terça-feira, 31 de maio de 2022

DOS REBOTALHOS E COISAS ASSIM


Talvez a grande questão dos dias que vamos enfrentando, talvez se reduza a algo um tanto ou quanto tão simples como difícil ou impossível: A questão é onde se deve parar a guerra e começar a negociar. 

Há quem diga que os únicos que vêem o fim das guerras são aqueles que nessas guerras encontram a morte.

Henry Kissinger, ex-secretário de estado dos Estados Unidos, foi ao Fórum Económico Mundial de Davos apelar ao Ocidente para não infligir derrota pesada a Moscovo e pediu sensatez à Ucrânia e ceda território aos russos.

Eu pensava que Kissinger estava a comprimidos numa qualquer instalação de saúde norte-americano. Este tipo, em nome da democracia, cometeu os maiores crimes internacionais e nunca se poderá esquecer a queda de Salvador Allende e a entrega do poder chileno ao assassino Augusto Pinochet.

O Papa Francisco: «Estou muito longe de poder responder à questão sobre se é certo fornecer armamento aos ucranianos. O que está claro é que as armas estão a ser testadas naquela terra. Os russos sabem agora que os tanques são de pouca utilidade e estão a pensar noutras alternativas. As guerras são travadas para isso: para testar as armas que produzimos.»

A Finlândia e a Suécia entregaram as candidaturas de adesão à NATO.

O presidente Erdogan da Turquia disse que a entrada da Suécia e da Finlândia não acontecerá, pelo menos enquanto ele estiver à frente dos destinos do país.

SACANICES JORNALISTICAS


Quando há dias, quis completar a resposta a um comentário de Luís Eme sobre o indecente despedimento da Visão, da escritora e jornalista Ana Margarida de Carvalho, tive necessidade de consultar o livro «Memórias Vivas do Jornalismo» de Fernando Correia e Carla Baptista.

Fiquei depois a refrescar-me com a releitura de algumas páginas do livro, um vício gratificante que utilizo constantemente, e fui cair numa história contada pelo jornalista Roby Amorim, falecido em Dezembro de 2013, que refere a filha-da-putice  feita ao escritor Carlos Eurico da Costa, então jornalista do Diário Ilustrado.

O Diário Ilustrado era propriedade da Sociedade Abel Pereira da Fonseca, que vivia do lucrativo comércio, entre outros, de vinhos, azeites e bacalhau, um jornal  recheado de bons jornalistas e colaboradores, o mais possível contra a ditadura salazarenta, mas os proprietários sempre se borrifaram para o jornal. 

Só que um dia mostraram-se interessados num grande projecto que era fazer alumínio em Angola, isso necessitava da intervenção governamental e para isso era preciso estar bem com o governo e tiveram a necessidade de controlar o jornal começando por dar uma varridela nos jornalistas da casa, todos, ou quase, gente da oposição.

Um desses casos foi o despedimento de Carlos Eurico da Costa com um pretexto perfeitamente absurdo. Ele tinha tirado duas ou três linhas de chumbo (os jornais ainda se faziam a chumbo) porque era pescador, para fazer lá uns apetrechos para a pesca, duas ou três linhas de chumbo que custavam dez centavos ou qualquer coisa assim. Foi despedido por roubo. 

segunda-feira, 30 de maio de 2022

COM OS JACARANDÁS AO FUNDO


 Dêem-lhe nada para fazer e ele exulta.

Amanhã começo a estudar, era frase preferida quando andava no liceu e um qualquer amanhã para estudar, como tantos outros, nunca apareceu.

Não chegou a doutor, nem a engenheiro, nem a arquitecto, não chegou a nada.

E quando a vida o obrigou, pegou no que lhe apareceu à mão, e aí, ainda se lembrou dos conselhos do avô paterno que, no que quer que fosse, devia sempre fazer o seu melhor. Até a vender cascas de alhos, temos de dar o melhor.

O paleio vem a talhe de foice porque encontrou, nestes dias difíceis que vai atravessando, em ficheiros diversos, uma série de histórias que prometeu, por aqui, ir contando.

Ainda lá está, quase prontinho, o texto a falar das (não) razões porque nunca acabou o Ulisses do James Joyce.

Mas conclui, hoje, uma história que já vem do tempo da última Feira do Livro.

Desenterrando António Lobo Antunes.

Ainda a ideia triste que alguém teve – o autor? A editora – de abandonar a publicação, em livro, das crónicas que vai escrevendo, ainda a face mais legível do que escreve.

Um dia perguntaram-lhe:

- Porquê as crónicas?

- Não tinha dinheiro e era bem pago.

Tenho os livros que reúnem as crónicas do Lobo Antunes, mas ao olhar o pavilhão da Dom Quixote, ou da Leya, ou do raio que os parta, vi um cartaz que anunciava uma antologia de crónicas do autor. Como me perco por antologias porque uma antologia é sempre gratificante, como ter todos os discos do Leonard Cohen e nunca deixar de comprar os «besto of». 

Arranquei para comprar o livro mas, espanto dos espantos, leio que o prefácio é de Marcelo Rebelo de Sousa.

Não sei do que o Marcelo percebe, talvez de sebentas, mas livros não se me afigura. 

Mas como presidente dos afectos e das fotos beijoqueiras, do opinar sobre tudo e mais alguma coisa, prefaciar um livro de crónicas do Lobo Antunes parece-me um destempero a que não sei dar nome.

O livro ficou por lá.

Possivelmente vendeu, tal como eles gostam...

Melhor ficar por aqui?

Parece que sim!

sábado, 28 de maio de 2022

MARCADORES DE LIVROS


Colaboração de Aida Santos.
 

sexta-feira, 27 de maio de 2022

O AMOR NAS ESCADAS DO METRO

De quem é o braço?
E os cabelos sujos, roídos pela caspa
e falta de água?
E a perna que enlanguesce sob o tecido ruço
que não retém memória?

Meu deus, dirão os velhos ao descer com vagares
as escadas do metro, a mocidade agora
é sexo só e sujo a rolar pelo chão.

Mas quem deita o olhar com mais ternura
e calma
sobre o novelo dos dois
descobre no ar em volta a tessitura tensa
do desejo, um halo amarrotado pela fugaz curvatura
do sonho.

E na lama pérfida que se sobrepõe aos beijos
a parábola fiel às gerações
da terra.

Forçoso será então que caia a chuva,
e cubra a carne sôfrega
exposta à multidão.
Os solitários amaldiçoam toda a inocência
exibida em degraus, caída de bocas tão imundas,
tão perto do inferno
e do êxtase.

O amor pode ser também dalguns que passam
de olhos feridos,
o coração apertado de sangue
e breve compaixão.

Mas só os dois, ali, enleados na energia da alma,
são um palco da alegria do mundo,
gratuito,
à distância da morte e da sua serpente
circular.

São jovens, e estão a soletrar
tão mansos, o horror apreendido pelas bocas
que despontam,
como a planta se eleva do chão endurecido,
como o animal à luz no limiar do medo.

Os dois, ali, expectantes, transparentes, nus,
na natureza de sempre.

 

Armando da Silva Carvalho

quinta-feira, 26 de maio de 2022

VELHOS DISCOS


 Dois viajantes do Cais comentaram a morte de Vangelis.

Entendi que um texto serviria melhor do que um comentário circunstancial.

 Sou mais de livros e de filmes do que de músicas. Musicalmente não sou tipo de confiança. Todo o meu gosto musical é caótico, uma completa anarquia, não dá para entender. Se gosto, gosto, se não gosto, passo à frente.

Vai de Vivaldi ao Conjunto da Maria Albertina, passa por Tony Bennett, Pete Seeger, Gram Parsons, Neil Young, Agostinho dos Santos. Maysa Matarazzo.

Confusos?

Certamente que sim, mas a família diverte-se, os amigos nunca entenderam e, no fundo, apenas tento seguir os passos do velho Saint-Just quando dizia que a felicidade, seja lá o que isso for, é possível!

Eram de 78 RPM os primeiros discos de casa do meu pai, que rodavam num pick-up instalado num móvel com um rádio Blaupunkt que, para além do alti-falante central, tinha dois laterais.

O meu pai tentava fazer perceber ao meu avô que aquilo era a estereofonia, o meu avô era quase surdo e acenava com a cabeça.

Os bailes de aniversário, ou Carnaval, tinham, por exemplo, o Renato Carosone a cantar Torero ou a Picolissima Serenata, também Nat “King” Cole e Line Renaud, enfim, o que havia à mão, e não era muito.

Os tais bailes da vida como, noutro contexto, diria, o Milton Nascimento.

Vieram depois uns 33 RPM, (que eram um LPsmais curtos) Popular Favourites da Philips com selecção de canções do Frankie Laine, da Jo Stafford, dos Four Aces, a Rosemary Clooney, o Louis Armstrong a Orquestra de Roberto Inglês, por aí fora.

Depois chegaram os EP”. O meu pai tornou-se um fã do Paul Anka, do Pat Boone e o Volare cantado pelo Dean Martin

Os 78 rotações partiram-se. Guardava um da Hebe Camargo a cantar Índia, mas nunca mais o vi. Dos EPs e dos 33 rotações a maior parte perdeu-se ou foi desviada.

O passar a conhecer outras músicas, devo-o ao programa Em Órbita, com histórias e memórias registadas, por aqui, com a etiqueta do programa.

O primeiro “EP” comprei-o na “Discoteca Universal” (30.06.1966), You Were on My Mind do Crispian St. Peters, por causa do The Pied Piper que  ainda ouço com imenso prazer e que me traz sempre à memória, o Cândido Mota a dizer, no Em Órbita já com as primeiras espiras a correr: sigam-me que eu sou o tocador da flauta mágica.

Mais tarde levei uma enxurrada de grande música, de grandes músicas, fornecidas pelo meu amigo Luís Miguel Mira, um profundo, mas mesmo profundo conhecedor de música, principalmente Folk Music e Country Music e que, volta e meia, nos delicia com histórias que por aqui tem publicado e é sempre bom lembrar que tem um livro publicado Crónicas da América que, com um bocado de sorte, pode ser encontrado em alfarrabistas ou feiras de livro ocasionais.

 Mas sempre fui um disperso em músicas e em estilos.

Lembro-me dos tempos em que andei apanhado pelos sons e vozes da Motown, lembro-me quando andei a comprar discos do Vangelis porque, mercê de largos gin-tónicos no British –Bar, descobri que Vangelis levara a música electrónica a um outro nível.

E houve aquela pancadinha pelo trabalho que Vangelis fez com o Joe Anderson, o vocalista dos Yes

Dois discos ficaram por aí.

Peguei no Friends of Mr Cairo porque tem uma canção I’ll Find My Way Home.

Reproduzo a capa do disco que tem a curiosidade de no topo do lado direiro, num rectangulozinho branco, ter o preço: 350$00, que ao cambio da moeda de hoje seriam una 1,75 euros, mas naquele tempo, para o teso que sempre fui, era dinheiro.

Há uns bons tempos atrás, a minha filha Sara, hoje com 44 anos, perguntou-me se eu ainda tinha o LP. Acrescentou então que I’ll Find My Way Home, de tanto a ouvir cá por caso, ficara como uma das canções da vida. Respondi-lhe que nunca me apercebera,  mas entendi, porque é sempre bom saber o sítio onde se cai, e nunca esquecer o caminho de casa, também porque só estaremos sozinhos, se quisermos mesmo que isso aconteça.

O Alexandre O’ Neil , numa entrevista, deixou uma fabulosa ideia sobre a solidão:

«A solidão procurada é boa., a não procurada, às vezes é chata.

O estar sozinho não é a solidão. Às vezes está-se sozinho porque se quer e isso pode dar um bom monólogo, uma meditação. O facto de eu viver só é que, às vezes, é chato e vou até ao barbeiro da esquina só para falar com alguém.»

quarta-feira, 25 de maio de 2022

QUOTIDIANOS

Histórias, não apenas de outros tempos, que provocam sérios desconfortos.

Podendo ser pelas águas que correm pelos canais de rega, que, em temos de seca se estabelecem em cadernos de rol, as águas de rega a distribuir.

Podendo ser por um caminho por que passa num palmo de terreno que não é sua pertença.

Por vezes, os ofendidos, os magoados, matam os prevaricadores, aplicando-lhes uma sacholada na cabeça, ou um disparo de carabina.

NOTÍCIAS DO CIRCO

Ana Leonardo Coimbra chega diariamente ao Café do Monte, medita, e fala com o parceiro da mesa ao lado dizendo que a frase de Sholom Aleichem  todos os dias tem de ser corrigida: «Os ricos continuam ricos e os pobres estão a morrer de fome, como sempre.»

 Porque os bilionários estão agora em Davos para gritarem hossanas nas alturas face aos incríveis aumentos das suas fortunas. A pandemia, o aumento dos preços dos alimentos, da energia, a guerra na Ucrânia, determinam que a pobreza vai cair, ainda mais, em patamares mais extremos, e determinará a impossibilidade de sobrevivência de muita gente.

 Francisco Louça, no Expresso diz-nos que um orçamento faz-se com rum, papas e bolos:

«A encenação à volta da lei, que pouco entusiasma os alinhamentos noticiosos, devorados pela tragédia ucraniana e pelos foguetórios do futebol, nem chega por isso a ensaiar algum artifício. Confirma-se que o governo tem nos liberais um aliado para reduzir o salário real da função pública, afinal Rui Rio sempre tinha razão ao colocá-los à sua direita, nada de novo. Confirma-se que o Chega vive de fogo fátuo, nada de novo. Verifica-se que o PSD-Madeira trata da clientela e, para tanto, consegue reduzir um imposto sobre o rum exportado e reabrir as inscrições de empresas na Zona Franca, uma galinha de ovos de ouro. O governo, que há um ano e galhardamente se recusa a cumprir a determinação da Comissão Europeia de fazer restituir mil milhões de euros de subsídios indevidamente pagos a 300 empresas, oferece mais este bónus aos maratonistas do planeamento fiscal, mesmo condescendendo que aqueles deputados regionais acabarão por votar contra o Orçamento, uma vez concluída a exibição da sua musculada negociação. A boa vontade conta, também nada de novo.»

A PROVA DO HUMANO

Quem terá notado o gesto subtil do velho quando,
ao enrolar o tabaco, limpou o indicador cheio de cuspo
no tampo da mesa? Ali, há exactamente dois dias,
sentara-me eu a escrever reflexões religiosas e um canto
filosófico; depois, cansado do trabalho mental,
desenhei a lápis duas ou três figuras na madeira gasta.
Agora, os restos de café e a saliva dos velhos transformam
esses desenhos banais em peças
de uma autêntica mitologia.
O fumo do tabaco envolve-os como se fosse uma névoa antiga,
e as palavras trocadas, a meia voz,
pelos ocasionais frequentadores daquele canto
lembram-me esconjuros, maldições, ou apenas
a invocação de algum espírito transitório.
Assim, não posso passar sem ir, uma ou duas vezes por dia,
àquele sítio: observar um vulto que, inconscientemente,
iniciei; e também ouvi o velho Baco
cujas histórias me dão sede e sono.
Mas que fazer nesta cidade de província,
no inverno, à parte ouvir os velhos
ou inventar histórias, enquanto se bebe café
e aguardente?

Nuno Júdice em Poesia Reunida

terça-feira, 24 de maio de 2022

POSTAIS SEM SELO


O amigo ideal é aquele que fosse capaz de me compreender sem eu ter de dizer palavras.

Augusto Abelaira

Legenda: pintura de Vanessa Bell

ERNEST TUBB RECORD SHOP




 

“Now the Opry’s gone and the streets are bare

Ernest Tubb’s Record Shop is dark

(John Hartford)

 

A propósito da “Country Music” e do “Grand Ole Opry”, já vos contei que, algures nos finais dos anos 60, a nossa televisão passou uma série de programas musicais antigos que só muito mais tarde me vim a aperceber que eram alguns dos episódios do “Opry” que foram gravados pela televisão americana e, mais tarde, vendidos para o estrangeiro.

Também vos confessei que esses programas, de tão foleiros que na altura me pareciam ser, não fizeram muito pelo meu gosto pela “Country Music”, bem pelo contrário…

Mas lembro-me perfeitamente que, em quase todos eles, aparecia um tipo muito alto e muito magro, sempre vestido de claro e com um grande chapéu à cowboy na cabeça, que andava sempre aos saltos, sempre em movimento, sempre a dizer graçolas que me pareciam não ter graça nenhuma, assim tipo um João Baião american style.  E, de vez em quando, cantava qualquer coisinha, que raramente me encantava.

Vim a perceber, também muito mais tarde, que se tratava de Ernest Tubb, uma das figuras lendárias do “Grand Ole Opry” e de Nashville.

Ernest Tubb nasceu em Crisp, no Texas, em 1914, e por isso em Nashville lhe puseram a alcunha de “Texas Troubadour”, nome que veio a dar mais, tarde, à sua própria banda de apoio.

Fortemente influenciado por Jimmie Rogers, de quem já aqui vos falei, Tubb iniciou a sua carreira musical em 1936 e andou por diversas rádios e diversos palcos de diferentes cidades do Texas, até que, em 1941, obteve um enorme sucesso com “Walking the Floor Over You”, uma canção precursora do chamado estilo “honky-tonk” que lhe abriria as portas de Nashville e do “Grand Ole Opry”, onde entrou em 1943 para nunca mais de lá sair. Era uma das figuras mais carismáticas da cena da Música Country”, e veio a falecer em 1984, na sequência de um enfizema pulmonar contraído dois anos antes.

Mas vamos ficar por aqui, porque o meu objetivo de hoje não será acompanhar, com detalhe, a carreira de Ernest Tubb, mas apenas falar-vos da sua célebre “record shop” e de outros factos importantes na História da “Country Music”, que com ela estão relacionados.

Ernest Tubb foi visionário e em 1947, alguns anos depois de chegar a Nashville, abriu uma loja de discos que teve a particularidade de ter sido a primeira a nível nacional a dedicar-se, exclusivamente, à ”Country Music”, quando esta estava a levantar voo mas ainda não era o fenómeno de massas que viria a ser uns anos depois.

 


Essa loja situou-se, inicialmente, na 720 Commerce Street, uma rua paralela à Broadway, mas em 1951 foi transferida para o local onde ainda hoje se encontra, no 417 Broadway Street.

 


E se a abertura dessa loja já foi, por si só, muito importante para a “Country Music”, outro acontecimento houve que se tornou tão ou mais importante para a sua História. É que, aproveitando o sucesso do “Grand Ole Opry”, Ernest Tubb imaginou e passou a emitir a partir da sua loja um novo programa musical dedicado à “Country”, com a particularidade de ser emitido também aos sábados à noite, logo após o final da emissão do “Opry”. E ainda com uma outra característica… É que muitos dos artistas que nessa noite atuavam no “Opry”, sobretudo os mais novos e menos conhecidos, atravessavam a rua a correr e iam para a “Record Shop” do Ernest Tubb, onde eram acolhidos com carinho, benevolência e com direito a maior tempo de antena. Se na “Opry” se limitavam a cantar uma ou, no limite, duas músicas, aqui era-lhes concedido bastante mais tempo.

Esse programa chamou-se “Midnite Jamboree” e durou quase até hoje (já vão perceber o porquê do “quase”…), sendo apenas superado pelo “Opry” como o programa de rádio mais antigo dedicado ao seu género musical  nos Estados Unidos. Entre 1947 e 1976 foi emitido diretamente das próprias instalações da ”Record Shop”, mas a partir daí transferiu-se para mais perto das novas instalações do “Grand Ole Opry”, mas sempre com entradas gratuitas. Compreende-se porquê: se os artistas saiam de um a correr para entrarem no outro, eles teriam de se encontrar a uma curta distância um do outro.



Já neste século, o “Jamboree” começou a ter algumas dificuldades financeiras e as emissões foram suspensas durante algum tempo, tendo sido retomadas em Julho de 2021, de novo a partir das instalações da “Record Shop”, como nos bons velhos tempos.  

 


“Midnite Jamboree” tinha uma particularidade: a abertura de cada programa era sempre feita com “Walking the Floor Over You”, talvez o maior sucesso de Ernest Tubb, seguida de uma qualquer canção de Jimmie Rogers, que foi a sua grande fonte de inspiração, como no início vos referi.


Uma outra marca deste programa era, como também já vos disse, as oportunidades que proporcionava aos novos talentos. Parece que Ernest Tubb era conhecido por ser um homem muito generoso, nada invejoso do sucesso dos outros e sempre disponível para ajudar alguém que dele se aproximasse e cujo talento ele reconhecesse. Essa ajuda podia passar por “meter uma cunha” aos responsáveis do “Grand Ole Opry” para os receberem no programa, permitir que atuassem no “Jamboree”, convidá-los para que o acompanhassem nas suas muito frequentes “tournées” pelos Estados Unidos, ou até integrá-los na sua própria banda de apoio, quando surgia uma boa oportunidade. Muitas das futuras grandes vedetas de Nashville lhe ficaram eternamente gratas pelo apoio que Ernest Tubb lhes deu, e daí o imenso carinho que nunca deixaram de lhe devotar. 

Carismático, ou não, nunca consegui mudar radicalmente as minhas primeiras opiniões de adolescente acerca da música de Ernest Tubb.  Ainda hoje o oiço de vez em quando, à espera que qualquer coisa se passe, mas, como diriam os espanhóis, não passa nada… Para falarmos da mesma época e do mesmo estilo, prefiro-lhe, de longe, Roy Acuff.

Mas nem por isso deixei de ir visitar a sua “Record Shop”, um dos derradeiros ícones da velha Nashville.


A vasta sequência de fotografias que aqui vos mostro ilustra bem por que motivo vos disse anteriormente que John Hartford se tinha enganado e que, nos dias de hoje, ela estava tudo menos “dark”. 

Penso que estas fotografias ilustram bem o que é o interior da “Record Shop”, mas dar-vos-ei apenas um esclarecimento no que respeita àquela pequena zona que se vê no fundo da loja, dedicada a Loretta Lynn, que ainda é viva e acabou de fazer 90 anos.

 


Porquê a Loretta Lynn, perguntar-me-ão vocês…

Porque era precisamente naquela zona do fundo da loja que atuavam os convidados do “Midnite Jamboree” e por Loretta Lynn ter sido, talvez, a mais célebre das figuras da “Country” que por lá passou, tendo ficado eternamente grata a Ernest Tubb por essa oportunidade.

 

E talvez que o facto de Loretta e Tubb terem cantado em dueto também tenha contribuído para estreitar, ainda mais, a amizade entre ambos. 

A partir de meados dos anos 60 estiveram em moda em Nashville os duetos mistos, compostos por um cantor e uma cantora em que pelo menos um deles já beneficiava de uma certa notoriedade (quase sempre o homem…). Houve muitos, mas talvez os exemplos mais conhecidos tenham sido Johnny Cash e June Carter, George Jones e Tammy Wynette, ou Porter Wagoner e uma muito jovem Dolly Parton.

 

Por esta altura, Ernest Tubb aceitou ser parceiro de Loretta Lynn e gravaram juntos três álbuns entre 1964 e 1969, o que também iria contribuir, em muito, para a projeção da autora de “Coal Miner’s Daughter”.

 No biopic de 1980 que Michael Apted dedicou a Loretta Lynn, que se chama, precisamente, “Coal Miner’s Daughter” e tem Sissi Spackek no papel de Loretta, Ernest Tubb é uma das poucas celebridades de Nashville que nele aparecem in person, sendo que Roy Acuff e Minnie Pearl também lá estão, mas apenas por breves segundos e como figurantes no palco do “Ryman”.

Este filme tem, aliás, uma outra curiosidade que até se relaciona com o teor deste texto. É que nele vemos Ernest Tubb receber com grande simpatia uma muito jovem Loretta Lynn no “Opry” e depois vemo-la já no inte


rior da “Record Shop” em pleno “Midnite Jamboree” e a fazer a célebre dedicatória de “I Fall to Pieces” a Patsy Cline, então internada no hospital devido a um grave acidente de automóvel, que havia de as tornar amigas e companheiras de trabalho inseparáveis, até Patsy Cline desaparecer num trágico acidente de aviação em Março de 1963.  O recente (2019) e simpático telefilme “Patsy & Loretta”, de Callie Khouri, que por cá tem passado num dos canais cabo, retrata com maior detalhe esta relação. O horroroso “Sweet Dreams” (1985), que Karel Reisz dedicou aos últimos anos da vida de Patsy Cline , com Jessica Lange no papel de Patsy, passa ao lado de tudo isto…

Desculpem-me este longo parêntesis, mas estas coisas da música e do cinema são como as cerejas…    



E a nossa conversa de hoje teria ficado por aqui, não fora eu ter sentido necessidade de ir à net procurar uma informação que não encontrei em nenhum dos livros da biblioteca cá de casa.

 


A informação de que necessitava era muito simples: em que ano se mudou a “Record Shop” da Commerce Street para a Broadway.

Encontrei-a muito facilmente.

Mas, infelizmente, encontrei também outra, bastante mais inesperada e indesejável.

A “Ernest Tubb  Record Shop”, que eu tinha visto tão cheia de luz poucos anos antes, encerrou as suas portas no passado dia 11 de Março e o “Midnite Jamboree” deixou de ser emitido mais ou menos na mesma altura. Estava apenas prevista uma emissão especial no dia 3 de Maio, para comemorar os 75 anos do programa.

 

Parece que conflitos entre os atuais acionistas da loja e entre estes e o proprietário do edifício onde ela estava instalada conduziram a este desenlace.

Mas onde é que eu já vi este filme…?

Infelizmente, no que respeita às chamadas “lojas históricas”, o panorama parece ser idêntico em todo o lado, e sempre com a mesma justificação: o fraco peso da História, por um lado e, por outro, o fortíssimo direito inalienável dos proprietários dos edifícios a fazerem o que lhes der na real gana. Mas a verdade é que nunca esperei que, na América, uma loja com o peso histórico que esta tinha pudesse vir a sofrer este destino. Sei que uma associação que se chama “Saving Country Music” está disposta a lutar com todas as suas forças contra o encerramento da loja e o fim do programa radiofónico, mas duvido que consigam ter algum sucesso…

 


Os YouTubes, as Spotify, as Tidal, as Netflix, os Mubis e tantas outras fizeram com que objetos tais como os CD’s e os DVD’s se tenham deixado de vender…

Aqui na minha cidade, na Seção de Cultura e Lazer do “El Corte Inglês” deixei de encontrar livros, filmes e discos. Encontro aparelhagens e jogos de computador… E programas de viagens. Muitas e diversificadas “viagens de sonho”, às mais paradisíacas praias deste planeta… 

Na FNAC, a zona de DVD’s e de CD’s tem vindo a ser reduzida, quase de dia para dia…   

É triste que, ao fim de 50 anos, a profecia de John Hartford se tenha tornado, finalmente, realidade e que a “Ernest Tubb Record Shop” tenha sido obrigada a apagar as suas luzes e a fechar as suas portas. E, com ela, a “Midnite Jamboree”.

 

A partir de agora, ambas passarão a ser memória, como quase tudo na velha Nashville da “Country Music” me parece ser, nos dias de hoje, apenas memória…

De quem viveu e de quem, como eu, apenas ouviu contar…

Recomendação de leituras:

Duvido, sinceramente, que este tema possa interessar, verdadeiramente, algum dos meus simpáticos leitores, mas, se for esse o caso, recomendo a leitura do artigo “Loretta Lynn at 90, and the Ernest Tubb Record Shop”, que foi publicado no ano passado pelo site “Saving Country Music” e pode ser encontrado na net.


Texto e fotografias de Luís Miguel Mira

QUOTIDIANOS


Manuel António Pina é um Poeta Extraordinário.

Este título de livro é espantoso: «Um Sítio onde Pousar a Cabeça».

Chegados a uma qualquer altura, não sabemos como nem onde, pensar que seria bom ter um sítio onde pousar a cabeça.

Acabo por ter o livro na sua Poesia Reunida, mas ter mesmo o livro é uma outra história.

Foram sempre esses os meus desígnios: não apenas ler o livro, tê-lo!

Frequentei bibliotecas, principalmente a de Galveias no Campo Pequeno, apenas para consultas, nunca para ler livros.

Por motivos de carências várias, esses foram os propósitos de José Saramago.

E acabaram por dar os frutos que se conhecem.

Também não sei das razões que voltei ao título, aos poemas deste livro do Pina.

Já de há muito sei que não devo começar o dia a ouvir qualquer ópera do Henry Purcell.


Legenda: Henry Purcell

segunda-feira, 23 de maio de 2022

MARCADORES DE LIVROS


 Colaboração de Aida Santos.

domingo, 22 de maio de 2022

E NÃO CAMINHOS POR ANDAR COMO DANTES


 Poderão dizer que é uma questão de sorte. Não tenho qualquer problema em admitir que sim. Mas depois há sempre mais qualquer coisa e a sorte transforma-se em outras coisas: conhecer, ter vontade de saber mais qualquer coisinha para chegar à grande luz, à enorme revelação.

Num jornal, que poderei admitir que tenha sido no JL, li o poema Esplanada de Manuel António Pina.

Não conhecia o autor e aquele foi o primeiro poema que li.

E gostei de uma maneira a que não posso chamar outra coisa senão deslumbra- mento.

De uma forma simples, tão simples que até arrepia, estava ali, o relógio dum tempo, seja esse tempo o que for, de quem for. Ali esparramava-se o que foi o passado de uma geração, depois o surgir de uma ilusão, talvez diversas ilusões.

Por onde é que eu andara que este tipo passou completamente ao meu lado?

O Pina nasceu em 1943, eu nasci dois anos depois.

Se há poemas perfeitos este é um deles.

Doze linhas de versos encaixados num olhar da esplanada seja ela qual for:

Naquele tempo falavas muito de perfeição,
da prosa dos versos irregulares
onde cantam os sentimentos irregulares.
Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,

agora lês saramagos & coisas assim
e eu já não fico a ouvir-te como antigamente
olhando as tuas pernas que subiam lentamente
até um sítio escuro dentro de mim.

O café agora é um banco, tu professora de liceu;
Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.
Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,
e não caminhos por andar como dantes.

Quando então li o poema, que faz parte do livro Um Sítio Onde Pousar a Cabeça, editado em 1991, tenho a vaga ideia de ter lido o poema durante o ano de 2009, ficaram estas palavras chaves faróis de um tempo, que assim, ou de outro modo, uma geração viveu.

 envelhecemos todos, agora lês saramagos e coisas assim, já não fico a ouvir-te como antigamente olhando as tuas pernas que subiam lentamente até um sítio escuro dentro de mim, o café é um banco, Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu, agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes, e não caminhos por andar como dantes.

 Andei em demanda do livro, que é o seu sexto volume de poesia, mas nunca o encontrei. Tratou-se de uma pequena edição de um pequeno livro, em edição do autor e fora do mercado. Fui ficando com o recorte colado numa folha A4 e só em Outubro de 2001, quando o Pina publicou Poesia Reunida a que passei a ficar com o poema fazendo parte de um livro.

 Mais ou menos por este tempo, recordo-me de ter lido uma frase do Manuel António Pina que nunca esqueci: «adultos que não souberam honrar os jovens que foram».

A frase do Pina era endereçado aos que em tempos defenderam ideias e ideais que depois mandaram para as urtigas.

DITOS & REDITOS


 O homem é o único animal que tropeça duas vezes na mesma pedra.

Cão que não ladra perde a função.

Quando tememos perder uma coisa é como se já a tivéssemos perdido.

O que tu sabes já me esqueceu há muito.

Ai também se eu me apanhasse na idade.

Um dia arrependo-me de acreditar nas pessoas.

Cuidados e cuidados para que um dia possam morrer cheios de saúde.

A terra do nunca é onde nunca se chega.

sexta-feira, 20 de maio de 2022

VELHOS DISCOS


MERCURY - 6333 002


Lado 1

Spring, Summer, Winter & Fall – Such a Funny Night – I Want To Live – You Always Stand In My Way – Rain And Tears

Lado 2
Let Me Love, Let Me Live – Don’t Cry To Catch A River – It’s Five O’ Clock – Wake Up – End Of The World

É um velho vinil cá da casa.

Os Aphrodite's Child, como grupo, acabaram em 1972.

No lugar sereno das memórias deixaram encantamentos vários, alguns estão neste Best.

O fim dos “Aphrodite's Child” originou dois ressurgimentos: o sr. Evángelos Odysséas Papathanassíu, passou a ser conhecido simplesmente como Vangelis e fazedor de bandas sonoras, algumas conseguidas, outras, enfim… enquanto que o sr. Artemios Ventouris Roussos apresentou-se ao mundo como Demis Roussos, o homem que pedia para o deixarem dançar, gostava que o vento fosse seu amigo e que se tornou uma cópia do Tony Carreira, ou vice-versa.

VANGELIS (1943-2022)

Morreu Vangelis.

Dentro da música, sempre foi um personagem complexo, longe de reunir consensos.

Gosto de algumas coisas do músico grego e não poderei esquecer, impossível, as bandas sonoras de Blade Runner e Chariots Of Fire.


DOS REBOTALHOS E COISAS ASSIM...


O secretário-geral da ONU, António Guterres, apelou à acção do Conselho de Segurança na questão da segurança alimentar, alertando que a fome aguda afectava, no ano passado, cerca de 140 milhões de pessoas em apenas 10 países, Afeganistão, República Democrática do Congo, Etiópia, Haiti, Nigéria, Paquistão, Sudão do Sul, Sudão, Síria e Iémen, ao mesmo tempo afirmou que cerca de 67% das pessoas subnutridas do mundo vivem em áreas afetadas por conflitos.

A eterna pergunta:

Mas para que serve a ONU?

Quase se pode concluir que toda aquele gente, chorudos ordenados e regalias várias, apenas assiste, sentada em secretárias a guerras e à fome no mundo.

Tempo para lembrar Bertolt Brecht:

O HORROR DE SER POBRE

 Risco c’ um traço

(um traço fino, sem azedume)

todos os que conheço, eu mesmo incluído.

Para todos estes não me verão

nunca mais

olhar com azedume.

 

O horror de ser pobre!

Muitos gabavam-se que aguentariam, mas era ver-lhes

as caras alguns anos depois!

Cheiros de latrina e papéis de parede podres

atiravam abaixo homens de peitaça larga como toiros.

As couves aguadas

destroem planos que fazem forte um povo.

Sem água de banho, solidão e tabaco

Nada há que exigir.

O desprezo do público

arruína o espinhaço.

 

O pobre

nunca está sozinho. Estão todos sempre

a espreitar-lhe para o quarto. Abrem-lhe buracos

no prato da comida. Não sabe pra onde há-de ir.

O céu é o seu tecto, e chove-lhe lá para dentro.

A Terra enxota-o. O vento

não o conhece. A noite faz dele um aleijado. O dia

deixa-o nu. Nada é o dinheiro que se tem. Não salva ninguém.

Mas nada ajuda

Quem dinheiro não tem.

 

Em Poemas e Canções, selecção e versão portuguesa de Paulo Quintela

FALÁMOS TANTOS ANOS DE TÃO POUCO

Falámos tantos anos de tão pouco
entre os campos
do corpo
a fala fende os dentes
o corpo que te ouve ampara
a tua fala

É o último dia mas que dia
poderia deter assim a boca
dizíamos ainda que viríamos
ouvir-nos um ao outro
a fala dolorosa encontra os dentes
e olho a tua boca como um corpo


Gastão Cruz

quinta-feira, 19 de maio de 2022

VELHOS RECORTES


 A escritora Ana Margarida de Carvalho, em Dezembro de 2016, ao fim de 24 anos, foi despedida, da revista Visão e deixou esse despedimento retratado num depoimento que espelha no que se tornou o jornalismo português. «Sem uma única palavra de explicação», a jornalista considerou-se «destratada e desconsiderada e humilhada», para além de ser «coagida a assinar um contrato de rescisão, tudo menos amigável».

Ana Margarida de Carvalho assinou reportagens que lhe valeram sete dos mais prestigiados prémios do jornalismo português, entre os quais o Prémio Gazeta Revelação do Clube de Jornalistas de Lisboa, do Clube de Jornalistas do Porto ou da Casa da Imprensa. Publicou artigos na revista Ler, no Jornal de Letras, na Marie Claie e ocupava o cargo de Grande Repórter na Visão. Também passou pela redacção da SIC. Foi vencedora do Grande Prémio de Romance e Novela APE com o seu romance de estreia, «Que Importa a Fúria do Mar» e «Não se Pode Morar nos Olhos de Um Gato».

«Havia um autor famoso que dizia “fala sobre o que quiseres, mas não escrevas sobre a vidinha”. Pois venho desobedecer-lhe, é justamente da vidinha que eu venho aqui tratar. Da minha. E quero, antes de tudo, agradecer a tantos e tantos amigos e colegas (alguns distantes) que se interessaram e quiseram saber e me telefonaram e mandaram mensagens. Nem imaginam como foi importante para mim. Não vou esquecer. Os que não me falaram, não se preocupem, eu já esqueci.
1º- Não deve haver nada mais inglório do que acabar uma carreira de 24 de jornalismo num gabinete de um director de recursos humanos.
2º- Não deve haver nada mais inglório do que ter de enfrentar sozinha um destes seres anónimos e transitórios, sem uma única palavra de explicação, de apoio e de solidariedade de quem devia e podia.
3º- Não deve haver nada mais inglório do que ser destratada e desconsiderada e humilhada e coagida a assinar um contrato de rescisão, tudo menos amigável.
4º- Este meu despedimento não foi a pior coisa que me aconteceu naquela redacção. Foi apenas a última.
5º- Não guardo qualquer ressentimento em relação a esta direcção. É tão má como qualquer outra anterior (sem contar obviamente com a do Carlos Cáceres Monteiro, o único director, grande-repórter, líder que conheci). Estes apenas fazem o que lhes mandam- e mal. São outros seres anónimos e transitórios. E estão assustados (no sentido brechtiano do termo)
6º- Cometi um erro: foi levar o jornalismo demasiado a sério, quando ele não queria ser levado a sério.
7º- Não, cometi, dois erros: o de a certa altura da minha vida ter colocado o jornalismo à frente de tudo. Da literatura, sim (comecei a escrever muito tarde), dos meus próprios filhos, quando eram pequenos - e isto dói.
8º- Terceiro erro (há sempre um terceiro): estava sempre tão atolada em trabalho, tão concentrada nas reportagens, nas entrevistas, numa correria, cheia de entusiasmos - o que não faz mal nenhum porque era muito nova, tinha muita energia, mas tinha muita ingenuidade também. Resultado: nunca dei conta, a tempo, de como a incompetência e falta de talento estão associadas, por sua vez, a um talento desmesurado para a intriga e para o 'mau coleguismo'. Palavra que não fazia ideia de que a inveja podia ser uma força tão mobilizadora.
9º- No jornalismo conheci as piores pessoas, as mais cobardes, as mais desleais, as mais mesquinhas, as mais medíocres, as mais desinteressantes, as mais incompetentes, as mais desonestas, algumas nem sabia que podiam existir (achava que era só nos livros, enfim)... Mas depois conheci pessoas maravilhosas que se tornaram amigas de infância. E isso vale tudo e apaga o resto.
10º- Por causa do jornalismo contactei de perto com personalidades admiráveis, fui a sítios onde jamais iria, conheci mundos outros. Nunca cometi nenhum erro grosseiro, nunca falhei um prazo, nunca me atrasei na entrega de algum trabalho... Devo-lhe muito, mas não farei as pazes com o jornalismo tão cedo. Talvez um dia. Porque o trabalho é um direito, não apenas um dever, a minha vontade é, juro, ir-me embora, sair do país, ir fazer voluntariado para um sítio longínquo e perigoso, onde não me considerem «dispensável». . Bom... depois do Natal logo vejo...
Obrigada a todos os que chegaram até aqui.

 

Ana Margarida de Carvalho

MARCADORES DE LIVROS


 Colaboração de Aida Santos

CIDADE BRANCA

 

Cidade branca
semeada
de pedras

Cidade azul
semeada
de céu

Cidade negra
como um beco

Cidade desabitada
como um armazém

Cidade lilás
semeada
de jacarandás
Cidade dourada

semeada
de igrejas

Cidade prateada
semeada
de Tejo

Cidade que se degrada
cidade que acaba


Adília Lopes

quarta-feira, 18 de maio de 2022

OLHARES

A latada de uva morangueira que o Marcolino tinha na casa de Almoçageme, aquele perfume, um banco quase de jardim, o meu pai a olhar o silêncio, a ouvir a ronca do Farol do Cabo da Roca.

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS

Dito já que começaram as iniciativas que visam registar o centenário do nascimento de José Saramago, acrescenta-se que irei pegando num qualquer livro de José Saramago e copiarei dele uma frase, um parágrafo, aquilo que constituem os milhares de sublinhados que, ao longo dos muitos anos de leituras, invadiram os livros de José Saramago que habitam a  Biblioteca da Casa.

Não são abundantes as citações musicais na obra de José Saramago.

Paulo Neves da Silva, que lhe fez um volume de citações e pensamentos, não tem nenhuma entrada para Música.

Claro que Saramago, pessoa do seu tempo, homem de cultura, ia ao cinema, ouvia música. Neste caso fala-nos das idas aos concertos dos Coro dos Amadores de Música do amigo e camarada Fernando Lopes Graça.

Tenho a ideia que a primeira referência que li, feita por Saramago a um compositor, terá sido Monteverdi, provavelmente em Manual de Pintura e Caligrafia mas não a consegui encontrar.

 Pode ser que seja num outro livro.

Mas diversas citações encontramos no Memorial do Convento e em As Intermitências da Morte.

Iremos em busca desses sublinhados.

Contudo,  poderemos ir dizendo que a música que José Saramago bem sabe e conhece, é a música das palavras que foi utilizando nos seus livros.

Atentemos no que nos diz no 2º volume de Os Cadernos de Lanzarote, onde, na página 49, podemos ler:

«Regresso a um tema recorrente. Todas as características da minha técnica narrativa actual (eu preferiria dizer: do meu estilo) provêm de um princípio básico segundo o qual todo o dito de destina a ser ouvido. Quero com isso significar que é como narrador oral que me vejo quando escrevo e que as palavras são por mim escritas tanto para serem lidas como para serem ouvidas. Ora, o narrador oral não usa  pontuação, fala como se estivesse a compor uma música e usa os mesmo elementos que o músico: sons e pausas, altos e baixos, uns, breves ou longas, outras. Certas tendências, que reconheço e confirmo (estrutura barroca, oratória circular, simetria de elementos), suponho que me vêm de uma certa ideia de um discurso oral tomado como música. Pergunto-me mesmo se não haverá mais do que uma simples coincidência entre o caráter inorganizado e fragmentário do discurso falado de hoje e as expressões “mínimas” de certas músicas contemporâneas.»

Adiantamos que na próxima Festa do Avante, a realizar no primeiro fim-de-semana de Setembro, se assinala a celebração do centenário do nosso único Nobel através de um concerto sinfónico, Música na Palavra de Saramago, no dia 2 de Setembro, em que se ouvirão obras de Scarlatti, Beethoven, J. S. Bach, Elgar, Mozart e António Pinho Vargas.

Em palco estará a Orquestra Sinfonietta de Lisboa, dirigida pelo maestro Vasco Pearce de Azevedo, com os solistas Mafalda Nejmeddine (cravo), Marco Pereira (violoncelo), Alexandra Bernardo (soprano) e Armando Possante (barítono).

A obra de Saramago inspirou vários compositores, tanto na música popular como na chamada música erudita. Por exemplo, neste concerto sinfónico, a peça «Memorial», que encerra o programa, foi criada por António Pinho Vargas, cuja composição é dedicada aos romances Ensaio Sobre a CegueiraAs Intermitências da Morte e Ensaio Sobre a Lucidez.