sábado, 14 de maio de 2022

AS PALAVRAS GOSTAVAM MESMO DO PINA


Talvez tenha inventado que necessitava de um tipo de livros que me aliviassem as notícias sobre os dias de guerra que vai ocorrendo no leste da Europa, e que ninguém consegue ver como e quando terá um fim.

Escolhi o Para Quê Tudo Isto, biografia de Álvaro Magalhães sobre o Manuel António Pina, os Sublinhados Saramaguianos, os Itinerários do Eduardo, o Sr. Woody Allen também anda por aí com a sua Biografia, mas não é bem a mesma coisa.

O relacionamento, a intimidade que o Manuel António Pina tem com as palavras é um espectáculo admirável.

A páginas 30 podemos ler:

«Quando era jovem gostava da palavra “todavia”. Parecia-me haver nela algo alado, simultaneamente som e sentido, que dava alturas poéticas à prosa mais banal e rasteira.» Sim, o seu afecto pela palavra «todavia» ou pela palavra «fidelidade», que, um dia, encontrou intacta num livro de Jorge de Sena, seria para sempre, tal como o afecto pelos advérbios de modo (gostava de advérbios em geral). E até os adjectivos acabariam por o cativar. «Há sempre palavras de que gostamos mais. Recentemente comecei a descobrir o mistério dos adjectivos, de que sempre desconfiei. Pareciam-me dispensáveis, mas comecei a descobrir que podem perturbar os sentidos dos substantivos e causar surpresas.

As palavras, todas as palavras, adoravam-no – e voavam, deslumbradas, para ele. Embora houvesse uma ou outra que se fizesse mais esquiva, até essas acabavam por aparecer, um dia, pedindo licença para entrar num poema. Como aconteceu com a palavra «pétala», em 1981: «Coração, sombra de uma sombra,/ na pétala mais funda da noite.» Disse ele: «Fiquei assutado. Percebi que era um risco enorme, que nunca tinha ido mais longe. Nunca antes poderia ter escrito a palavra “pétala”, pelo menos a sério.» Também fez uma festa, para usar uma expressão dele, quando conseguiu meter num poema a palavra «iogurte», que estava demasiado conotada com a linguagem corrente, com o comércio quotidiano das palavras. E anunciou o feito aos amigos mais próximos, com uma euforia contida.»

3 comentários:

Seve disse...

Acabei de ler este magnífico livro de um homem que se todos fossem como ele viveríamos num mundo melhor.

pág.348 - A delicadeza e a cordialidade em relação aos outros são, para mim, valores importantes. É ser capaz de aceitar os outros. Apertar a mão é uma metáfora de coisas mais vastas: de simpatia, de afecto. Se me estendem a mão, estendo sempre a minha mão. Não gosto de humilhar ninguém. Já tenho dito que apertei a mão a muitos canalhas e continuarei a apertar. Aqui diferia de Borges, que dizia: compreendo o beijo ao leproso, mas não aceito o aperto de mão ao canalha.

Sammy, o paquete disse...

Uma daquelas personagens que não se podem qualificar. Ou pode-se qualificar assim: uma pessoa boa e culta. E estará tudo dito? Apenas acrescentar o que Pina deixou escrito: que a amizade é a mais alta forma de amor.
Agora consigo, caro Seve, nasce o problema de não se sentir inclinado para a Poesia e a Poesia de Pina é de alto gabarito.
Foi por causa de um poema que li num jornal ou revista que cheguei a Manuel António Pina. O poema chama-se «Esplanada» e amanhã, ou depois, irei, por aqui, falar dele.

Seve disse...

Qualquer dia talvez "experimente" a poesia do Pina.