Por caminhos desviados, apalpando o terreno, tenteando a ver se havia
minas escondidas ou armadilhas, Ricardo Reis deixou-se ir na corrente porque
não se sentia capaz de propor uma alternativa à conversa, e antes da sobremesa
já tinha declarado não acreditar em democracias e aborrecer de morte o socialismo,
Está com a sua gente, disse risonho o doutor Sampaio, a Marcenda não parecia
interessar muito a conversa, por alguma razão pôs a mão esquerda no regaço, se
resplendor havia, apagou-se. A nós o que nos vale, meu caro doutor Reis, neste
cantinho da Europa, é termos um homem de alto pensamento e firme autoridade à
frente do governo e do país, estas palavras disse-as o doutor Sampaio, e
continuou logo, Não há comparação possível entre o Portugal que deixou ao
partir para o Rio de Janeiro, e o Portugal que veio encontrar agora, bem sei
que voltou há pouco tempo, mas, se tem andado por aí, a olhar com olhos de ver,
é impossível que não se tenha apercebido das grandes transformações, o aumento
da riqueza nacional, a disciplina, a doutrina coerente e patriótica, o respeito
das outras nações pela pátria lusitana, sua gesta, sua secular história e seu
império, Não tenho visto muito, respondeu Ricardo Reis, mas estou a par do que
os jornais dizem, Ah, claro, os jornais, devem ser lidos, mas não chega, é
preciso ver com os próprios olhos, as estradas, os portos, as escolas, as obras
públicas em geral, e a disciplina, meu caro doutor, o sossego das ruas e dos
espíritos, uma nação inteira entregue ao trabalho sob a chefia de um grande
estadista, verdadeiramente uma mão de ferro calçada com uma luva de veludo, que
era do que andávamos a precisar, Magnífica metáfora, essa, Tenho pena de a não
ter inventado eu, ficou-me na lembrança, imagine, é bem verdade que uma imagem
pode valer por cem discursos, foi aqui há dois ou três anos, na primeira página
do Sempre Fixe, ou seria dos Ridículos, lá estava, uma mão de ferro calçada com
uma luva de veludo, e tão excelente era o desenho, que, olhando de perto, tanto
se via o veludo como se via o ferro, Um jornal humorístico, A verdade, caro
doutor, não escolhe c lugar, Resta saber se o lugar escolhe sempre a verdade. O
doutor Sampaio franziu levemente a testa, a contradição perturbou-o um pouco,
mas levou-a à conta de pensamento demasiado profundo, porventura até
subtilmente conciliador, para ser debatido ali, entre o vinho de Colares e o
queijo. Marcenda mordiscava bocadinhos de casca, distraída, alteou a voz para
dizer que não queria doce nem café, depois começou uma frase que, concluída,
talvez pudesse ter feita derivar a conversa para o Tá Mar, mas o pai
prosseguia, dava um conselho, Não é que se trate de um bom livro, desses que
têm lugar na literatura, mas é. de certeza um livro útil, de leitura fácil, e
que pode abrir os olhos a muita gente, Que livro é esse, O título é
Conspiração, escreveu-o um jornalista patriota, nacionalista, um Tomé Vieira,
não sei se já ouviu falar, Não, nunca ouvi, vivendo lá tão longe, O livro saiu
há poucos dias, leia-o, leia-o, e depois me dirá, Não deixarei de o ler, se mo
aconselha, já Ricardo Reis se arrependia de se ter declarado anti-socialista,
antidemocrata, antibolchevista por acréscimo, não porque não fosse isto tudo,
ponto por ponto, mas porque se sentia cansado de nacionalismo tão 86
hiperbólico, talvez mais cansado ainda por não ter podido falar com Marcenda,
muitas vezes acontece, mais fatiga o
que não se faz, repousar é tê-lo feito.
José Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis
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