, abrirá.
Pedro Tamem do livro Poemas a Isto em Tábua das Matérias.
CARLOS PAREDES GUITARRA PORTUGUESA COLUMBIA SPMX 5002 Editado em 1967 Acompanhamento à viola de Pedro Alvim Fotografia de Augusto Cabrita Tinham palavras as músicas, havia poemas recitados e havia música sem palavras. A música de Carlos Paredes, este LP de capa preta, a acompanhar os dias a caminho de um tal Abril. Lado 1 Variações em Ré Maior – Porto Santo – Fantasia – Melodia Nº 2 – Dança – Canção Verdes Anos Lado 2 Divertimento - Romance Nº 1 – Romance Nº 2 – Pantomina – Melodia Nº 1 Ouvir Carlos Paredes é voltar sempre aos verdes anos, àquele mudar de vida. Sentir a ofegante respiração em cada espira dos seus discos, um respirar de dignidade, de carácter, de génio, um corpo dobrado sobre uma guitarra. “Gosto demasiado da música para viver às custas dela.”, disse, um dia, com aquela desconcertante simplicidade que o acompanhava a todas as horas. Rui Vieira Nery chamou-lhe “um príncipe”. Dele disse José Saramago: “Não o pensava antes, quando escutava a guitarra de Carlos Paredes, mas hoje, recordando-a, compreendo que aquela música era feita de alvoradas, canto de pássaros anunciando o sol. Ainda tivemos de esperar uma década antes que outra madrugada viesse abrir-se para a liberdade, mas o inesquecível tema de Verdes Anos, esse cantar de extática alegria que ao mesmo tempo se entretece em harpejos de uma surda e irreprimível melancolia, tornou-se para nós numa espécie de oração laica, um toque a reunir de esperanças e vontades. Já seria muito, mas ainda não era tudo. O resto que ainda faltava conhecer era o homem de dedos geniais, o homem que nos mostrava como podia ser belo e robusto o som de uma guitarra, e que era, a par de músico e intérprete excepcional, um exemplo extraordinário de simplicidade e grandeza de carácter. A Carlos Paredes não era preciso pedir que nos franqueasse as portas do seu coração. Estavam sempre abertas.” “Canção Verdes Anos”, que Carlos Paredes escreveu para o filme de Paulo Rocha “Os Verdes Anos” (1963) tem poema de Pedro Tamem: Era o amor Que chegava e partia Estarmos os dois Era um calor, que arrefece Sem antes nem depois Era um segredo Sem ninguém para ouvir Eram enganos e era um medo A morte a rir Dos nossos verdes anos Foi o tempo que secou A flor que ainda não era Como o outono chegou No lugar da primavera No nosso sangue corria Um vento de sermos sós Nascia a noite e era dia E o dia acabava em nós