Creio ter contribuído alguma coisa para dotar o neo-realismo de uma
nova dimensão, outra linguagem, na poesia, na ficção, na teoria (a ordem é
arbitrária), como os pesquisadores, se os houver e forem capazes de, talvez
confirmem. Que não esqueçam as datas por favor.
O problema principal, para mim, seria nunca escrever sobre
camponeses que só se tinham visto da janela do comboio, de acordo com o que o
Namora dissera na nota introdutória do seu livro do «Novo Cancioneiro»: «Este
é um livro da Terra: da Terra que não foi vista da janela do comboio». Nunca
escrever, portanto, sobre camponeses moldados nos de romances de alheias
literaturas, mas só sobre gente e meios que o autor directamente conhecesse. E
tão de dentro quanto possível. Numa entrevista posterior (a tal dada a O Primeiro de Janeiro), tornaria isto bem claro. Era muito natural
que, na relação camponeses/operários, os camponeses fossem os preferidos e bem
se entenderá porquê. A censura tinha os olhos muito mais abertos para o que se
referisse àqueles. Os problemas que os operários suscitavam tornavam-nos mais
difíceis (perigosos) de tratar. A explosão no campo (a velha pobreza do
camponês) era um tema sabido e de algum modo consentido, tinha uma longa
tradição que ajudava a ocultar os novos propósitos com que o abordavam,
enquanto a exploração na cidade, sobretudo nas fábricas, era inevitavelmente
explosiva.
Mas não havia só camponeses e operários. Havia a sociedade
inteira: tudo dependia do «ponto de vista» (ver outra vez a citada entrevista).
Havia, nomeadamente, a pequena-burguesia a que todos pertencíamos, que
conhecíamos de dentro e que tinha (teria), quanto a mim, um papel importante na
situação política portuguesa. Não inventada, mas observada e pessoalmente
vivida, a pequena-burguesia permitiria trazer a nossa ficção para a cidade. E
foi o que fiz em quase todo O
Dia Cinzento. Por isso terá sido
tão mal compreendido quando apareceu. Mas a actividade clandestina lá está, e
na cidade. Bastou o pequeno truque de dar nomes estrangeiros às personagens (na
1ª edição), simulando, para a censura, tratar-se duma história da Resistência
francesa. As pessoas, contudo, as ruas, os recintos descritos no «Nevoeiro na
cidade» são de Lisboa. A casa da personagem principal é na Calçada dos
Cavaleiros, o café é em frente da estação do Rossio. Aí os via, escrevendo.
Mário Dionísio em Autobiografia
Legenda; desenho de
Lima de Freitas
Sem comentários:
Enviar um comentário