Face ao quotidiano massacrante, tenho tentado
aligeirar a situação relendo gente de que gosto muito. Já vos falei do Manuel
António Pina, do Eduardo Guerra Cerneiro, do José Saramago, tenho`também andado
às voltas com a Autobiografia do
Woody Allen, mas gosto mais do cineasta do que do biógrafo de si próprio.
Hoje é domingo, os dias de quase autêntico Verão que
têm feito, foram substituídos por fortes ventanias e chuva.
Parei na página 338 de A Propósito de Nada, com Allen a escrever sobre um dos seus
filmes-assim-assim Setembro e em que
volta a encaixotar a Farrow:
«A versatilidade de Mia era incrível. Ela era capaz de desempenhar a
alheada miúda dos cigarros em Os Dias da Rádio, passar para a afetada colunista de sociedade e, depois, apresentar um
desempenho extraordinário no filme seguinte, Setembro, um drama que põe a questão: poderá um grupo de almas torturadas fazer
as pazes com as suas vidas tristes, quando dirigido por um tipo que ainda devia
estar a escrever piadas fáceis para colunistas da Broadway?
Aqui, como já disse, queria fazer algo tchekhoviano; um set, pessoas numa casa de campo. Emoções em
conflito e baralhadas. Estruturei-o de forma a poder ser filmado no interior de
uma casa no set construído por Santo,
com atores espantosos, todos eles presos a emoções ansiosas. Deveria evocar o
estado de espírito de fim de verão, melancólico, e eu seria louvado como um
poeta trágico e talvez pudessem batizar uma sandes do Carnegie Deli com o meu
nome. Para m dos papéis masculinos contratei Chris Walken, com quem já tinha
trabalhado antes em Annie Hall. Ele
desempenhava o papel do irmão louco. Chris é um dos nossos melhores actores, e
quando as coisas não estavam a funcionar procurei o motivo no lugar errado.
Estudei o seu desempenho para tentar perceber o seu problema, mas deveria ter
examinado a escrita. Deve-se olhar sempre primeiro para a escrita quando algo
não está a funcionar. À medida que os dias iam passando, Chris foi ficando cada
vez mais desconfortável no papel. Por fim, da forma mais simpática e digna de
um cavalheiro, desistiu, garantindo-me, contudo, que eu era um realizador
brilhante, que tinha um grande futuro, uma vez ultrapassado o problema da
idolatria delirante. Separámo-nos em bons termos, amigáveis, mas sempre
lamentei ter desiludido este grande ator. Substituí Chris por Sam Shepard, de
quem gostava muito. Sam nunca se sentiu confortável a dizer o meu texto e,
sendo um bom escritor, preferia alterar constantemente os meus diálogos. Nunca
me importei e, até este dia, não me importo quando um ator prefere colocar as
coisas nas suas próprias palavras, desde que a ideia da cena passe.
De qualquer maneira, dei-me bem com Sam, conversávamos muito sobre jazz, dado que o pai dele tocava bateria. Sam tinha uma fraca opinião de mim enquanto realizador e afirmou publicamente que Robert Altman e eu nada sabíamos sobre direção de atores. Cruzei-me com ele e falámos sobre isso, sempre em termos amigáveis, sempre francos, sempre em bons termos. Quando o pai de Sam faleceu, deixou várias caixas de discos de jazz e Sam enviou-mos todos de presente. Era um tipo espantoso e mais um ator que desiludi. Perguntei-me se seria o drama o meu métier, talvez a minha praia fossem as personagens físicas, que envergassem bulbosos narizes de borracha e brandissem bexigas de porco».
Segundo o próprio
Woody Allen, Setembro foi um flop.
Houve mesmo necessidade de a história ser reescrita e muito do material voltar a ser filmado, porque alguns actores foram saindo, inclusive o Sam Shepard que não se entendeu mesmo com os diálogos de Allen deixou aquela deliciosa observação de que Altman e Allen não sabiam nada sobre direcção de actores.
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