Perguntem a Sarah Gross
João Pinto Coelho
Capa: Rui Garrido
Colecção Mil Folhas
nº 12
Publicações Dom
Quixote, Lisboa, Abril de 2022
Gosto de ouvir a chuva quando escrevo. Talvez por isso, tenha escolhido
este dia para me sentar pela última vez diante do caderno. O fim da tarde está
pardacento e frio, e o meu quarto mudou pouco nestes quase oitenta anos. De
novidade, talvez só a escrivaninha que trouxe do escritório do meu pai. O aroma
da sua madeira é o cheiro dele e a memória mais vívida que me resta. Além
disso, a casa vazia, mais os detalhes que lembram os anos felizes e os que se
seguiram. Apesar de ter o quarto aquecido e as pernas cobertas por uma manta, o
frio não me larga. Dizem que nos velhos isso acontece muitas vezes, pois é um
frio que vem de dentro. Assim, o único remédio é esquecer-me dele. Na verdade,
passo muito do meu tempo a tentar esquecer-me. Esquecer-me do presente, e do
futuro também. Outro sinal de velhice, eu sei. Valha-me aquilo que vi e ouvi
quando me queria lembrar de tudo. Nunca soube se a minha vida dava um livro,
mas agora, que o escrevi, não me arrependo por, a páginas tantas, levada por
parágrafos imprevistos, ter revisto os recursos expressivos, como quem troca o
pijama pela roupa de sair. Contemplo as primeiras linhas, capítulos arrastados
e sem notas nas margens; o que vale uma hipérbole quando o verbo é de encher?
Mas tudo muda com uma frase que dói, um ferrete gravado a sangue-frio que
distorce a caligrafia com que se escreve o que vem a seguir.
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