quinta-feira, 31 de maio de 2018

POSTAIS SEM SELO



Faz sentir aos teus subordinados que precisas deles, e não que eles precisam de ti.

Antoine de Saint-Exupéry

INCAPAZES DE SE DIRIGIREM...


O comunismo? Quem falou em comunismo? Toda a gente sabe hoje que o comunismo naufragou. Foi o sonho de idealistas sem senso prático, que tudo ignoravam das realidades da vida. O comunismo é o engodo que se estende às classes trabalhadoras para excitá-las à revolta, assim como o grito de liberdade e igualdade é o rebate com que se excitam à ousadia. Através da história universal, houve sempre exploradores e explorados. Sempre os haverá. E isso é justo, pois os homens, na sua maioria esmagadora, são destinados pela Natureza ao papel de escravos. São incapazes de se dirigirem, e, para seu próprio bem, necessitam de senhores.

Somerset Maugham em Férias de Natal 

NÃO REDIJO POEMAS DE ENCOMENDA


Fui procurado no Liceu de pedro nunes, onde trabalhava, por Jorge Cenáculo, do Rádio Clube Português. Ocorrera há dias a chamada Revolução de 25 de Abril. Cenáculo vinha-me pedir, em nome de quem o mandara procurar-me, que escrevesse um poema que seria musicado, relativo àquela revolução, poema que, de preferência se ajustasse à música do “Abril em Portugal”, já divulgada entre nós e no estrangeiro. Não redijo poemas de encomenda.
(2 de Maio de 1974)

Rómulo de Carvalho em Memórias

O SENTIMENTO DUM OCIDENTAL


Nós que sofremos de mazelas crónicas
tão ocas como um stradivarius
e da a apatia febril das mnemónicas
circenses de requintes culinários

gostamos de basófias     filarmónicas
de pompas fúnebres    do ar dos funcionários
públicos    e suportamos as mazelas crónicas
fazendo delas autênticos ovários

de onde irrompem embriões e fetos
discursos e chavelhos e essa melancolia
que os avós nos deixaram e vai prós nossos netos

apendicites honras truques burocracia
um trato ameno um trote quase certo
e tretas vigaristas qualquer dia

Vasco Graça Moura em Poesia Portuguesa do Pós Guerra

quarta-feira, 30 de maio de 2018

POSTAIS SEM SELO


E a certa altura a coisa impõe-se-nos. Estar a mais. Ser eliminado pela vida que tem pressa de seguir adiante. Mesmo o que se conquistou em apreço dos outros é para ir para o depósito daquilo por que se tem apreço. Agora, nós, não. Nós devemos dar o lugar a outros. Há um equilíbrio da vida e a morte entra nas suas contas. Sempre recusei o suicídio. Devo ter asneado. A Milinha de Rápida, a Sombra deve ter razão: o suicídio deve ser obrigatório como os impostos.

Vergílio Ferreira em Conta-Corrente, 3º volume. 

TALVEZ A TRISTEZA CAUSE FEBRE


Ricardo Reis aborreceu-se depressa com a farrapagem do corso, mas assistiu a pé firme, qualquer coisa que tivesse para fazer não era mais importante do que estar aqui, por duas vezes chuviscou, outra vez caiu forte a chuva, e ainda há quem cante louvores ao clima português, não digo que não, mas para carnavais não serve. No fim do dia, já terminado o desfile, o céu limpou, tarde foi, os carros e carruagens seguiram para o seu destino, lá ficarão a enxugar até terça-feira, retocam-lhes as pinturas deslavadas, põem-se os festões a secar, mas os mascarados, mesmo pingando das melenas e cadilhos, vão continuar a festa por essas ruas e praças, becos e travessas, em vãos de escada para o que não se possa confessar ou cometer às claras, assim se praticando por maior rapidez e barateza, a carne é fraca, o vinho ajuda, o dia das cinzas e do esquecimento será só na quarta-feira. Ricardo Reis sente-se um pouco febril, talvez tenha apanhado um resfriamento a ver passar o corso, talvez a tristeza cause febre, a repugnância delírio, até aí ainda não chegou. Um xexé veio meter-se com ele, armado com o seu facalhão de pau e o bastão, batendo um contra o outro, com grande estrépito, bêbado, a pedir equivocamente, Dá cá uma pançadinha, e arremetia ao poeta, de barriga esticada para a frente, avolumada por um postiço, almofada ou rolo de trapos, uma risota, aquele papo-seco de chapéu e gabardina a esquivar-se ao velho do entrudo, trajado de bicórnio, casaca de seda, calção e meia, Dá cá uma pancadinha, o que ele queria era dinheiro para vinho. Ricardo Reis deu-lhe umas moedas, o outro fez uns passos de dança grotescos, batendo com a faca e o pau, e seguiu, levando atrás de si um cortejo de garotos, mais os acólitos da expedição. Num carrinho, como de bebé, era levado, com as pernas de fora, um marmanjão de cara pintada, touca na cabeça, babeiro ao pescoço, fingindo chorar, se é que não chorava mesmo, até que o mostrunço que fazia de ama lhe chegava à boca um biberão de vinho tinto em que ele mamava sofregamente, com grande gáudio do público reunido, donde, de repente, saía a correr um rapazola que, rápido como o raio, ia apalpar o vasto seio fingido da ama e deitava logo a fugir, enquanto o outro berrava com voz rouca, de não duvidoso homem, Anda cá ó filho dum cabrão não fujas, anda cá apalpar-me aqui, e juntava o gesto à palavra com ostensividade suficiente para que as senhoras e mulheres desviassem os olhos depois de terem visto, o quê, ora, nada de importância, a ama tem um vestido que lhe desce até meio da perna, foi só o volume da anatomia, agarrada com as duas mãos, uma inocência. É o carnaval português. Passa um homem de sobretudo, transporta, sem dar por isso, um cartaz fixado nas costas, um rabo-leva pendurado por um alfinete curvo, Vende-se este animal, até agora ninguém quis saber o preço, mesmo havendo quem diga, ao passar-lhe à frente, Tal é a besta que não sente a carga, o homem ri-se dos divertimentos que vai encontrando, riem-se os outros dele, enfim desconfiou, levou a mão atrás, arrancou o papel, rasgou-o furioso, todos os anos é assim, fazem-nos estas partidas e de cada vez comportamo-nos como se fosse a primeira. Ricardo Reis vai descansado, sabe que é difícil fixar um alfinete numa gabardina, mas as ameaças surgem de todos os lados, agora desceu velozmente de um primeiro andar um basculho preso por uma guita, atirou-lhe o chapéu ao chão, lá em cima riem esganiçadas as duas meninas da casa, No carnaval nada parece mal, clamam elas em coro, e a evidência do axioma é tão esmagadora e convincente que Ricardo Reis se limita a apanhar do chão o chapéu sujo de lama. segue calado o seu caminha, já reviu e reconheceu o carnaval de Lisboa, são horas de voltar ao hotel.


Legenda: fotografia tirada do blogue Restos de Colecção

OLHAR AS CAPAS


O Caso do Cão Uivador

Erle Stalnley Gardner
Tradução: Sónia Guimarães
Capa: Cândido Costa Pinto
Colecção Vampiro nº 23
Livros do brasil, Lisboa s/d

- Que diabo! – exclamou Parry Mason fatigado. – Até agora eu estive fazendo quase todo o seu trabalho de detective. Não vou fazê-lo todo. E´´E você quem ganha um ordenado para isso e não eu.
- Pelo que soubemos – disse o sargento Holcomb, - você fuoi muito bem pago, por tudo o que tem feito no caso.
Perry Mason bocejou alto.
- Sargento – disse, - esta é uma das vantagens da minha profissão, que também tem as suas desvantagens.
- Tais como? – indagou curiosos o sargento Holcomb.
- Tais como o facto de se ganhar apenas pela habilidade que se tem – observou Mason. – A única razão pela qual recebo bom dinheiro pelo que faço, é porque demonstro habilidade ao fazê-lo. Se os contribuintes só lhe pagassem quando você apresentasse bons resultados, você teria de passar fome durante alguns meses, a não ser que mostrasse mais inteligência do que a que tem demosnstrando neste caso.

CARTA A UM POETA


                                                                                                    A Aimé Césaire

Ao Irmão amado e ao amigo, minha saudação abrupta e fraternal!
Os  alcatrazes negros, os pirogueiros de longo curso deram-me a saborear notícias
      tuas
De mistura com especiarias, com odoríferos sons dos Ricos do Sul dos Rios das Ilhas.
Falaram-me do teu crédito, da tua eminente fronte e da flor dos teus lábios subtis
Que eles, os teus discípulos, te criaram, favo de silêncio, leque de pavão
Pois até se erguer a lua manténs seu zelo alterado e ofegante.
Será esse teu perfume de frutos fabulosos ou o teu sulco de luz em pleno dia?
Quantas mulheres de pele de sapota no harém do teu espírito!
Encanta-me, para além do tempo, sob a cinza das tuas pálpebras
Esse tição ardente, a tua música apara a qual estendíamos as mãos e o nosso coração    
     de antigamente.
Acaso esqueceste tua nobreza, que é a de cantares
Os antepassados os Príncipes e os Deuses, que não são flores nem gotas de orvalho?
Devias oferecer aos Espíritos os frutos brancos do teu jardim
- Apenas comias a flor, colhida nesse mesmo ano do milho-miúdo
Sem lhes roubares uma só pétala para perfumares tua boca.
Toco, no fundo poço da memória,
O teu rosto donde extraio a água que vem refrescar-me desta longa saudade.
Reclinas-te, real, apoiado à almofada de uma colina clara,
Teu leito pesa na terra que suavemente pena
Os tantãs, nas inundadas planícies, ritmam o teu canto, e teu verso é o respirar
    da noite e do mar longínquo.
Cantavas os antepassados e os príncipes legítimos
Colhias no firmamento uma estrela para a rima
Rítmica a despropósito; e a teus pés descalços lançavam os pobres a trança do
    seu ganho de um ano
E a teus pés descalços, seu coração de âmbar as mulheres, e a dança de sua alma
    dilacerada.

Meu amigo meu amigo – oh! tu viras tu virás!
Estarei à tua espera - mensagem confiada ao patrão do cúter – debaixo do acajueiro.
Estarás de regresso para o festim das primícias, Quando sobre os telhados fumega
    a doçura da tarde ao sol declive
e os atletas estadeiam a sua juventude, engalanados como noivas, deverás tu chegar.

Léopold Senhgor em Poemas 

Legenda: Aimé Césaire                                                               

terça-feira, 29 de maio de 2018

O CAMINHO FAZ-SE CAMINHANDO


Resultados dos quatro projectos-lei discutidos e votados, hoje, na Assembleia da República:

PS
115 contra
110 a favor
4 abstenções

BE
117 contra
104 a favor
8 abstenções

PEV
117 contra
104 a favor
8 abstenções

PAN
116 contra
102 a favor
11 abstenções

A discussão pública da eutanásia vai continuar.
Na próxima legislatura voltará ao Parlamento, com outras reflexões, com outra clarividência, com outra consciência e estou certo que o desfecho será diferente.

«Eu queria agradecer-te, Galileo,
a inteligência das coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar- que disparate, Galileo!
- e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação-
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.»

RELACIONADOS


Diário de Lisboa, 14 de Maio de 1990.


Público, 26 de Setembro de 2003.


Diário de Notícias, 26 de Setembro de 2006.

SE NÃO PODES AJUDAR-ME A VIVER, AJUDA-ME A MORRER


A discussão sobre a eutanásia é uma discussão dificílima, um emaranhado de melindres, cada cabeça sua sentença…ou se está a favor… ou se está contra…

O resto é pano de fundo onde se torna difícil navegar… mas navegar é preciso!

Eutanásia significa morte tranquila, ajudar as pessoas em agonia a sair deste mundo com serenidade, não é a escolha entre a vida e a morte.

É uma escolha entre duas maneiras de morrer.

Com ou sem dignidade.

O médico e escritor Fernando Namora morreu em Janeiro de 1989.

Até morrer, sofreu horrivelmente.

O Dr. José Luciano de Carvalho que, durante anos e anos, assistiu a nossa família, quando num dia longínquo lhe perguntei a sua opinião sobre a eutanásia, não se mostrou favorável e contou-me que, durante a doença, ao visitar o seu amigo e colega Fernando Namora, e este lhe pedira, encarecidamente, que o ajudasse a morrer.

- Fernando, sabes tão bem como eu, que não te posso ajudar: fizemos um juramento…


Acresce a este juramento profissional, a posição da Igreja.

Tenho um vasto dossier, li livros, vi filmes sobre o tema, sei-o fracturante, a crispação que o tema provoca, por tudo isto, também por instinto, sou a favor da eutanásia.

Hoje, o tema da morte assistida, quatro coprojectos do PS, Bloco de Esquerda, Partido Ecologista Os Verdes e PAN, será discutido na Assembleia da República.

O PCP e o CDS votarão contra, os restantes partidos deram liberdade de voto aos seus deputados.

O desfecho desta votação aponta para um «não» como resultado. Contas feitas pelos jornalistas, mostram que 116 deputados deverão chumbar a legalização da eutanásia contra 114 deputados que votarão a favor, mas estes números não são um dado adquirido.

Li a Posição política do Partido Comunista sobre a provocação da morte assistida, inclino-me a perceber o que nela se pretende, mas não concordo com os argumentos expostos.

Acresce que essa múmia política que dá pelo nome de Cavaco Silva, há longo tempo remetido ao silêncio, disse à Rádio Renascença que é contra a legalização da eutanásia:

 «Estando em causa a defesa do primado da vida humana, entendi que devia fazer uso das duas armas que me restam como cidadão: a minha voz, não ficando calado, e o meu direito de voto na escolha dos deputados nas próximas eleições legislativas.»

No mesmo sentido se pronunciou o ex-primeiro ministro Pedro Passos Coelho e, segundo o Expresso, Marcelo Rebelo de Sousa afirmou que não tem posição tomada em relação aos diplomas sobre a eutanásia que estão em discussão, mas deverá vetar a lei.

Seguem-se declarações de diversas personalidades, relembro uma história do quotidiano contada por José Cardoso Pires, incursões sobre os Diários de Miguel Torga e Vergílio Ferreira e mais à frente, em Relacionados, coloco três «velhos» recortes:

«Tenho idade e já sofri o suficiente para saber que a vida, sendo embora um bem finito, só vale a pena ser vivida em plenitude ou com dose razoável de humanidade. No ano em que se deixou morrer, Teixeira de Pascoaes disse à família uma coisa luminosa: “Não me tirem a dignidade de viver”. Tinha 75 anos, extinguia-se rapidamente e tinha consciência de que entrara na fase terminal da vida. É por isso, porque a decadência irreversível antecipada por uma cabeça é o mais horrível dos sofrimentos, que defendo o direito de cada um de nós dispor daquilo que pode ser considerado uma “dignidade de viver”.»

António Mega Ferreira, escritor.

«O Expresso pergunta-me por que defendo a eutanásia. E eu respondo, de forma simples e clara: porque quero continuar, como até agora, a poder decidir sobre todos os minutos da minha vida, mesmo quando ela se aproxime do fim e a única expectativa que posso alimentar é sofrer até ao último suspiro ou continuar vivo mas sem vida, estar mais morto que vivo.
Aprovada a morte assistida cada um poderá decidir como entender sobre a reta final da vida, ninguém fica obrigado a ela recorrer mas também ninguém estará impedido de o fazer
Defendo a morte assistida (eutanásia e suicídio medicamente assistido) porque defendo a minha liberdade e a de todos. Aprovada a morte assistida cada um poderá decidir como entender sobre a reta final da vida, ninguém fica obrigado a ela recorrer mas também ninguém estará impedido de o fazer.
Sim, há uma questão ética nesta discussão. A escolha é entre uma ética da liberdade – uma ética da tolerância - e uma ética da imposição. Eu não quero impor a eutanásia seja a quem for, mas não aceito que me imponham opções que não são as minhas. Muito menos quando a consequência dessa imposição é sofrer mais ou reduzir-me a um estado vegetativo.»

João Semedo, médico e ex-deputado do Bloco de Esquerda

«A Igreja que quero forte é a maioritária no meu país: a Igreja Católica Apostólica Romana. Sou ateu, não acredito na existência de um Deus (ou vários), acredito na autonomia do homem, na natureza, no conhecimento científico e que o que sobra quando morremos é pó e a memória que os outros guardarão de nós. Mas, mesmo sabendo que Deus não existe, sei também outra coisa: a Igreja existe. E, mesmo assente naquilo que eu simpaticamente posso admitir como um grande equívoco, é melhor que continue a existir - e forte. Forte para os nus e para os esfaimados do mundo, para os excluídos e para os que não têm outro remédio. Mal ou bem, para estes. Caridadezinha ou humanismo grande - que salve pessoas, é o que interessa.
Vêm aí decisões sobre a despenalização da eutanásia, no Parlamento. Afirmo-me desde já favorável. Admito o direito de alguém em dor e sofrimento, lúcida e plenamente informado, por decisão rigorosamente própria, perante uma doença clinicamente incurável, ter direito a que alguém de forma voluntária e medicamente competente lhe ponha fim à vida. Acontece que não tenho certezas sobre isto - e duvido que alguém verdadeiramente possa ter. Há nas circunstâncias de alguém que pede morte assistida mil e uma razões que me podem levar a ter dúvidas. E nenhuma lei as poderá prever todas, para lá de qualquer dúvida.»

João Pedro Henriques, jornalista

«No dia em que a minha vida for exclusivamente uma visão de caixas de comprimidos, sem trabalho, sem capacidade de leitura, de apreciar música, de sair à rua, pois não quero cá estar. Podemos concordar que discordamos, mas a minha morte é um assunto meu.»

Patrícia Reis, escritora

«Nós ouvimos falar de eutanásia e não nos podemos esquecer que a palavra vem do grego, significa "boa morte". Defendo que a vida compreende inevitavelmente a morte. Assim sendo, todos nós temos o direito de dispor da forma como queremos terminá-la. E devemos ter esse direito.
Penso que a sociedade já interiorizou que as pessoas não devem ter uma má morte. Quantas vezes nós ouvimos dizer, mesmo de quem tem um ponto de vista religioso: "Deus o leve." Isto quer dizer o quê? Ponham termo a este sofrimento. Com toda a franqueza, penso que esse sentimento já está interiorizado socialmente. As pessoas não gostam de ver sofrer familiares, nem terceiros.»

Paula Teixeira da Cruz, deputada, ex-ministra da Justiça.

«Sou a favor da eutanásia e subscrevi o recente manifesto Direito a Morrer com Dignidade. Não o fiz propriamente por achar que há um direito a morrer ou por qualquer razão jurídica. Não o fiz por considerar que a morte sem recurso à eutanásia e após grande sofrimento não possa ser digna. Claro que pode. E claro que se pode defender que a disposição da nossa Constituição que determina que “a vida humana é inviolável” não permite a legalização da eutanásia. Como, de resto, se afirmou relativamente à legalização da interrupção voluntária da gravidez. Mas são meras construções jurídicas e a questão de fundo não me parece ser jurídica.
É uma questão de concreta humanidade e amor ao próximo. Aceitar a legalização da eutanásia exige-nos a capacidade de aceitar que o “outro em sofrimento” não queira viver um pesadelo existencial sem outra saída que não seja a morte e possa evitar esse pesadelo e pôr termo à vida de uma forma não clandestina e angustiada mas antes, tanto quanto possível, tranquila e em paz. É também a possibilidade de alguém a quem amamos não ter de sofrer absurdamente.»

Francisco Teixeira da Mota, advogado

«Dois velhos a viverem há cinquenta anos numas águas furtadas da Avenida Marginal, frente ao Tejo: ele reformado da construção naval, sentado à cabeceira da mulher que esperava a morte que não vinha, e a olhar os navios que entravam e saíam da barra; a estudar os voos das gaivotas; a confirmar hora após hora os comboios que passavam entre ele o rio por essas praias além; a pensar mundos perdidos para lá dos nevoeiros. E vencido, impotente, porque a mulher há tantos anos, minada por metástases até aos ossos gritava, dormia e respirava dores, implorando a Deus que a levasse, depressa, Senhor, depressa para a sua santíssima presença.
Uma manhã, ao despertar, o velho viu-a por instantes bela e serena como nos seus tempos de amor. E chorou de mansinho e também ele desejou morrer.
Depois sentiu as dores a aproximarem-se de novo, e a escorrer lágrimas de desespero, de cansaço, de saudade, abraçou-se à mulher amada, envolveu-se nela e no seu sofrimento e cobriu-lhe o corpo de facadas.
Suicidou-se atropelado por um comboio, mesmo em frente da janela onde costumava ver passar os navios.»

José Cardoso Pires

«O pior na doença, mais do que o sofrimento, é a desgraça de ter todos os momentos na consciência a humilhação das fraquezas do corpo. É sentir cada órgão a recusar a função, cumprir de má vontade o acto de viver. É suportar a tirania dos sentidos e nada poder contra a degradação e o empobrecimento de ser seu escravo. Viver é estar inocente de si próprio. Como na santidade, que tem de se ignorar, também nenhuma parte de nós deve saber que existe.
(…)
Não sei como hei-de resistir.
- A resistir… - responde-me uma teimosa voz interior.
E deixo-me ficar estoicamente no meu sofrimento, fiel à íntima certeza em que sempre vivi de que a suprema fortuna é saber corajosamente merecer a vida, e a suprema desgraça é coverdemente não a saber perder.»

Miguel Torga, Diãrio Vol. XVI

«Mas a certa altura fala-me da nossa irmã. O espírito apaga-se-lhe precipitadamente e tudo aquilo que a ligava ao mundo se lhe confunde num caos. A filha, marido, todas as pessoas de família lhe são figuras estranhas como toda a perspectiva do tempo se lhe perdeu. Tento situar-me em face da minha irmã e não sei. Quando voltar a vê-la decerto me mão conhece. Todo o passado da nossa infância comum vem ter comigo e de súbito ele está morto nela a uma distância de vertigem. Que significa ela estar viva e real na realidade que é a sua? É morta minha irmã. No fundo de mim o sei.»

segunda-feira, 28 de maio de 2018

A BEBER GIN QUE NEM UM DROMEDÁRIO QUE GOSTE DE GIN


Carta, datada de Carcavelos 11 de Março de 1974, para Isabel:

Tenho andado com um cansaço enorme, a beber gin que nem um dromedário que goste de gin, a ter que ir às compras e outras chatices. Portanto, recuso tudo o mais: o almoço com o pessoal da “República” no sábado, o jantar com o Lopes-Graça no domingo, etc.
Basta de chatices obrigatórias. Aliás, como sabes, cada vez gosto menos de ver pessoas cheia de dentes e a falar às pampas. Basta de pessoas…
O reumatismo também me tem irritado razoavelmente, quase mais que a minha mãe e a minha tia. O costume, sabe-se.
Segue a entrevista da V.M. Tudo uma trapalhada, como verá. Cortes à farta (onde há reticências, foi corte). Nada daquilo foi revisto por mim: está cheio de enganos, gralhas e confusões. Cheguei a ficar envergonhado. Paciência… Não se vai repetir. Aliás, já retirei as poesias que estavam na “Ed Plátano” e os contos de F.C. que estavam na Ed. República”. Basta de escrever e dizer asneiras.
O “Vodka”, que depois de me ter posto um olho negro há uns dias, me pôs a mão em sangue há uns momentos, recomenda-se e dá três pulos dedicados à tua filharada. ´É uma simpatia, não haja dúvidas… raios parta o cão!

OLHAR AS CAPAS


Marketing

Fernando Namora
Capa: José Cãndido
Livraria Bertrand, Lisboa, Outubro de 1978

Marketing

 Aqui a meu lado   o bom cidadão
 escolheu Sagres
 que é tudo   tudo cerveja
 a pausa que refresca
 a longa pausa de um longo cigarro King Size.
                                       atenção ao marketing.

Eu não gosto de cerveja
mas tenho de gostar que os outros gostem de cerveja
sobretudo da Sagres
para não contrariar os fabricantes de cerveja.
                                              atenção ao marketing.
Ninguém contraria os fabricantes de cerveja
ninguém contraria os fabricantes do Opel e da Super Silver
nem os fabricantes de alcatifas para panaceias
nem as panaceias nem os códigos e os édredons macios
nem as mensagens de natal dos estadistas
nem os negociantes de armas da Suíça
nem o homem de capa negra que virou as costas ao Palmolive.
Está tudo perfeito e deito-me no conforto de um Lusospuma
a ver as procissões passar   mesmo sem anjos   mesmo sem anjos
que são agora selvagens e voam numa Harley.

Deito-me e obedeço aos fabricantes do Clarim
que é uma alta onda ou uma onda alta
sem esquecer as fitas do John Waine e a chama viva do Butagás
e se calhar sentir fome terei toda a frescura serrana
numa fatia de pão.
                                                                        atenção ao marketing.
Vitonizo-me   desodorizo-me   atravesso as ruas nas passagens dos peões
louvo quem me dizem para louvar e desconfio dos negros americanos
e dos blousons noirs   que não usam Lux
e não compram um frigorífico a prestações
e com o meu escudo invisível
protejo-me dos vírus subversivos
sou um bom cidadão   sou um bom cidadão
obedeço ao marketing   à General Motors e ao Pentágono.
Dantes   tinha problemas   era o odor corporal
e eu não o sabia   até me higienizar seis vezes ao dia com o sabonete das estrelas 
 e as paradas marciais e os 5-3 do Eusébio à Coreia
e o talco Cadum    que ama demoradamente roucamente tepidamente
os corpos que merecem ser amados...

Obedeço ao marketing   não contrario.
Ninguém contraria os fabricantes das ideias e os fabricantes do Fula
que é o da cor do sol
ninguém pisa os riscos brancos do tráfego
nem chama os bombeiros sem concorrer ao sorteio
concorro   concorro   e vejo nos sinaleiros o pai natal vestido de Scotchgard
ninguém sai do emprego antes de assinar o ponto a horas fixas
e gastar o dinheiro da semana sábado à tarde
no Dardo   que é tudo a prestações e é mesmo em frente da Música no Coração.
Fazendo Portugal mais alegre com o folclore da TV e a tinta Robbialac
não contrario   obedeço   obedeço e meto os meninos na cama
quando me dizem vamos dormir.
                                     atenção ao marketing.

Sagres é uma boa cerveja
e eu acabarei por gostar da Sagres
como gosto do Rexina.
Sagres é a pausa que refresca e tem vitaminas
todas as bebidas da televisão têm vitaminas
mesmo as do programa literário que é detergente
e eu uso-as e sou um cidadão perfeito
e até já consigo adormecer com hipnóticos
depois de tomar o Tofa descafeinado
e no Verão visto calções de banho de fibras sintéticas
para me banhar na Torralta
cidadão perfeito perfeitamente bronzeado com o Ambre Solaire.

Também vou arear as caçarolas e os nervos e os miolos
com um pó azul de que não me lembra o nome
não me lembra mas a culpa já não é minha
porque na mesma noite
massajado com Aqua Velva
fiz a barba com Gillette, e Schick e Nacet
e fui não sei aonde sempre com a mesma lâmina
e oito dias depois (eu era actor ou toureiro?)
a lâmina ainda me escanhoou mais uma barba
antes de eu descer no aeroporto
onde me esperava um agente do marketing.
Os produtores viram-me à descida do avião
primeiro julgaram que era o filho da Sophia Loren
ou o Onassis   mas era eu
e gostaram da minha barba bem feita.
(Da barba bem feita
ou do casaco Dralon que não se amarrotara
durante a viagem da Polinésia para Lisboa?)
Confesso que já não me lembra   mas a culpa não é minha
pois na mesma noite
fui o homem de não sei quê que marca o rumo
por vestir regras ou camisas ou calças que não enrugam
e fartei-me de assistir a discursos e a inaugurações
e fartei-me de comer chocolates Regina e pescada congelada
e de lavar a roupa com Ajax e com o Rino
e de me banhar com Omo ou seja uma onda de brancura
e fiz-me mecânico de automóveis
só para que o cavaleiro da armadura branca
me tocasse com a sua lança mágica
e me pusesse branco branco branco
três vezes branco como as páginas do Reader’s
de cérebro irrepreensivelmente lexivizado
pelos locutores da televisão pela oratória dos políticos
e passado a ferro com um ferro eléctrico automático
que talvez fosse – ou não? – uma enceradora Philips.
Tudo coisas admiráveis e desesperadamente necessárias
que eu devo ao marketing
e me são cozinhadas num abrir e fechar de olhos
nas palavras de pressão
de todo o bom cidadão.
E no intervalo bebi café puro o do gostinho especial
Sical Sical que é um luxo verdadeiro
Por pouco dinheiro.
Vitonizado   esterilizado   comprando e concorrendo
esqueci-me de amar   do amor   das árvores e do rio
esqueci-me de mim   tão entretido estava a admirar a Lisnave
esqueci-me do rio e dos barcos
e da saudade de pedra do Fernando Pessoa
e esqueci-me de sonhar que era marinheiro.

Concorra   concorra   foi isso que não reparei
que uma rapariga cortou as veias
talves fosse com uma Diplomatic
que tem o fio e o silvo de uma espada a degolar avestruzes.
No programa só havia bombeiros
nem uma rapariga a cortar as veias (não era a Caprília)
nem o rio nem o amor nem a raiva da Venezuela.
Se mágoa sentia era a de ter esquecido
dar murros no espião da Missão Impossível
(atenção ao marketing)
e já não saí de casa para ver o rio
só pelo gosto de me aquecer com um Ignis.
E na mesma noite noite boa noite branca
fumei Estoril   Valetes   Kayakes e bebi Compal
depois da Salus e da Schweppes
fumei quilómetros e quilómetros de prazer
quilómetros e mais quilómetros – há um Ford no meu futuro –
mais facturas mais fomes mais prazer
e agora já não sei qual dos cigarros com filtro
me soube melhor.
Foram todos foram todos de certeza
pois se me dizem que preciso de Omo
do Ajax   do Estoril   do Dralon
do esquentador e das alcatifas sem nódoas
não me preocupo não te preocupes
o Meraklon não preocupa ninguém
mando para o diabo o amor e o rio e a rapariga que cortou as veias
não me preocupo não me preocupo
digo pois pois ao Jota Pimenta e ao Escort
e hei-de virar-me do avesso para os possuir.
Os corpos que merecem ser amados merecem o talco Cadum.
Numa onda de brancura obedeço ao marketing. Sou um bom cidadão.

E na mesma noite
vi umas bombas que caíam muito ao longe
numa lonjura mais longe que a Lua
onde as pessoas podiam estar quietas a fumar Marialvas
e a lavarem-se com Rino que lava lava lava
lava três vezes mais lava ou mata que se farta
e me ajuda a ser bom cidadão.
                                           atenção ao marketing.
Vi uns homens a inaugurarem estátuas
e vi fardas e paradas e conferências
e crianças a sorrir
para os homens sorridentes que inauguravam estátuas
e vi homens que falavam e pensavam por mim
a escolherem por mim o bom e o mau
de modo a que eu não possa ser tentado
a confundir o mau com o bom ou vice-versa ou vice-versa.
Deitado no conforto de um Lusospuma
vi os porcalhões dos hippies nas ruas de Estocolmo
bem longe   nas ruas de Estocolmo
mesmo a pedirem uns safanões
dos homens que acariciam crianças
e têm todas as verdades na mão
só para que eu seja um bom cidadão.
É isto: marco o rumo. As minhas cuecas marcam o rumo.
Preciso e gosto de uma data de coisas
e só agora o sei.
Menos da Sagres. Mas acabarei por gostar.
Ninguém contraria o marketing por muito tempo.
Ninguém contraria os fabricantes de bem fazer
o bom cidadão.
E tudo graças ao marketing.

domingo, 27 de maio de 2018

POSTAIS SEM SELO


Todas as ilhas são sementes de agonia.

Alexandre Pinheiro Torres em A Flor Evaporada

OLHAR AS CAPAS


Morreram pela Pátria

Mikail Cholokov
Versão: Jaime Brasil
Capa: João da Câmara Leme
Colecção Contemporânea nº 49
Portugália Editora, Lisboa, Outubro de 1963

- Não vás supor, Nicolau, que foi sempre assim desde o nosso casamento. Não há mais de dois aos que minha mulher ficou desarranjada por causa da literatura.
«Vivemos oito anos como outro casal qualquer. Anastácia e eu fazíamos equipa numa ceifadora, sem nunca ela ter desmaios nem fazer fitas. Depois quando lhe deu para a literatura, foi o começo do fim. Tornou-se tão sábia que não pode falar como toda a gente: precisa de maiúsculas para tudo. Passa s noites a ler e de dia parece uma ovelha com ronha: suspira e tudo lhe cai das mãos. Uma vez, imagina, aparece-me a suspirar, mas então a ponto de cortara o coração, e explica-me com ares amaneirados: «Meu pobre Ivan, pensa que nunca me fizeste uma declaração de amor! Nunca ouvi da tua boca palavras ternas como as que escrevem na literatura!». Eu começava a ficar a estar danado. Ela leu e tresleu, pensava, e respondi-lhe: «Anastácia, não estarás um tanto chalada? Há dez anos que estamos juntos. Já nos nasceram três garotos. De que teria o ar, santo Deus, se me pusesse a recitar uma declaração de amor? Poderia dar as voltas que desse à língua; mas não sairia nada. Palavras ternas, até no tempo em que era jovem, nunca as disse; explicava-me por gestos; não seria nesta altura que ia começar. Não sou tão tapado como tu imaginas. Em lugar de leres todos esses calhamaços idiotas, farias melhor se te ocupasses dos pequenos.» Os garotos, devo dizê-lo, crescem ao deus-dará, e a casa transformou-se numa espécie de bazar.

EU TE SAÚDO


Eu, servo do teu nome, te saúdo
desde o nascer do sol.
Eu te saúdo, a ti
que te debruças para ver  o céu
e a Terra.
Tu que levas os pobres a sentarem-se
entre os grandes do povo.
Tu que defendes a mulher estéril
como se fosse as mãe de muitos filhos.

Desde o nascer do sol
eu, servo do teu nome, te saúdo.

Mário Castrim em Do Livro dos Salmos

PROCISSÃO


Lagarta subindo devagar a encosta,
aqui da planície oiço o teu canto,
pressinto a fadiga da tua gente
- velho sustento de um corpo mole –
E o cheiro a sebo que te ilumina.

Enquanto espero sair desta prisão
mando o meu grito frouxo de crisálida
contra a tradição, a fome e a sede
comandando a esperança que não tens.

Desce lagarta!
E após o descanso de amanhã
subirás
voando as cores das tuas asas.

Marta Cristina de Araújo em Poesia Portuguesa do Pós Guerra

sábado, 26 de maio de 2018

POSTAIS SEM SELO


Quando vou para a cama à noite, sorrio e penso: vivi outro dia.

Philip Roth

O TEMPO PASSA


E outras iniciativas, publicações, antologias, a criação do PEN Clube português - possibilidade de encontros à luz do dia -, palestras, recitais on­de houvesse um recinto praticável. Maior ou mais pequeno. Estou vendo, lá para Alcântara, uma ga­ragem da CUF, que era ou me parece hoje que era imensa, cheia de operários erguendo-se de chofre e aplaudindo poesias, entre as quais a minha «Elegia ao companheiro morto», declamada, com a alma toda, pela Maria Barroso. Saia preta, blusa muito branca, uma imagem do povo inconformado. O tempo passa.
 «Convosco ou não, meu galope é em frente./ /Pertenço a outro mundo, a outra raça, a outra gente.// E andar! E andar!» Versos meus, de 42. Tendo ainda, como vêem, uma pontinha de in­fluência brasileira.
 Falei de amigos. Haverá melhor na vida do que tê-los? Muitos? Uns partem de vez (eram amigos a prazo), outros andaram por longe, regressaram, convertidos à ideia de que não há como beber um copo juntos. Nem que seja de café. Só na desgraça se conhecem bem: sabedoria popular. Fi-los em to­da a parte. No sanatório, por exemplo.
 No sanatório, onde, num daqueles dias infindá­veis, recebi, o mais inesperadamente que é possí­vel, uma carta do Joaquim Namorado a propor-me a inclusão do meu livro Poemas, que ele sabia pronto há muito, na colecção a que ele e outros tinham metido ombros e ia chamar-se «Novo Can­cioneiro». Êxito imprevisto. O volume, com uma gravura na capa do Manuel Ribeiro de Pavia, não chegou às livrarias. Vendeu-se rapidamente, de mão em mão, houve quem o passasse à máquina. Foi o segundo volume da colecção, que começara, com Terra, do Fernando Namora, também em 41.
 Fui e sou amigo de um bom punhado de gente. E, todavia (os absurdos da vida!), talvez ninguém tenha cortado tanto relações como eu. Chego a perguntar-me, descontente comigo, se chegará para o Guinness...
 Foi-me sempre difícil suportar, sem corte radi­cal, a mentira, a prepotência, a traiçãozeca. Ado­lescência retardada. Como se um corte de relações pudesse excluir da vida essas misérias pegajosas. Arrependido? Em grande parte dos casos, realmen­te não. Mal que não se tem em frente do nariz sente-se menos, não cheira. Noutros, hesito. No fundo, as pessoas mudam, eu próprio terei mudado alguma coisa. Talvez hoje pudesse conviver sem custo, bem pelo contrário, com gente a que não fa­lo por antigos excessos de rigor. Certas arranhade­las, de que simulei não dar-me conta na altura própria (necessidades de estratégia de outra or­dem), comprovam-me que sim.
 Porque ofensa, ofensa mesmo, e pública, só me lembro de três casos, biliosa de mais num, desrazoada de mais nos outros, para que fale aqui neles. Merecem só silêncio. Além de que até isso o tem­po vai gastando um pouco.

Mário Dionísio em Autobiografia

Legenda: Maria Barroso, fotografia tirada daqui.

FORMA DE INOCÊNCIA


Hei-de morrer inocente
exactamente
como nasci.
Sem nunca ter descoberto
o que há de falso ou de certo
no que vi.

Entre mim e a Evidência
paira uma névoa cinzenta.
Uma forma de inocência,
que apoquenta.

Mais que apoquenta:
enregela
como um gume
vertical.
E uma espécie de ciúme
de não poder ver igual.

António Gedeão em Poesias Completas

Legenda: António Gedeão

sexta-feira, 25 de maio de 2018

POSTAIS SEM SELO


Passei por cá e diverti-me.

Pedro Rolo Duarte

A SOLIDÃO VAI-ME LEVAR AO SUICÍDIO


São muitas as cartas em que António José Saraiva diz a Óscar Lopes que ele teima em não lhe escrever:

Este é o início da carta datada de Outubro de 1964:

Passa todas as marcas o não me escreveres. É escandaloso. Que fizeste nas férias? Não tens um pensamento para um amigo que está só em Paris? Não és um homem, és um metido, uma tabuada, uma máquina electrónica, ou seja o que for.

E a carta termina assim:

Outro elemento para considerares: sinto-me só, sem raízes, desesperadamente só e sem raízes, incapacidade de trabalhar, vazio de crer humano, em fase de considear muito seriamente a necessidade moral do suicídio.
E tu aí muito sossegado sem me escreveres!
Vê se arranjas um momento, homem sem coração!

Pelo meio da carta, Saraiva conta:

Eu tenho passado as passa do Algarve. Ultimamente fui à Dinamarca (23 horas de viagem), para ver uma mulher. Uma descoberta sensacional; uma tragédia que durou 5 dias em paris, 3 dias em Copenhague, com um intervalo de um mês de cartas de amor (média 1 carta e ¼ por dia), telegramas e telefonemas a 3000 francos cada. Uma ruína. Conclusão: perdoa-me e esquece-me. Era (é) uma portuguesa! Nunca encontrei nenhuma pessoa com quem tivesse uma tão completa intimidade espiritual. Mas nem só de espírito vive a mulher! E eu sou um intelectual cheio de interferências e excepcionalmente inibido. A decisão tinha de ser tomada em 3 dias. E foi (ao menos provisoriamente).
(…)
Agora estou outra vez só. E a solidão é simplesmente IMPOSSÍVEL para mim. Vai-me levar ao suicídio. Mas eu sou cada vez mais esquisisto com as comidas e com as pessoas. Falta-me a apetência, e de vez em quando tenho furiosos ataques de fome. Vou-me habituando anão comer como o burro do conto. No dia em que já estiver completamente habituado – truca – desapareço!