quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

QUEM SOMOS NÓS?


Quem somos nós?
Nós somos «a esperança que não fica à espera».
Quem pode ser no mundo tão quieto
Que o não movem nem o clamor do dia
Nem a cólera dos homens desabitados
Nem o diamante da noite que se estilhaça e voa
Nem a ira, o grito ininterrupto e suspenso
Que golpeia aqueles a quem a voz cegaram
Quem pode ser no mundo tão quieto
Que o não mova o próprio mundo nele.
Manuel Gusmão
Texto retirado do blogue Que Se Lixe a Troika
Legenda: imagem do Público.

OS CROMOS DO BOTECO

OS CLÁSSICOS DO MEU PAI


Quando o meu pai conseguiu comprar, em suaves prestações, um televisor lá para casa, um enorme Nordmend, naturalmente a preto e branco, o primeiro programa que, espantados e felizes, vimos, foi um Nat King Cole Show.

Suponho que foi aí o meu pai agarrou o gosto pelo velho Nat.

Foi ele quem comprou todos os Eps de Nat King Cole a cantar em espanhol e português, discos que fizeram o sucesso dos bailes da casa.

Esses EPs perderam-se pelo caminho, mais tarde recuperei-os, editados em LP, e ainda por aqui moram.

Curiosamente foi a partir desses cachitos, desses quizás, desses perfidia , desses quero chorar não tenho lágrimas, desses ay coisita linda, que, anos mais tarde, passei a conhecer o verdadeiro Nat, o pianista de jazz, mas principalmente o cantor de standards que vira nos tais Nat King Cole Show e considerava uma seca de todo o tamanho.

A voz de Nat King Cole é um veludo eterno. É tão macia que apetece embrulharmo-nos nela. Ninguém soube cantar como ele – como se respirasses, sem esforço, sem exibição, como se ciciasse aos nossos ouvidos, disse alguém de que não lembro o nome.

Mas lembro que foi João Gilberto quem disse: ele não é preto, não. É azul.

Um cancro nos pulmões levou-nos, prematuramente, essa voz, esse sussurro.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

MARÉ DE TODOS NÓS!


Vou sair à rua e irei contigo, com quem sempre tenho ido, mesmo que não vá mais ninguém.
Contigo também que, da última vez, sem saberes bem o que te empurrava porta fora, sem saberes bem que besta é esta, que nome lhe dar, essa mesmo que te vem sugando a vida, palmando a vontade, matando o desejo, comendo o pão e agora até a água te cobiça, foste à rua para te juntares. Para saberes afinal como é essa coisa de nos juntarmos a outras mulheres e a outros homens. Para saberes se o teu grito pode ou não ser o grito de outros.
Sairei à rua. Sairemos à rua.
Nos primeiros instantes seremos poucos. O Marquês será ainda rotunda quando olharmos os primeiros rostos. Meia dúzia de pessoas, ali de volta dum cartaz que estão a pintar, acenam a um carro que apitou enquanto gritam o que escreveram: «JAMAIS SEREMOS VENCIDOS!» Em volta não param de chegar. Vêm em grupos de dois, de três, muitos pela primeira vez como tu vieste também: sós. Uns com mochila às costas. Outros com os filhos. Tiveram de cortar o trânsito e agora ocupas a estrada, tu e as centenas que já não consegues contar. Já não cabemos nos passeios, grita alguém que não vês. Queres dar uma volta e subir a um banco ou a um poste, mas agora já não interessa, porque são muitos e vêm de todos os lados, porque ficas com medo de perder o grupo. «JAMAIS SEREMOS VENCIDOS». Mas entretanto vês outros com um cartaz a dizer «O POVO É QUEM MAIS ORDENA» e de novo perdes o medo. Por todo o lado há pontos de exclamação e desistes da investida, porque já não queres saber quantos são, contar às vezes é estúpido, pensas agora que os rostos estão mais perto, quase colados.
Rui Dinis texto tirado do blogue Que se Lixe a Troika

À LUPA


A estatística diz-nos que, apenas nos anos de 2011 e 2012, Portugal cortou 3700 milhões na despesa com apoios sociais, o equivalente a -7,4% da despesa previamente realizada, ou -2,2% do PIB. É o maior esforço, em termos relativos, realizado no espaço europeu - o país com o segundo maior corte foi a Roménia, com -5,2%. Ninguém pode subestimar a dimenão dos sacrifícios, em dinheiro e em espécie, que estão por detrás destes valores. Em comparação internacional, os portugueses têm vindo a ser obrigados a apertar o cinto mais depressa e mais fortemente do que os seus parceiros nesta UE a 27.
Se juntarmos a este encolher dos programas sociais do Estado a redução do número e de regalias dos funcionários públicos e os cortes nas reformas e aposentações, emerge com mais nitidez a crueza do ajustamento orçamental, que já foi feito - para além do que seria razoável pensar ser possível. Quando o presidente da Cáritas reclama o fim de apertos sociais adicionais, sabe do que fala: de uma população que se abriga no amparo possível das famílias alargadas, na caridade das instituições humanitárias, saídas da sociedade civil, nos ressuscitados almoços de marmita, nas carências alimentares envergonhadas, escondidas. Este é o país
Do editorial do Diário de Notícias de hoje.

O SENHOR ABEL


Nos tempos da televisão a preto e branco, João Villaret tinha, aos domingos, um programa em que, acompanhado ao piano pelo seu irmão Carlos Villaret, dizia poesia e contava histórias.
Foi aí que, pela primeira vez, ouvi contar a história das visitas que Fernando Pessoa fazia ao Sr. Abel.
 Na wikipédia, Luis Pedro Moitinho de Almeida lembra essa história:
Era comum Fernando Pessoa, enquanto se encontrava a trabalhar, muito provavelmente a escrever à máquina, levantar-se, pegar no chapéu, ajeitar os óculos e ir até ao “Abel”. Esta simples acção de Pessoa, que se tornou um hábito, intrigou um colega de trabalho do poeta, Luiz Pedro Moitinho de Almeida (segundo Fernando Pessoa - Empregado de Escritório, do João Rui de Sousa). Esse mesmo colega apercebeu-se, algum tempo depois, que as idas ao “Abel” eram, nada mais, nada menos, que uma ida ao depósito mais próximo da casa Abel Pereira da Fonseca para tomar um cálice de aguardente. Certo dia, foram tantas as idas ao “Abel”, que Luiz de Almeida, aquando do retorno de Fernando Pessoa ao escritório, disse-lhe: “Você aguenta como uma esponja!”. Ao qual o poeta respondeu, com o seu sentido de humor: “Como uma esponja? Como uma loja de esponjas, com armazém anexo”.

POSTAIS SEM SELO


Não podemos deixar que nos matem, nos roubem esta felicidade de estarmos vivos e juntos, não podemos adiar a nossa vida, não queremos esta vida assim, queremos apenas ser amigos uns dos outros — e livremente pensarmos e livremente viver. É difícil. Mas queremos, e assim faremos tudo para deitar abaixo quem nos impede a vida e essa coisa a que chamamos amor.
Jorge Silva Melo no blogue Que se Lixe a Troika!

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

E O MAR A BATER AO FUNDO



Quando eu era criança, o meu pai vivia num forte que parecia um castelo.
E isso era normal — normal, quer dizer, era extraordinário! Mais ninguém tinha o pai a viver num castelo, rodeado de mar!
Era normal apanhar o comboio ou a camionete, de madrugada, aos fins de semana, para ir ao castelo visitar o meu pai. Ele enchia-me de prendas (que afinal era a minha mãe que levava), fazia-me desenhos, emoldurava os que eu fazia para ele e eu gostava. Era normal falar com ele através de um vidro com uma rede de metal e só raramente conquistar um colo, amansando com os meus lindos olhos de azul inocente o agente que vigiava a entrada do parlatório.
O meu pai era um preso político, o que queria dizer que não tinha sido preso por roubar bancos ou carros. Quando mais tarde prenderam um primo meu não percebi o alvoroço familiar: estar preso era normal.

Um dia houve uma revolução e eu percebi que afinal normal era as pessoas não estarem presas e os colos serem um direito.
A liberdade tornou-se normal e isso queria dizer que já podia cantar em todo o lado aquilo que dantes só podia cantar em surdina ou em casa. Já não era preciso baixar a voz quando chegava à parte do «ou vai-te embora, pulga fascista». Nessa altura, toda a gente saía à rua para participar na liberdade; reuniam, planeavam, decidiam, envolvendo-se naquilo que dantes era normal ser decidido por outros.
Passou a ser normal a política ser feita por todos, que todos tivessem os mesmos direitos e que a riqueza de um país fosse usufruída em igualdade; bastava ser-se humano, já não era preciso pertencer a elites. Fez-se uma constituição para garantir que seria assim.
Para nós, crianças, isso significava que o mundo deixaria de ter dois lados, um com «prédios bem altos e mais jardins floridos muita luz e muitas cores», outro com «barracas escuras feitas nem sabe de quê e miúdos a chorar e onde os brinquedos são pedras e a lama são os jardins», como o Zé Pimpão mostrou à Maria-dos-olhos-grandes. Só podia ser normal querer que houvesse apenas um lado do mundo, «com todos do mesmo lado», e que, se não houvesse jardins para todos, se dividissem os canteiros e, se os canteiros não chegassem, uma flor para cada um e, se as flores fossem poucas, haveria pétalas, enfim, cheiro, mas todos teriam igual. Fomos pelo sonho e o mundo tornou-se a nossa casa.

Depois vieram as eleições e afinal não era normal que todos quisessem partilhar as flores ou as enxadas. Não fazia mal, mais tarde ou mais cedo haveriam de perceber que a Maria-dos-olhos-grandes tinha razão.
Mas não. Pouco a pouco, começaram a convencer-nos de que a política se fazia apenas por quem percebia do assunto e o assunto era muito complicado. E as pessoas confiaram. Confiaram que podiam viver as suas vidas e que os partidos em que votavam se encarregavam da política. Para muitos, a política tornou-se uma chatice. A esquerda voltou a ser o bicho papão, que só queria virar o país do avesso, com essas ideias radicais de dividir jardins, canteiros, flores, pétalas, enfim, cheiros, por todos os seres humanos. E o PS e o PSD, com ou sem CDS, passaram a revezar-se no trono, como os únicos partidos que garantiam que o país não se virava do avesso e que quem tinha jardins os podia guardar só para si. E muitos deixaram de votar. Para quê, se já se sabe que eles só se interessam em ajudar os amiguinhos? Para quê, se nada muda?

Mas aos poucos muito ia mudando. De revisão constitucional em revisão constitucional, de lei em lei, de governo em governo, fomos perdendo direitos e ganhando obrigações, fomos passando de senhores a vassalos. As contribuições que fazíamos para garantir que todos vivêssemos com qualidade, em igualdade de direitos, foram-se transformado em rendas a pagar pelo privilégio de existir e viver neste país.
Aos poucos, o Estado tinha sido privatizado e as eleições serviam apenas para definir os accionistas-governo que iriam assegurar a gestão nos quatro anos seguintes. E os accionistas começaram a especular na bolsa com a riqueza que devia ser nossa — que é nossa! E sentiram-se impunes. Aliaram-se aos comparsas internacionais mais poderosos e, avidamente, decidiram estrangular a galinha dos ovos de ouro. Sofregamente, quiseram transformar os vassalos em servos. Em pouco mais de um ano empobreceram milhares para aumentar as fortunas de dezenas, transformaram direitos em favores, a serem usados com parcimónia. Começaram a vender bens públicos aos amigos para pagar as dívidas que contraíam ao jogo nos mercados. Como garantia, os amigos exigiam que nos reduzissem ainda mais os direitos, que tivéssemos de pagar os favores — o favor de estudarmos, de termos assistência na saúde, o favor de existimos. Em coro, asseguram-nos que é tudo normal e que os protestos são coisa de arruaceiros.

A mudança foi tão brutal que um dia olhámos em volta e não reconhecemos o país. O normal tornara-se absurdo. E o absurdo entra-nos em casa diariamente. Há nababos com riquezas pessoais de milhares de milhões de euros enquanto famílias são desalojadas, crianças passam fome, milhares de jovens são obrigados a emigrar e muitos, novos e velhos, ficam sem assistência médica. Perdoam-se distracções na declaração ao fisco de milhões de euros em rendimentos e perseguem-se aqueles que não têm dinheiro para pagar descontos obrigatórios mas injustos, já que não têm vínculos laborais nem rendimentos estáveis para assegurar a própria sobrevivência. Condena-se quem rouba duas latas de comida para animais e enaltece-se quem enriquece, de forma corrupta, à conta do estado.
Nada do que vemos é normal, mas até quando iremos esperar passivamente que tudo se resolva? Quando iremos perceber que temos de resistir e combater o absurdo, saindo à rua e defendendo os nossos direitos?
O que leva um povo massacrado a dizer «basta!»?
Quanto mais tempo passar, mais dolorosa será a nossa luta: a mesa do comércio, ainda posta e já gasta, poderá acabar como jangada para evacuar fugitivos da fogueira incendiada pelos outrora cativos.

Queremos fazer a luta com cravos, mas não deixaremos de a fazer se os cravos não forem eficazes. Os nossos pais não tiveram medo e mostraram-nos que vale a pena.

No dia 2 de Março sairemos à rua gritando «basta!» e exigiremos que nos devolvam o nosso país. Nesse dia, levaremos cravos.
 
Texto de Rita Veloso copiado do blogue Que se Lixe a Troika.
Legenda: o título é retirado do poema Sou Barco de António Borges Coelho

SOU BARCO

Sou barco abandonado
Na praia ao pé do mar
E os pensamentos são
Meninos a brincar.

Ei-lo que salta bravo
E a onda verde-escura
Desfaz-se em trigo
De raiva e amargura.

Ouço o fragor da vaga
Sempre a bater no fundo,
Escrevo, leio, penso,
Passeio neste mundo
De seis passos
E o mar a bater ao fundo.

Agora é todo azul,
Com barras de cinzento,
E logo é verde, verde,
Seu brando chamamento.

Ó mar, venha a onde forte
Por cima do areal
E os barcos abandonados
Voltarão a Portugal.

Poema de António Borges Coelho
Música de Luís Cília

POSTAIS SEM SELO


Dennis traz uma T-shirt com as seguintes palavras estampadas na frente: «Se a vida é um sonho, o que é que se passa quando acordo.»
Paul Auster em Smoke, Difusão Cultural, Lisboa Maio de 1996.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

O POVO É QUEM MAIS ORDENA!


Porque não aguentamos mais, no próximo sábado, dezenas de cidades vão ser palco de um protesto contra a política do governo promovido pelo movimento Que se lixe a trioka, o povo é quem mais ordena.
Nós pretendemos pôr fim a este percurso de austeridade e empobrecimento do país. De facto, só assim é que recuperaremos a dignidade
Um relógio parado acerta mais nas horas do que as previsões do ministro Vitor Gaspar. O desafio e o convite que colocamos é que os portugueses expressem a 2 de Março o seu descontentamento, mas também uma enorme vontade de parar este rumo e abrir espaço para uma efetiva mudança que sirva os interesses do povo e a vontade
Legenda: imagem do blogue Que Se Lixe a Troika

À LUPA


Numa entrevista ao Diário Económico, Eduardo Catroga defende que a idade da reforma deve ser aumentada, de forma a racionalizar as prestações sociais.

NUMA ESTAÇÃO DE METRO


A minha juventude passou e eu não estava lá.
Pensava em outra coisa, olhava noutra direcção.
Os melhores anos da minha vida perdidos por distracção!

Rosalinda, a das róseas coxas, onde está?
Belinda, Brunilda, Cremilda, quem serão?
Provavelmente professoras de Alemão
em colégios fora do tempo e do espa-

ço! Hoje, antigamente, ele tê-las-ia
amado de um amor imprudente e impudente,
como num sujo sonho adolescente
de que alguém, no outro dia, acordaria.

Pois tudo era memória, acontecia
há muitos anos, e quem se lembrava
era também memória que passava,
um rosto que entre outros rostos se perdia.

Agora, vista daqui, da recordação,
a minha vida é uma multidão
onde, não sei quem, em vão procuro
o meu rosto,
pétala dum ramo húmido, escuro.
Manuel António Pina de Um Sítio Onde Pousar a Cabeça (1991) em Poesia Reunida, Assírio & Alvim, Novembro 2001.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

O BOM CAMINHO...


Por estes dias, Pedro Passos Coelho disse aos portugueses que o governo estava no caminho certo.
Este país do primeiro-ministro não pode ser de modo algum o outro país, aquele em que portugueses passam necessidades extremas e outros tentam desesperadamente sobreviver:
Um milhão e duzentos mil desempregados, dos quais duzentos e sessenta mil já deixaram de procurar emprego e apenas trezentos mil recebem subsídio de desemprego
A folha de excel de Gaspar, provavelmente não revela, mas o desemprego atingiu já os 22%.
O número de portugueses que já emigraram, não são oficiais, mas estimam-se em cento e vinte mil.
Contrariamente ao que, sem qualquer gota de pudor e vergonha, Ulrich bolsa, o país não vai aguentar isto por muito mais tempo.

DO BAÚ DOS POSTAIS


Moínhos de maré no Seixal.

POSTAIS SEM SELO


Dizia hoje alguém:
Em Portugal, as pessoas são imbecis ou por vocação, ou por coacção, ou por devoção.

Miguel Torga em Diário Vol.III, Edição do Autor, Coimbra Setembro de 1946.

sábado, 23 de fevereiro de 2013

VELHOS DISCOS


Outro disco comprado na Grande Feira do Disco.
Vi o Mundo Cão, no Cinema Império e lembro-me que me causou muita impressão.
Logo que foi possível  fui à Forno do Tijolo comprar a banda sonora.
O tema More é tocado em diversos estilos, mas não aparece cantada.
Como gostava muito da canção, lembro-me que comprei um EP do Andy Williams.
Já não tenho o disco.
Certamente perdido num qualquer baile da vida, que se faziam aos domingos, porque naqueles tempos ainda o comércio não conquistara a semana inglesa.
Por semana inglesa, um destes dias hei-de falar dessa conquista dos trabalhadores e  em que activamente participei.

GATO NUM APARTAMENTO VAZIO


Morrer não é coisa que se faça a um gato.
Que há-de um gato fazer
num apartamento vazio?
Subir às paredes?
Roçar-se nos móveis?
Aparentemente não mudou nada
e no entanto está tudo mudado.
Continua tudo no seu lugar
e no entanto está tudo fora do sítio.
E à noite a lâmpada já não está acesa.

Ouvem-se passos nas escadas,
mas não são os mesmos.
A mão que põe o peixe no prato
também já não é a que o punha.

Há aqui qualquer coisa que já não começa
à hora do costume,
qualquer coisa que não se passa
como deveria passar-se.
Havia aqui alguém que há muito estava e estava
e que de repente desapareceu
e agora insistentemente não está.

Procurou-se em todos os armários,
revistaram-se as estantes,
espreitou-se para debaixo do tapete.
Violou-se até a proibição
de desarrumar os papéis.
Que mais se pode fazer?
Dormir e esperar.

Quando regressar, ele vai ver,
ele vai ver quando chegar.
Vai ficar a saber
que isto não é coisa que se faça a um gato.
Caminhar-se-á em direcção a ele
como que contrariado,
devagarinho,
com patas amuadas.
E nada de saltos ou mios. Pelo menos ao princípio.

Poema traduzido por Manuel António Pina, publicado no Público de 11 de Fevereiro de 2012, que mostra a morte de um amigo vista pelo seu gato.

SARAMAGUEANDO


Não faltaram a José Saramago os burocratas pátrios, e se não bufos de novas polícias secretas, agentes fidelíssimos da estupidez. E valerá a pena assinalar aqui que não se eximiria o ensino oficial a emprestar a sua mãozinha à boçalidade campeante, obrigando legiões e legiões de adolescentes a desbravar aquilo que a ampla maioria dos professores dificilmente entendia. Penalizados por um contexto assim, e na mobilidade das filas de volumes que ocupam as prateleiras das bibliotecas privadas, a obra brilhantíssima de Saramago aguardará por certo uma terceira, ou uma quarta, geração de bisnetos e trinetos portugueses capazes de o homenagear com a inteligência normal que um artista a sério sem dúvida merece.
Legenda Soua Lara, agente fidelíssimo da estupidez.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

NOTAS DE PROVA OU POEMAS


Naquele tempo, o botas decretou que beber vinho era dar de comer a um milhão de portugueses.
O vinho bebia-se, comprava-se em tabernas, pipos ao alto, vindos directamente do lavrador ramo de louro à porta – abriu o vinho novo.
Já mais crescidote, quando o rei fazia anos, bebia, Aliança, Periquita, Evel.
Não havia supermercados, grandes superfícies, lojas de vinhos.
Depois, segundo declararam além-fronteiras, passámos a viver acima da nossas possibilidades e beber vinho torou-se moda fina-saloia, quanto mais caro melhor e o negócio generalizou-se ao ponto de não se saber se algumas casas, alguns restaurantes tinham vinho ou ouro dentro das garrafas tal os preço a que chegaram.
Dentro da moda criou-se uma linguagem própria para otários, histórias feitas para serem contadas a camelos.
Limitado que sou, não tendo o Aliança, o Periquita, o Evel  continuado a ser vimnhos honestos, passei-me para as colheitas do ano e, amargamente, a lamentar que já não haja tascas a vender vinho, o tal que vinha directamente do lavrador.
Agora, o vinho chega em contentores-pack de 3, 5, 15 litros, acabando por se envolver num espartilho de palavreado debitado porcríticos publicitários, intitulam-se experts, saem-se com um linguajar inventado, ou até então desconhecido, para um país apenas conhecedor de meios copos, copos de três, ou penaltis.
Alfredo Saramago, algures, escreveu:
Existe um discurso demasiado sério sobre o vinho, é preciso que se restitua a liberdade a cada apreciador para poder julgar o vinho que bebe sem a espada de Dâmocles por cima da cabeça à espera de justiçá-lo se um aroma ou outro escapar ao paladar do desgraçado bebedor!
Cada vez que há feiras de vinhos em supers e grandes superfícies, não compro os vinhos, mas saco os catálogos e delicio-me com esse palavreado destinado a gente fina que, com o olho brilhante, delira com tudo aquilo, bebem as palavras com gosto, possivelmente com mais gosto do que  que com o próprio vinho que, normalmente, não justificam tanto ruído.
Chamam-lhe notas de prova mas há quem vá mais longe, e os considere poemas vinícolas.
Que sejam:
Os aromas de barrica lideram o conjunto com as notas especiadas e balsâmicas mas o fruto vibrante não se apaga neste conjunto muito voluntarioso. Tudo no sítio, corpo estrutura, tanino, boa frescura e termina num longo pós boca.
 Um estilo muito diferente, centrado nas notas frescas de ervas aromáticas e violetas com fruto intenso e muito elegante do tipo cassis. Muito «design» na boca, rendilhado, sem ser vigoroso, elegante e com boa sofisticação.
Aroma do tipo telúrico com notas de couro, frutos silvestres, muito mineral e ervas mediterrânicas, poderoso e frontal na aproximação. Um peso pesado na boca, muito tanino numa sólida estrutura, algum couro, fruto e força num estilo personalizado e de primeira linha.
Boca com garra e taninos firmes, muito boa estrutura, corpo e fruto sóbrio que termina num final ainda com alguma aspereza e muita especiaria. Um vinho de guarda
Um aroma muito doce com o fruto preto maduro em geleia e compotas, barrica bem casada. Na boca tem excelente volume, macio e gordo, conservando frescura, taninos sólidos. Termina muito longo ao fruto e tosta e cheio de elegância.
Estilo moderno e elegante com fruto preto, baunilha, tosta e café muito bem casados.
Notas apimentadas e frescas, fruto elegante de cereja num conjunto com alguma sofisticação. Firme e seco na boca, austero e cheio de força, taninos sólidos e um final longo bem condimentado.
Estilo quente e madurão, fruto de ameixa em passa, chocolate.
Notas fumadas e de alcatrão, fruto de amoras pretas muito maduras. Bem na boca, estruturado e concentrado no fruto e chocolate preto, pimentas muito firmes num conjunto com um longo pós-boca.
Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.

À LUPA


Se a pessoa Relvas não percebe que não pode continuar ministro, que ao menos jornalistas e órgãos de comunicação social evidenciem não lhe reconhecer dignidade para tutelar o sector.
Fernanda Câncio, Diário de Notícias
Legenda: imagem do Diário de Notícias.

NÃO TE ESQUEÇAS DESTES DIAS


Sempre gostei de Robert Enke.
Pela sua simplicidade, a sua alegria, um miúdo simpático que fazia defesas que maravilhavam.
Porque tenho este feitio de nunca dizer mal dos jogadores do Benfica, para mim, o Enke nunca dava frangos.
Não tardou que começasse a ser pretendido por outros clubes.
Os sócios bem escreveram panos que diziam «Enke fica!», mas acabou por ir para o Barcelona.
Dificilmente se aceita a morte, pior ainda quando sabemos que um jovem de 31 anos, vítima de uma depressão que nunca conseguiu resolver, procura essa morte.
A 10 de Novembro de 2009 Robert Enke procurou um comboio que o levasse da vida.
Comecei a ler Robert Enke, Uma Vida Curta Demais, em Novembro do ano passado.
O que pensava vir a ser uma leitura fácil, tornou-se algo complicada.
Mais de uma vez abandonei o livro e só há poucos dias cheguei ao fim.
Está largamente sublinhado e dificilmente voltarei a pegar nele.
A morte de Robert Enke deixou-me, na altura, um misto de revolta e tristeza.
Não podia ser possível.
Na terça-feira, dia 10 de Novembro de 2009, Robert Enke andou às voltas de carro nas imediações de Empede. Lembrou-se à tarde de que ainda precisava de tratar de uma coisa. Foi a uma estação de serviço e mudou o óleo do carro. Depois atravessou Empede e dirigiu-se à passagem de nível mais próxima, em Eilvese. Apanhava por vezes o comboio para o treino. Porque não haveria um guarda-redes internacional de viajar de comboio? A ligação era boa. Robert conhecia o horário de cor e salteado. Sabia que o expresso regional proveniente de Bremen atravessava Eilvese sem para às 18:15. (pág. 416)
A morte de Robert Enke revelou à maioria de nós quão pouco sabemos acerca dessa doença que é a depressão. As pessoas que a conhecem, em número chocantemente elevado, tomaram subitamente consciência de como é difícil falar sobre a depressão. Tal como Robert Enke, sempre acreditaram que tinham de manter em segredo a sua doença ou a doença de um qualquer familiar. (pág. 10)
Disse um dia a Teresa sua mulher: “Se um dia tu tivesses a minha cabeça durante meia hora, irias percebe perceber porque é que estou a dar em doido.”
Os amigos e os companheiros de equipa dizem que era um homem maravilhoso que acreditava que tinha sempre de procurar o ponto de vista de outras pessoas.
Gostava de cães.
Moreira, seu companheiro no Benfica, diz que apanhava cães rafeiros, abandonados nas ruas, e levava-os para casa.
“Olha lá Moreira”, disse Robert no quarto de hotel. “Como é possível tratarem tão mal aqui.” (pág. 115).
Segundo a mulher, foi em Lisboa que Enke viveu os tempos mais felizes da sua vida e
considerava que José Mourinho tinha sido o melhor treinador da sua carreira.
Robert viajou de férias para Lisboa com Teresa. Tinham entretanto comprado aí uma casa.
“Continuas a querer regressar ao Benfica quando tiveres 34 anos?”, perguntou-lhe Paulo Azevedo.
“Claro”, respondeu Robert. (pág. 327).,
A sua morte impediu esse desejo, bem como o regresso a uma felicidade que já sentira.
Tudo isto me fez procurar um poema com que pudesse homenagear Robert Enke.
Encontrei este, da autoria de António Gedeão:
Uma canção pequenina
Que vem do lado de lá.
Rompe através da cortina
Que envolve o mundo de cá.
Que mais se pode dizer de uma vida curta demais?
Também no diário que manteve durante a depressão, as entradas foram-se torrnado cada vez mais curtas à medida que a doença o atormentava. A última página apresenta uma única frase, em letras enormes. Supostamente deveria ser uma advertência dirigida a si próprio, embora a frase seja lida como um pedido a cada um de nós:
“Não te esqueças destes dias.”

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

OLHAR AS CAPAS


Robert Enke, Uma Vida Curta Demais
Ronald Reng
Tradução: João Henriques
Capa: Joana Tordo
Edição Lua de Papel, Lisboa Outubro de 2012

Tinham o seu lugar em todas as cidades onde tinham vivido. O La Villa no Estoril, o Blues Café em Lisboa e o sítio dos cavalos em Sant Cugar. Para eles, esses eram lugares com poderes mágicos, e entrar neles era como entrar numa banheira de água quente. O Café Kreipe era o lugar deles em Hannover.
Já há muito tempo que se chamava Coffee Time, mas para eles ficara sempre o Café Kreipe. O primeiro andar tinha mesas simples de madeira, um tapete cinzento a cobrir o chão e uma grande janela com vista para a ópera.
Robert pediu um struddel de ameixa com molho de baunilha. Teresa ficou feliz com aquilo. Já se permitia alguma coisa, já não estava a castigar-se. Esses eram pequenos passos em frente. Se continuasse assim, Robert voltaria a sair da depressão.

UMA SANDES DE MOLHO



Tempos houve, em que Lisboa era um mundo de tascas com bifanas a fervilhar nas montras.
Hoje é quase um deserto.
Ainda há o Beira-Gare, as Berlengas, a Parreirinha do Chile, Ribeirão Preto, também na Praça do Chile, mas as bifanas já não são o que eram. Também eu já deixei de o ser…
E já não estou a falar de iscas, porque essas já não se encontram em parte alguma.
O último reduto que as fazia era o Beira-Gare mas quando se apresentou à populaça, depois daquelas obras-tipo-cee, as iscas saíram de cena.
A gerência entendeu que uma sande de isca de cebolada já nada dizia às gentes de hoje, aos turistas que passaram a invadir a casa.
Hélas!...
A fotografia mostra um restaurante na Rua dos Condes, um restaurante inócuo.
Mas ali foi, até não sei quando, talvez anos 80, um estupendo tasco com bifanas, a nadarem num delicioso-molho-must-de-colesterol e feitas à vista.
Só olhar a montra, era um luxo, luxo desgraçadamente perdido.
Dada a crise que se vive, não sei se o restaurante ainda mantém as portas abertas.
Mas o que aqui me traz não é o restaurante de hoje mas a tasca de então.
Tasca cantada numa crónica, com o título Cinco escudos, que José Duarte fez incluir no seu Jazzé e Outras Músicas, Edições Cotovia, Lisboa Junho de 1994:
Assim:
Passei frente às coxas do Olympia e entrei naquela tasca onde, os anos 60, viram jovens-hoje-administradores, consumir louváveis decilitradas! Fiz o que pude! Croquetes, rissóis, penalties, pastéis, uma sopa, mais penalties, uma bifana e outro penalty e a conta. Estava a pagar, seis senão quando, entra a jovem, toda de jean vestida, nova, liceal, remediada e de livros ao sovaco.
O diálogo.
A jovem, em tom discreto, porque envergonhada: «Queria uma sandes!»
A mulher, que fritava pastéis: «De quê?»
A mesma jovem, ainda discreta: «De molho!»
A mulher, natural e à vontade, usa a sua mão esquerda para segurara a carcaça, já aberta, e a direita para a concha do molho, que verte no pão. Pouco molho.
A jovem recebe com a direita e paga com a esquerda. Cinco escudos.

QUE SE LIXEM!


O ministro das finanças Vitor Gaspar, reconheceu que o governo fracassou nas suas previsões..
Em devido tempo toda a a gente viu o filme todo, excepto os ilustres governantes e a capacharia  que os tem mantido à tona de água. Por enquanto…
A austeridade desmedida que nos impuseram nunca poderia ser receita para a crise.
Na peça Liberdade, Liberdade, Millôr Fernandes e Flávio Rangel lembram um general fascista espanhol às voltas com uma dificuldade militar:
Este é um problema que qualquer criança de três anos resolve. Eu… humm… tragam-me uma criança de três anos.
Ao longo dos anos temos vindo a ser governados por gente incompetente, mas diga-se: nada como a chocante incompetência desta gente.
Como é possível, por exemplo, que o Relvas continue a fazer parte do circo?
Depois de todos os acontecimentos patéticos que envolvem a criatura, mantê-lo no governo é, no mínimo, um caso de polícia.
O que leva Pedro Passos Coelho a não demitir a personagem?
Provavelmente, o medo.
Medo de se conhecer, em toda a sua globalidade, o compadrio que existe, há décadas, ente os dois, compadrio que permitiu que Relvas, com os cordelinhos do aparelho do partido na mão, estendesse a passadeira para que um dia, com solenidade, Passos Coelho tivesse o desplante de dizer:
Estou preparado para governar.
Uma governação que se transformou no soberano desprezo pelo povo.
O  Eça  disse: O governo não há-de cair – porque não é um edifício. Tem que sair com benzina – porque é uma nódoa!
Tanta impreparação, incompetência, autoritarismo, cegueira, terão que ter um fim.
Vai ter um fim!
Março será o mês em que, de uma vez, por todas, digamos: BASTA!
Que se lixem todos os gestores e políticos de chacha, todos os corruptos e doutores da mula ruça!
A nossa palavra não pode ser o silêncio.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

OLHAR AS CAPAS


Rubem Fonseca

Bufo & Spallanzani
Capa: Henrique Cayatte
Sextante Editora, Porto, Fevereiro de 2011


“Você gosta de Chagall?”, perguntei na primeira oportunidade. Ela respondeu que sim, “Essa gente toda voando”, eu disse e ela respondeu que Chagall era um artista que acreditava acima de tudo no amor. Na mão esquerda dela, no dedo anelar, havia um anel de brilhantes. Devia ter uns trinta anos de idade e uns cinco de casada, que é quando as mulheres começam a perceber que o casamento é uma coisa opressiva, doentia mesmo, iníqua e estiolante; além das privações sexuais que passam a sofrer, pois os maridos já se cansaram delas. Uma mulher dessas é uma presa fácil, o sonho romântico acabou, restou a desilusão, o tédio, a perturbação moral, a vulnerabilidade. Então aparece um libertino como eu e seduz a pobre mulher. Ali estava uma mulher que acreditava no amor. “Que nul ne meure qu’il n’ait aimé” (ver Saint-John Perse), eu disse. O francês pode ser uma linha morta, mas é linda e funciona muito bem com as burguesas. “Infelizmente o mundo não é como os poetas querem”, disse ela. Convidei-a para jantar, ela hesitou e acabou aceitando almoçar comigo. Era a primeira vez que ia a um restaurante com um homem que não fosse o marido.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

NÃO, NÃO VAMOS AGUENTAR TUDO!


É uma questão de higiénica pública.
O circo terá mesmo de abandonar a cidade.
A bem ou a mal.
Basta de vigaristas, corruptos, mentirosos, incompetentes.
Chegámos a um ponto de não retorno.
Não podemos deixar que o medo se instale.
Não há mais tempo para assobiar para o lado e prosseguir a nossa vidinha.
Não podemos, simplesmente, ficar a olhar para um país que, em cada dia que passa, se destrói, e nada fazer.
Há que cerrar os dentes!

DO BAÚ DOS POSTAIS


Honfleur.

LUME


Comecei a fumar para te pedir lume.
Para arranjar um motivo. Para.
Tens lume? Perguntei-te.
Sim. Disseste. Levaste a mão ao bolso.
Engatilhaste o zippo. Todo prateado.
Abeiraste-te e fizeste concha com a mão direita.
Eras canhoto, como o coração.
Agora. Disseste.
E levei o cigarro até à chama.
Já está. E sorriste.
Importas-te que te acompanhe? Perguntaste.
Não, claro que não. Claro que não.
Está frio. Disseste. E esfregaste as mãos.
O cigarro sempre aquece.
Sim. Tossi.
Estás bem? Perguntaste.
Estou muito bem.
Óptimo. Disseste. E sorriste.
Aquele café além é acolhedor. Não tomas nada?
Um chá fazia bem à tosse. Perguntaste. E disseste.
Sim, um chá calhava bem. Estava mesmo a apetecer-me.
Parece que adivinhei. Disseste. E aí sorri eu.
Tomámos chá e de imediato fizemos planos de vida
Que correram mal, imediatamente mal.



Comecei a fumar para te pedir lume.
Para passar o frio.
Descobri que não viria a morrer
Nem de cancro pulmonar, nem de amor,
mas da própria morte, mal o lume se apagou
e o café fechou as portas. Para sempre.
Ana Salomé em Resumo: a Poesia em 2009, Assírio &Alvim, Lisboa Março 2010.

Legenda: pintura de Raymond Leech

SOBREVIVER PORTUGUÊS


Neste dia, no ano de 1978, desde Santa Barbara, um Jorge de Sena descrente, doente, a braços com inúmeras dificuldades económicas, que sempre o acompanharam na vida que passou longe de Portugal, escrevia a José-Augusto França:
Enfim eu já não me queixo dos amigos, José-Augusto – para quê, todos tão importantes, tão rodeados de génios e talentos nessa pátria (vai subsistir ou não, nas últimas contradanças?)… Eu sei que não é por mal, é tudo pressa, correria, falta de tempo… Mas eu ficarei, mesmo que todos me traiam, e ficará só quem tiver embarcado na minha Barca do Inferno… sem remissão alguma. Desculpa o desabafo, de quem está cansado, exausto, cheio de trabalho, e até pensa pedir a cidadania cabo-verdiana, para ficar a meio caminho entre Portugal e Brasil, sem pertencer a nenhum por uma vez, e talvez até ganhando as vantagens de ser cidadão dos novos países.Contava ter um sabático na Primavera próxima e foi engano de contas da Administração. E ir a um simpósio de Fernando Pessoa, encontrar-me com uma data de «fernandinos» que ou são malandros, ou discípulos de malandros, ou raros amigos (o Lourenço riscou para mim, desde que em artigo recente, disse que eu devia estudar o Magalhães Godinho e o Saraiva – quando é sabido que eu sempre li as putas ou os patrões de putas deste país, tentando não ficar provinciano como eles), se é que o são, não tenho tempo, saúde, nem licença oficial para isso na semana em que as aulas do 3º trimestre começam aqui. Talvez que vá à Europa no Verão, mas sem mais que oito dias em Portugal – este convém que seja cada vez mais o país ideal gentil ou odiosamente ausente que sempre foi bom para se sobreviver português.
Em Correspondência Jorge de Sena/José Augusto França – Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa Junho de 2007
Legenda: fotografia tirada de Jorge de Sena, Vinte Anos Depois, Edições Cosmos, Lisboa 2001.