Fabriquei eu todo o vidro preciso nas janelas de uma casa à minha
medida. Uma parte-de-casa, digo, algures, ou de alguém. Importava ficar-se ao
abrigo de ventos de granizo, ter uma referência nascida do empreendimento
destas mãos. O que me imiscuiu em tantas e perdulárias moradas. Logo em muito
miúdo habituara-me a pequenos domínios como o cantinho de uma marquise
solarega, clara, onde o vão entre quatro pés do tanque em cimento me bastava
para tecer cobiçosas intrigas. Jamais me atrevia a espiar o território adulto,
verdadeiro campo de treino para a desconfiança e o desatino. Era como escolher
encosta íngreme da ravina o mergulho directo num casulo.
Vivi, pois, durante uma época, ainda que muito brevemente, numa casa
cujas janelas me inclinavam para as traseiras de um poeta: Raul de Carvalho.
Cantava; ouvia-se-lo cantarolar sobre quintais e saguões, à luz de ouro no
Outono lisboeta. E ia pondo a sua roupa lavada no estendal, na alegria doce de
quem vive, não sozinho: na companhia de versos em louvor dos nadas do
dia-a-dia. E o seu vidro saía cortado à medida da sua casa. Algo de que nunca
eu me cansei, repetindo, repetindo iguais gestos, decerto, na minha própria
construção. Ler, não chega; há que ver e ouvir pela abertura do coração,
comovidamente.
Paulo da Costa
Domingos em Narrativa
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