segunda-feira, 31 de março de 2014

OLHAR AS CAPAS



Poesia Portuguesa do Pós-Guerra 1945-1965

Antologia organizada por Afonso Cautela e Serafim Ferreira
Capa: Espiga Pinto
Colecção Poesia e Ensaio nº 8
Editora Ulisseia, Lisboa, Outubro de 1965

Por um país de pedra e vento duro
Por um país de luz perfeita e clara
Pelo negro da terra e pelo branco do muro

Pelos rostos de silêncio e de paciência
Que a miséria longamente desenhou
Rente aos ossos com toda a exactidão
Do longo relatório irrecusável

E pelos rostos iguais ao sol e ao vento

E pela limpidez das tão amadas
Palavras sempre ditas com paixão
Pela cor e pelo peso das palavras
Pelo concreto silêncio limpo das palavras
Donde se erguem as coisas nomeadas
Pela nudez das palavras deslumbradas

- Pedra    rio    vento    casa
Pranto    dia    canto    alento
Espaço    raiz    e    água
Ó minha pátria e meu centro

Me dói a lua me soluça o mar
E o exílio se inscreve em pleno tempo


(Este poema, Pátria, de Sophia Mello Breyner Andresen, pertence ao Livro Sexto mas foi retirado desta Antologia)

A HISTÓRIA CONFUSA...


No dia 13 de Fevereiro de 1965, Humberto Salgado foi assassinado pela PIDE.

Apesar de um julgamento farsa – Mário Dionísio em Outubro de 1978 perguntava: 

«Mas o caso do assassínio de Humberto Delgado (e de sua secretária) está a ser julgado? Finalmente julgado? Julgado mesmo?») - sabemos hoje os nomes dos responsáveis, dos que executaram o crime.

Desde a primeira hora a ditadura pretendeu, por todos os meios, fazer passar para a opinião pública a ideia de que o assassínio de Humberto Delgado fora obra dos comunistas.

Este recorte do Diário da Manhã de 31 de Março de 1968, pela enésima vez, martelava na mesma tecla.

TARDE DE DOMINGO EM ALVALADE


31 de Março de 1974

Acontecera já  o apoio da Brigada do Reumático, teria que existir, para reforçar ainda mais a posição do regime, uma manifestação popular.

Sportinguista que era, Marcelo Caetano entendeu, ou alguém por ele, deslocar-se ao Estádio José Alvalade para assistir ao Sporting-Benfica, a contar para a 26ª jornada do Campeonato Nacional da lª Divisão, e receber a tal manifestação popular.

No dia seguinte os jornais falavam de caloroso e vibrante acolhimento.

Diz quem lá esteve, que também houve assobios e vaias mas as palmas e os vivas ouviram-se melhor, principalmente vindos da bancada central, pejada de viscondes, pides e outros convidados.

Quantos dos que depois andaram, no 25 de Abril pelas ruas de Lisboa a saudar a revolução, não estiveram naquela tarde de domingo a aplaudir vibrantemente Marcelo Caetano?

Por fim, registe-se que o Benfica venceu o Sporting por 5 a 3, golos de Yazalde (2) e Dé pelo Sporting, enquanto pelo Benfica marcaram Nené (2), Humberto Coelho, Jordão e Vítor Martins.

O Sporting viria a sagrar-se campeão nacional.

domingo, 30 de março de 2014

PORQUE HOJE É DOMINGO


Depois de um Inverno horroroso, tivemos uns breves lampejos primaveris mas foi sol de pouca dura.
Hoje é domingo e chove lá fora.
A recordação, sempre saudosa, de Elis Regina:

É pau, é pedra
É o fim do caminho
É um resto de toco
É um pouco sozinho...
É um caco de vidro
É a vida, é o sol
É a noite, é a morte
É um laço, é o anzol...
É peroba do campo
O nó da madeira
Caingá, Candeia
É o matita-pereira...
É madeira de vento
Tombo da ribanceira
É um mistério profundo
É o queira ou não queira...
É o vento ventando
É o fim da ladeira
É a viga, é o vão
Festa da Cumieira...
É a chuva chovendo
É conversa ribeira
Das águas de março
É o fim da canseira...
É o pé é o chão
É a marcha estradeira
Passarinho na mão
Pedra de atiradeira...
Uma ave no céu
Uma ave no chão
É um regato, é uma fonte
É um pedaço de pão...
É o fundo do poço
É o fim do caminho
No rosto o desgosto
É um pouco sozinho...
É um estrepe, é um prego
É uma ponta, é um ponto
É um pingo pingando
É uma conta, é um conto...
É um peixe, é um gesto
É uma prata brilhando
É a luz da manhã
É o tijolo chegando...
É a lenha, é o dia
É o fim da picada
É a garrafa de cana
Estilhaço na estrada...
É o projeto da casa
É o corpo na cama
É o carro enguiçado
É a lama, é a lama...
É um passo é uma ponte
É um sapo, é uma rã
É um resto de mato
Na luz da manhã...
São as águas de março
Fechando o verão
É a promessa de vida
No teu coração...
É pau, é pedra
É o fim do caminho
É um resto de toco
É um pouco sozinho...
É uma cobra, é um pau
É João, é José
É um espinho na mão
É um corte no pé...
São as águas de março
Fechando o verão
É a promessa de vida
No teu coração...
É pau, é pedra
É o fim do caminho
É um resto de toco
É um pouco sozinho...
É um passo, é uma ponte
É um sapo, é uma rã
É um belo horizonte
É uma febre terçã...
São as águas de março
Fechando o verão
É a promessa de vida
No teu coração...
É pau, é pedra
É o fim do caminho
É um resto de toco
É um pouco sozinho...
É pau, é pedra
É o fim do caminho
É um resto de toco
É um pouco sozinho...
Pau, Pedra...
Fim do caminho...
Resto de toco...
Pouco sozinho...
Pau, Pedra...
Fim do caminho...
Resto de toco...
Pouco sozinho...
Pedra...
Caminho...
Pouco...
Sozinho...
Pedra...
Caminho...
Pouco...
Sozinho...
Pedra...
Caminho...
É um Pouco.

OLHAR AS CAPAS



Teses e Documentos
II Congresso Republicano de Aveiro

Diversos autores
Capa: Santos de Almeida
Seara Nova, Lisboa 1969

Em representação das famílias de muitos presos políticos, venho aqui saudar os republicanos e democratas reunidos em congresso e fazer votos pelo melhor êxito dos seus trabalhos.
É também em seu nome que lanço um apelo, a todos os presentes, para que não sejam esquecidos aqueles patriotas que penam nas cadeias políticas de Portugal pelo crime de serem verdadeiros e coerentes democratas, empenhados em servir a causa da República e da Liberdade.
Lembramos a todos vós a situação dramática em que se encontram, provocada por um regime duríssimo, que parece concebido para alcançar, lenta mas eficazmente, a sua ruína física e psíquica. Privados não só da liberdade, mas de um mínimo de convívio com as suas famílias, de quem nunca se podem aproximar; cortados de todos os contactos com os amigos e parentes afastados; sofrendo limitações de toda a ordem no que respeita a informação e cultura; sujeitos a uma humilhante tutela, a uma contínua e opressiva vigilância e a castigos arbitrários; muitos com a saúde abalada, não só pelo regime desumano a que estão submetidos, mas ainda por anos e anos de cadeia, com alimentação e assistência médica deficientes; e a maioria sujeitos a medidas de segurança e portanto vivendo na incerteza quanto á hora da sua libertação,

(Mensagem lida por Aida Magro, em representação de um grupo de famílias de presos políticos).

sábado, 29 de março de 2014

OLHAR AS CAPAS


As Voltas de Um Andarilho

Viriato Teles
Prefácio de Sérgio Godinho
Capa: foto de Joaquim Pimentel
Colecção Rei Lagarto nº 41
Assírio & Alvim, Lisboa, Outubro de 2009

Com a lotação esgotada desde muitos dias antes, o Coliseu transforma-se num imenso coro de cinco mil vozes dispostas a cantar bem alto o outro lado da realidade permitida. Há agentes da Pide por todo o lado, ninguém o ignora. O espectáculo tarda a começar porque Adriano não tinha enviado os textos ao «exame prévio» da Censura. A situação acabará por resolver-se graças a dois censores «casualmente» de serviço na plateia do Coliseu que, ali mesmo, decidem quais os temas que podem ou não ser ouvidos.
Quando finalmente tem início o «desfile», é a apoteose. Primeiro com alguns equívocos, como aconteceu durante a primeira parte da actuação de José Carlos Ary dos Santos recebida com uma chuvada de apupos por parte do público. Mas a força da sua poesia impôs-se e quando debitou «SARL, SARL, a pança do patrão não lhe cabe na pele» já ninguém tinha dúvidas de que aquele homem era efectivamente dos nossos…
Depois foi o grande coro colectivo, a culminar com os cinco mil espectadores, de pé, a versos de «Grândola Vila Morena», ironicamente a única canção Zeca a passar integralmente as malhas da Censura. E é o seu grande impacto na noite de 29 de Março que irá determinar a sua escolha para senha do Movimento das Forças Armadas, na noite de 24 para 25 de Abril.

EM BUSCA DA FESTA


29 de Março de 1974

Para cima de cinco mil encheram por completo o Coliseu dos Recreios em Lisboa e assistiram a algo que lhes marcou as vidas.

Tinha acontecido o 16 de Março, a confusão instalada, alguns a dizerem dizer que estava para breve, muitos, tantas vezes esperançados e depois frustrados a não acreditarem.


Naquela noite de emoções várias, passadas as portas do Coliseu, poderíamos pensar que talvez se aproximasse, assim como o poeta dissera à rapariga, o tal dia em que a Primavera se soltaria no País de Abril.

Assim foi.

De uma vez só, ficámos a saber que o acto de cantar é um acto que responsabiliza a pessoa que canta e as que o escutam.

 Estas são as palavras introdutórias que Mário Contumélias, sobre esta noite, escreveu para o Cinéfilo de 6 de Abril de 1974

A coisa chamava-se – chamou-se o I Encontro da Canção. Estavam marcados para se encontrar com a malta o Quarteto de Marcos Resende, o duo Carlos Alberto Moniz e Maria do Amparo, Manuel José Soares, Carlos Paredes (com Fernando Alvim); o conjunto espanhol Vino Tinto, que a televisão já vira; Pablo Guerreiro; Ary dos Santos; José Barata Moura; Manuel Freire; Fernando Tordo; José Jorge Letria; o conjunto Intróito; Adriano Correia de Oliveira; José Afonso; Ruy Mingas e Paulo de Carvalho; cá por mim fui lá, por dever de ofício, a contar com uma grande estopada. Não que, de um modo geral, eu estivesse com dúvidas sobre a importância da maioria dos convidados no contexto da nova canção portuguesa (embora não percebesse muito bem o que iriam lá fazer dois ou três dos que eram para – e acabaram por estar e não – estar presentes. Nada disso. O que eu temia era que, no meio da confusão, a coisa resultasse numa pepineira intragável. Mas fui! E agora que aquilo já passou, há uns dias largos, ainda guardo em mim uma grande emoção. Fosse lá porque fosse, naquela noite, no Coliseu, senti-me. E isso não nos acontece todos os dias. Isso é importante!

POSTAIS SEM SELO



Pobre novelo complicado
nestas mãos inúteis
que nasceram para dizer adeus
nas estações de caminho de ferro!

José Gomes Ferreira em Poesia II, Portugália Editora, Lisboa Outubro de 1962

Legenda: pintura de Raymond Leech

sexta-feira, 28 de março de 2014

NOTÍCIAS DO CIRCO


 Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística, as pensões mínimas em Portugal encontram-se todas abaixo do limiar de pobreza. 

A ÚLTIMA CONVERSA


 28 de Março de 1974 

Marcelo Caetano proferiu, hoje, através da rádio e da televisão, mais uma das suas Conversas em Família.

Não há uma única palavra sobre os acontecimentos ocorridos no dia 16 de Março  e, muito naturalmente, tão pouco refere o ambiente que se vive no seio dos oficiais das Forças Armadas.

Algumas passagens dessa última conversa:

Desde meados de Fevereiro até agora tenho recebido de todos os recantos do País, de aquém e além -mar, milhares de mensagens de apoio, de incitamento, de estímulo. Tantas que não é possível acusar aos remetentes a sua recepção. Nem sequer responder às centenas de cartas de pessoas amigas, algumas delas tão comoventes. Fica aqui o meu agradecimento a todos. Deus permita que eu seja sempre digno da confiança dos bons portugueses. Por isso me tenho esforçado.
(…)                              
De todas as infâmias que os adversários da nossa presença em África têm posto a correr contra nós e alguns portugueses infelizmente repetem, confesso que me fere mais a de que defendemos o Ultramar para favorecer os grandes interesses capitalistas.
(…)
Os soldados que em África se batem, defendem valores indestrutíveis, e uma causa justa. Disso se devem orgulhar e por isso os devemos honrar.
(…)
E, não tenhamos dúvidas, se alguma fórmula socialista viesse a estabelecer-se  no Ocidente – do que Deus nos defenda! – não seria o anarquismo romântico nem sequer a social democracia conformista, mas sim um colectivismo tirânico, cuja ditadura levaria muitos anos a evoluir para regimes mais humanos.
(…)
Enquanto ocupar este lugar mão deixarei de os ter presentes, aos portugueses do Ultramar, no pensamento e no coração. Procuremos as fórmulas justas e possíveis para a evolução das províncias ultramarinas, de acordo com os progressos que façam e as circunstâncias do Mundo: mas com uma só condição, a de que a África portuguesa continue a ter a alma portuguesa e que nela prossiga a vida e a obra de quantos se honram e orgulham de portugueses ser!

quinta-feira, 27 de março de 2014

UMA NOITE DE HÁ QUARENTA ANOS


A Associação José Afonso e a Casa da Imprensa reeditam amanhã, no Coliseu de Lisboa, o I Encontro da Canção Portuguesa que a 29 de Março de 1974 juntou nomes como José Ary dos Santos, Fernando Tordo, Manuel Freire, Fausto, Zeca Afonso e Adriano Correia de Oliveira. O espetáculo terá lugar a 28 de março deste ano, no Coliseu de Lisboa. 

Em 1974, mais de cinco mil pessoas assistiram ao I Encontro da Canção Portuguesa, sob forte vigilância da polícia. Grândola, Vila Morena, canção de José Afonso (incluída em Cantigas do Maio , de 1971, e interpretada pela primeira vez ao vivo em Santiago de Compostela, na Galiza) foi então entoada espontaneamente pela audiência e, posteriormente, escolhida por militares como uma das senhas de arranque da Revolução dos Cravos.

Excerto da crónica-reportagem que Mário Contumélias escreveu para o Cinéfilo nº 27 de 6-12 de Abril de 1974:

Quando, depois do Adriano acabar de cantar, José Afonso se aproximou do microfone, as palmas rebentaram.
Venho aqui cantar uma canção GRÂNDOLA, disse Zeca.
Cerraram-se as luzes, e toda a sala, todos os 5 mil, de pé entoaram em coro os versos da canção. Braços dados, corpos balanceando, pés batendo no chão.
Quando o Zeca acabou, o público ficou lá, erguido ainda, nos camarotes, na galeria, na plateia, na geral, em todo o lado onde cabia mais um.

 Estas são as canções e os participantes que, amanhã, farão reviver aquela noite única de Março de 1974:  


OLHARES


Tarde de sol.
O Tejo, a outra margem, vistos do Alto de Santa Catarina.

POSTAIS SEM SELO


Também temos saudade do que não existiu, e dói bastante.

CarlosDrummond de Andrade

Legenda: fotografia de Janet Boebert.

quarta-feira, 26 de março de 2014

NOTÍCIAS DO CIRCO


A manchete de hoje do Diário de Notícias revela como o grupo GPS, que está a ser investigado por suspeitas de corrupção e enriquecimento ilícito, teve onze das suas 25 escolas apoiadas no ano passado. Ministério da Educação transferiu 172,7 milhões para 593 privados, do pré-escolar ao secundário. Só os 80 colégios com contrato de associação ficaram com 90% do financiamento, para 1841 turmas.

OLHAR AS CAPAS


Relação de Bordo
(1964-1988)

Cristóvão de Aguiar
Capa: Loja das Ideias
Campo das Letras, Porto, Março de 1999

Contuboel, 12 de Janeiro de 1966 – Ontem o nosso batalhão Sete de Espadas, sofreu dez mortos numa emboscada. Tinha ficado com o meu pelotão na base, para montar a segurança e dar apoio logístico, quando, pouco depois de terem partido para uma operação no mato do Caresse, de ninguém e de muita pancada, se ouviram grandes rebentamentos na direcção que tinham tomado. Uma hora e pouco mais tarde, chegou uma viatura com os mortos a trouxe-mouxe sobre o estrado da carroçaria. Tinham morrido ali como tordos. Depois de os guerrilheiros terem lançado algumas granadas defensivas para o interior da GMC. Fiquei encarregado de transportar aquela carne humana para Fajonquito, sede de uma companhia também pertencente ao nosso batalhão.

POSTAIS SEM SELO


 O meu tapete de espanto num tear de nostalgia.

José Carlos Ary dos Santos

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da imagem.

terça-feira, 25 de março de 2014

NOTÍCIAS DO CIRCO


Portugal é um dos quatro países (Grécia, Roménia e Letónia) que mais reduziu a despesa social em 2011 e 2012, de acordo com o relatório sobre emprego e desenvolvimento social na Europa divulgado pela Comissão Europeia tendo os cortes chegado a 5%.

SARAMAGUEANDO


Já mais de uma vez por aqui disse que gosto muito de Manual de Pintura e Caligrafia de José Saramago.

Pelo tempo em que o comprei, pelo tempo em que o li, pelo tempo em que pressenti que por ali andava coisa boa, mas só muito lá para a frente dos anos se saberia que ao autor lhe atribuiriam o Nobel da Literatura.

Na minha visita quase semanal, à Frenesi Loja, topei com um informe de que está à venda a 1ª edição do Manual de Pintura e Caligrafia pelo preço de 180,00 euros, com a garantia de bom estado e miolo limpo, e a Frenesi nunca engana quem por lá passa ou encontra os proprietários, aos sábados, no Chiado, junto à Bertrand.

Interessante o acrescento de Joana Varela, que os livreiros colocam na apresentação do volume, e que termina com um tímido recomendável.

Das fichas de leitura do serviço de Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, assinada por Joana Varela em 1984:
«Se José Saramago quisesse ser exacto e gostasse de desvendar segredos, em vez de “Manual de pintura e caligrafia”, chamaria muito simplesmente ao seu livro “Manual de vida”, porque, no fundo, é só disso que se trata: Um pintor de retratos da alta burguesia lisboeta, H., começa simultaneamente o retrato “oficial” de S., administrador de uma empresa, um retrato clandestino onde procura pôr o que no primeiro se escapa e uma espécie de diário. A como que finura que o segundo retrato instala na sua pintura, é homóloga da finura da reflexão que a escrita inaugura – e ambas tendem para a ruptura: do modo de vida, do modo de arte, do modo de pensamento. Tudo acaba por convergir numa teoria, aliás por diversas vezes expressa no livro: toda a literatura é autobiográfica, todo o retrato é auto-retrato, toda a forma de arte é forma de vida. E vice-versa. O que o livro relata, portanto, é, na primeira parte, uma conversão à estranheza da intimidade e, na segunda, à sua habitação – no entanto, porque o escritor só deve falar de tudo que sabe, a primeira parte, a do cinismo, a da distância, a da auto-impiedade é infinitamente superior à conclusão, adocicada por um encontro que tem a dupla vantagem e cegueira de ser amoroso e político. De qualquer forma, [...] pensamos que a sua aquisição é recomendável.».

Face às observações dos donos da Frenesi Loja, constato que a maior  parte dos livros da minha biblioteca, vivem do problema de que estão fartamente manuseados e, porque largamente sublinhados, não apresentam miolo limpo.

Mas não consigo entender os livros de uma outra maneira o que, certamente, não agradará aos vindouros que os queiram vender para comprar bilhetes para o cinema, coca-cola e baldes de pipocas.

À LUZ DE CANDEEIROS


Candeeiro no topo da Alameda Dom Afonso Dom Henriques com a Fonte Luminosa em fundo.

OLHARES



Tenho a vaga ideia de que foi num dos programas dominicais do João Villaret na televisão a preto-branco, que ouvi a história:

Cesário Verde desce o Chiado. Alguém do outro lado da rua  grita:

- Adeus oh Cesário Azul!

O poeta respondeu:

- Adeus oh troca-tintas!

Em Lisboa, a estátua de Cesário Verde encontra-se no Jardim com o seu nome, na Praça Ilha do Faial, junto à Rua de  Dona Estefânia.

 Ao entardecer, debruçado pela janela,
 E sabendo de soslaio que há campos em frente,
 Leio até me arderem os olhos
 O livro de Cesário Verde.

Alberto Caeiro

segunda-feira, 24 de março de 2014

É PERMITIDO AFIXAR ANÚNCIOS

OLHAR AS CAPAS


Retrato dum Amigo Enquanto Falo

Eduarda Dionísio
Capa: Cristina Reis
O Armazém das Letras, Lisboa, 1979

A pouco e pouco nas famílias da oposição começou também a crescer a impotência consciente, a força do destino adverso irresistível sobre nós, a impossibilidade de até ao fim combater a ditadura porque os anos passavam. Instalavam-se dentro da incomodidade e muitas vezes deixavam de ter a percepção da mudança e da diferença entre as coisas, as épocas, as pessoas, as datas, as palavras. Não era o medo, nem a falta de coragem, era uma incapacidade de análise, de invenção e de combate. Isto é uma coisa que marca. Não sei se te marcou profundamente, mas marca. E houve cada vez mais disputas: a quem pertencia a oposição, a que famílias e que ideias, a que escritos, a que organizações, a que siglas; e mais desconfiança para com todos os que de novo ascendiam às suas ideias ou conversas, regozijando-se ao mesmo tempo, ajudando-os com o entusiasmo e com cuidado, não permitindo excessos, fornecendo o que era seu, contabilizando, facturando por dentro não permitindo autonomias, nem emancipações, acarinhando, querendo sobretudo re-produzir-se.
Não entendendo algumas zonas de assuntos do que os mais novos diziam – a economia e as colónias; sabendo o que entre si diziam nos estaleiros, nas fábricas, nas igrejas, sendo os campos um cenário muito longínquo onde depositavam muita fé; não acreditando em movimentações subterrâneas, nem de estudantes nem de católicos – estás a perceber; fugiam ao destino devagar – as deserções, as fugas para o estrangeiro, o peso do serviço militar, a droga.

À CIDADE DE LISBOA


Apesar do horror em que vives mergulhada
Apesar do horror em que vivemos mergulhados
Hei-de sentir saudades quando partir de novo
Quando partir de novo sem saudades nenhumas

Alberto de Lacerda em Exílio, Portugália Editora, Lisboa, Dezembro de 1963

domingo, 23 de março de 2014

OLHAR AS CAPAS


Poesia VI

José Gomes Ferreira
Capa: Dorindo de carvalho
Diabril Editora, Lisboa, Fevereiro de 1976

                                       (Em frente construía-se um prédio. Hora do
                                        Almoço dos operários.)

De ouvido na terra, o homem dorme a sesta
perto  da fogueira do almoço sob a cal do andaime.
Escuta outra labareda longe, talvez onde se ocultam
os  sonhos dos alçapões dos dias.

Crepita devagar na cal da Terra
que constrói as cidades e devora os segredos dos mortos e das minas

Então começou a chover de propósito para apagar a fogueira do almoço

enquanto o terror do lume subterrâneo se aproxima.

Não durmas, homem. Acorda!

Prepara-te para erguer um mundo de fogo

e não catedrais de cinza.

DITOS & REDITOS


A vida é curta.

Só a rotina faz a vida normal.

O mundo gosta de ser aldrabado.

O dito está dito!

Subir a pulso.

A gente habitua-se a tudo.

Há estrelas cadentes esquecidas.

Não podemos continuar aqui parados, à espera de que o mundo nos caia em cima.

Fruir o silêncio como se fosse música.

Zangam-se as comadres, descobrem-se as verdades.

SARAMAGUEANDO


Há homens que desparecem e logo se descobre que estavam mortos desde muito cedo. Há homens que ficam connosco, pessoas que nos acompanham como tesouros silenciosos no fundo do mar.
Há pessoas que nos falam e nem as escutamos; há pessoas que nos ferem e nem cicatrizes deixam.
Mas há pessoas que, simplesmente, aparecem em nossa vida e que marcam para sempre...

Cecília Meireles                  

sábado, 22 de março de 2014

POSTAIS SEM SELO


Houve um tempo em que festejavam o dia dos meus anos, hoje sou eu que os festejo, se assim se pode dizer, é como as carícias sobre o corpo, a mão de um outro vem sempre de uma distância definitivamente perdida no eco das nossas duas mãos, e é uma experiência diferente que nos prende a uma estranheza, e não uma festa triste que se arredonda à nossa volta.


Eduardo Prado Coelho em Tudo o Que Não Escrevi  2º volume, Edições Asa, Porto, Abril de 1994

OLHAR AS CAPAS


Cartas da Prisão

José Magro
Capa de Luís Filipe da Conceição sobre fotografia de Eduardo Gageiro
Edições Avante, Lisboa, Fevereiro de 1975

- Temos de subir a corda a pulso, subir a pulso e sempre… - dizia o nosso Pereira Gomes a sorrir, como se contasse uma graça.
Subiu a corda. A pulso e até ao fim…
Eis aí outro em que também estou tranquilo. Nunca me cansei do cansaço… Nunca me cansei, nem creio que venha a cansar-me, da luta e da vida. Nunca!
Assim, quando a outra vier, a tal senhora magra e de foice comprida, muito feia e de incríveis exigências, não irei recebê-la de braços abertos, não! Há-de violentar-me, há-de levar-me à força!... Contra toda a dialéctica da vida? Pois será! Mas hei-de gritar-lhe que não, que não sou do seu mundo de repouso aparente, sem luz, sem som, sem gente… Sem gente, caramba! Eu sou é deste, com homens em redor, camaradas ou inimigos. Com mulheres, loiras e morenas, centros da vida, tão belas em geral e tão próximas. E com crianças, mais do que deuses rosados e imortais, herdeiras da vitória!
Oh magra senhora da foice! Acabarei por ter de aceitar-te, que remédio!
Mas ouve! Quero dizer-te o que não teria a coragem de dizer a uma mulher: és tão feia e fria, meu estafermo!

NOTÍCIAS DO CIRCO


A notícia:

O Estado gastou mais de cinco milhões de euros, sem concurso público, com serviços contratados a escritórios de advogados. Empresas, Governo e outros organismos públicos contratam as maiores sociedades de advogados para pareceres e outros serviços jurídicos. Metade dos cinco milhões de euros gastos em ajustes directos em 2011 foram entregues a quatro escritórios.

O comentário de  Filipe Nunes Vicente no Nada o Dispõe à Acção:

Os jornalistas pegam nisto pela rama. Estão bem treinados na cultura do arco da governação.
Por exemplo, seria  estimulante uma investigação sobre pequenos escritórios de advocacia que se tornaram enormes, e passaram a  especializar-se  noutras áreas,  depois  de um dos seu associados ter passado  por S.Bento.
Também seria revigorante saber qual a parte  dos inestimáveis serviços prestados pelas grandes sociedades de advocacia que não poderia ter sido feita pelos serviços jurídicos  dos organsimos públicos  e ministérios.
O negócio dos pareceres jurídicos ficaria para depois...

sexta-feira, 21 de março de 2014

OLHAR AS CAPAS


Corpo de Esperança

José Carlos de Vasconcelos
Cancioneiro Vértice, Coimbra, 1964

Proibir, podem. Ferir, podem também.
Matar, podem ainda.
Seguiremos mais cheios de glória,
e cada proibição será um alento,
cada ferimento uma canção,
cada morte uma vitória.

Proibir, podem. Ferir, podem também.
Matar, podem ainda.
Almas entrelaçadas nas outras almas,
mãos esmagadas nas outras mãos,
seremos donos de todos os povos
e senhores de toadas as estradas.

Proibir, podem. Ferir, podem também.
Matar, podem ainda.
Nenhum coração verdadeiramente
jovem se cerra.
E pelo seu sangue de amor e de terra
A luta continua, a esperança não finda.

NOTÍCIAS DO CIRCO


Cavaco, enquanto Presidente da República Portuguesa, é um pulha. Um tipo que para vencer umas eleições faz chantagem sobre o eleitorado, é um pulha. Um tipo que após ganhar essas mesmas eleições tudo faz para que o seu País seja obrigado a aceitar as piores condições de financiamento, incluindo a diminuição drástica da soberania, é um pulha. Resta só descobrir a razão pela qual este País aceita ser representado no mais alto cargo do Estado por um pulha.

Valupi em Aspirina B

Legenda: imagem de A Bola.

POSTAIS SEM SELO


A Primavera queremos nós criá-la.
Nós os homens.

José Gomes Ferreira em Poesia II, Portugália Editora, Lisboa Outubro de 1962

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia

DESFOLHADA


Poucas dúvidas existem de que, Desfolhada é uma bonita canção que, na altura, foi uma pedrada no charco do nacional-cançonetismo que nos assistia.

Para a desilusão da votação que a canção obteve em Madrid há um pormenor de que muitos se esqueceram: não era a Desfolhada que estava em votação, antes uma ditadura que mantinha uma guerra contra povos africanos.
Por mera curiosidade diga-se que a Áustria recusou participar no Festival da  Eurovisão desse ano por decorrer num país governado por um ditador: Francisco Franco.

Na Fotobiografia de José Carlos Ary dos Santos pode ler-se que, provavelmente, foi ao assistir a uma desfolhada, numa festa, que Zé Carlos se sentiu inspirado para escrever esta letra. No manuscrito da canção, a letra aparece primeiro com o título de Lenda Encantada, depois riscada e substituída por Desfolhada. No final do poema lê-se: Letra de Terrear para música de Água de-Fogo.

A canção aparece no Festival da Canção da RTP como Desfolhada e com é esse estampado na lª edição em disco.

A 2ª edição do EP já mudou o nome da canção para DesfolhadaPortuguesa.

As razões da alteração tiveram a ver, ao que parece, com o facto de na Sociedade portuguesa de Escritores já existir o registo de uma canção com o nome Desfolhada e o seu autor exigiu que se fizesse a alteração na canção de Ary dos Santos e Nuno Nazareth Fernandes.

Mais um pouco de história.

Simone de Oliveira não foi a primeira escolha para cantar Desfolhada.

Três ou quatro intérpretes foram apontadas, entre as quais Madalena Iglésias, que chegou a gravar a canção mas quis que o verso quem faz um filho fá-lo por gosto fosse cortado, a que Ary dos Santos, obviamente, recusou.

Ficou Simone, e ficou muito bem.

Dificilmente outra intérprete teria dado tanta força àquela seara louca em movimento.  Cheia de confiança, Simone, à partida para Madrid declarava: vai ser uma actuação à Benfica!


Legenda: a capa de Desfolhada é uma  cortesia deMr. Ié-Ié

DESFOLHADA


Neste dia, no ano de 1969, Simone de Oliveira, vinda de Madrid, depois de ter participado, com Desfolhada, no 14º Festival da Eurovisão chegou à Estação de Santa Apolónia, sendo recebida por milhares de portugueses - as crónicas da época falam em 20 mil – gritando o seu nome e empunhando cartazes e bandeiras, o levantamento do povo tal como Simone disse aos jornalistas.

Portugal ficou no penúltimo lugar com apenas 4 pontos que causaram enorme frustração e indignação. Consta que o Ministro da Informação e Turismo de Espanha foi aos bastidores pedir desculpas a Simone, que a maior parte das delegações cantantes prestaram solidariedade à artista e o maestro Ferrer Trindade, que dirigiu a orquestra, chamou à votação uma enorme palhaçada.

Indignado, O Século exigia que abandonássemos, para sempre, o Festival da Eurovisão.

O para sempre não se cumpriu e acabámos por regressar em 1971 com mais um canção de José Carlos Ary dos Santos: Menina cantada pela Tonicha.

Quando em 24 de Fevereiro Desfolhada venceu o VI Grande Prémio da Canção Portuguesa, saltou a euforia e as expectativas para o Festival da Eurovisão subiram demasiado alto.


Numa prosa muito secretariado da informação, o Notícias de Portugal, epicamente exultava:

Com todo o sabor de um panegírico ressurgido da terra, força imanente da alma da gente agrária no simbolismo das palavras ao ritmo melódico  da música popular, «Desfolhada» constitui um hino de louvor à grei, expressão maior desta geografia humana tão fortemente portuguesa, das serranias cobertas de pinheirais, às planícies atapetadas de searas, do verde das árvores, às espigas de trigo loiro, dos areais da costa beijada pelo mar infinito em ondas, ao firmamento sem quebras na unidade de azul. Todo o espaço de Portugal europeu onde o Amor e a Fé renascem a cada momento de vida, para, numa viagem ao encontro do tempo, disseminar, por todo o Mundo, o talento de bem fazer.

Legenda: a fotografia da chegada de Simone de Oliveira a Santa Apolónia é tirada do Notícias de Portugal de 5 de Abril de 1969.
Capa de O Século Ilustrado é tirada da Fotobiografia de Ary dos Santos - o Homem, o Poeta, o Publicitário de Alberto Bemfeita, Editorial Caminho Lisboa, Agosto de 2003.

quinta-feira, 20 de março de 2014

OS CROMOS DO BOTECO


José Malhoa

Discossete DSG-442

24 Horas - 24 Horas (instrumental)

UM GESTO DE TRESLOUCADOS


20 de Março de 1974

Ontem, o Conselheiro Albino dos Reis, decano dos parlamentares, proferiu um discurso na Assembleia Nacional em que abordou a sublevação dos militares do Regimento de Infantaria 5.
Reproduz-se a parte final do discurso:

POSTAIS SEM SELO


É bonito chegar à Primavera.

Luiz Pacheco

Legenda: pintura de Jean-François Millet

quarta-feira, 19 de março de 2014

A DEFINIÇÃO DO AMOR


Escrevi tantas vezes a palavra pai que lhe gastei todo
o significado. Quando agora escrevo pai, já não sinto
as barbas a roçarem a minha mão macia, as rugas que
os anos transportaram para a sua face, os óculos, os
dedos, a voz com que me chamava filho como se eu

me escrevesse pai. Gastei tudo o que uma palavra pode
dizer porque esqueci a sua memória. Gastei-a em maus
poemas e em maus romances, poemas e romances com
a foz ao fundo e a mãe segurando-me o corpo pequeno
sobre o muro que ladeava a praia. Gastei-a

definindo-lhe as letras, alargando-lhe o significado.
Gastei-a tirando-lhe a dízima infinita e não periódica
e colocando-lhe, depois da letra que se salvou, o mar
fechado no seu interior. Gastei-a a tentar definir o amor.

Jorge Reis-Sá na Antologia, Em Nome do Pai, organizada por José da Cruz Santos, Modo de Ler Editores, Porto Março de 2008.

Legenda: S. José e o Menino, pintura de Josefa d’Óbidos, tirada da antologia Em Nome do Pai.

POSTAIS SEM SELO


Gostar de morangos e ter-te para dizer isto.

MOTIVOS DE CARÁCTER PROFISSIONAL...



19 de Março de 1974

O ministro dos Negócios Estrangeiros Rui Patrício, ainda no Rio de Janeiro onde foi assistir à tomada de posse do novo Presidente do Brasil, disse aos jornalistas que a sublevação de alguns oficiais subalternos nas Caldas da Raínha, mais não foi que um acto isolado movido por motivos de carácter profissional.


Como se entendia que os jornais, rádio e televisão estrangeiros estavam a difundir notícias que não correspondiam à realidade, o governo informava da nação sobre o número de oficiais detidos.

Porém, o comunicado no seu laconismo habitual, não revela a situação dos restantes militares que das Caldas saíram em direcção a Lisboa.

terça-feira, 18 de março de 2014

NOTÍCIAS DO CIRCO


O programa da troika está a ser mal aplicado, o país e as pessoas estão hoje pior que há três anos e a austeridade não deverá diminuir nos próximos tempos.
Estas são algumas das conclusões mais relevantes do estudo da Eurosondagem e do Fórum das Políticas Públicas 2014, coordenado por Pedro Adão e Silva e Maria de Lurdes Rodrigues, que visa avaliar a percepção dos portugueses sobre estes quase três anos de cumprimento do programa de assistência económico-financeira da troika a Portugal.

Legenda: imagem Jornal Digital

OLHAR AS CAPAS



A Lei

Roger Vailland
Tradução: Amarina Alberty
Publicações Europa-América, Lisboa Janeiro de 1975

Entre 1904 e 1914, entre os vinte e os trinta anos, tinha viajado por toda a Europa, durante as férias universitárias, para completar a sua educação, segundo o desejo do seu pai. Um Verão, quando voltava de Londres, ao ir embarcar em Valência para Nápoles, tinha passado por Portugal. Tinha posto a si mesmo mil perguntas sobre o declínio dessa nação cujo império se tinha estendido à volta do Globo. Tinha conhecido escritores que não escreviam para ninguém; homens políticos que governavam para os Ingleses; homens de negócios que liquidavam os seus estabelecimentos do Brasil e viviam de pequenas rendas, em cidades de província, sem finalidade. Ele tinha pensado que era a pior das infelicidades nascer Português. Em Lisboa, pela primeira vez na vida, tinha-se encontrado com um povo que se tinha desinteressado.

OLHARES


Placard no Jardim Tristão da Silva nas Olaias.

POR DISCIPLINA DE CEMITÉRIO


(Primeiro intervalo em S. Carlos. Sorrimos uns para os outros.
«Então como está?» «Há muito que não o via!»... Musgo. Teias de
aranha nos ouvidos. Fascismo de «smoking». Passo pelos
corredores escondido atrás de mim.)


Disseram-lhes
que estavam vivos
por disciplina de cemitério.
E todos acreditaram
já com os pés em ângulos rectos. 

Mas vivos que são?
Mortos incompletos.

José Gomes Ferreira, Poesia IV, Portugália Editora, Lisboa, Dezembro de 1970

UM DOMINGO CHEIO DE SOL


18 de Março de 1974
A Época, na sua primeira página, realçava que a tranquilidade foi sentida no país num domingo de Inverno cheio de sol e que nas Caldas da Raínha o mercado registou o habitual movimento e que nas pastelarias nem sequer decresceu o fabrico das apetitosas «cavacas».


O Século também realçava a normalidade em todo o país e terminada a notícia:

É de esperar que venham a ser divulgadas informações mais pormenorizadas para o esclarecimento da opinião pública, sobretudo tendo em vista os relatos exagerados ou fantasiosos divulgados ni Imprensa e na rádio estrangeiras.


Legenda: a fotografia do merceado das Caldas da Raínha é tirada do Diário Popular de 18 de Março de 1974.