terça-feira, 29 de maio de 2018

SE NÃO PODES AJUDAR-ME A VIVER, AJUDA-ME A MORRER


A discussão sobre a eutanásia é uma discussão dificílima, um emaranhado de melindres, cada cabeça sua sentença…ou se está a favor… ou se está contra…

O resto é pano de fundo onde se torna difícil navegar… mas navegar é preciso!

Eutanásia significa morte tranquila, ajudar as pessoas em agonia a sair deste mundo com serenidade, não é a escolha entre a vida e a morte.

É uma escolha entre duas maneiras de morrer.

Com ou sem dignidade.

O médico e escritor Fernando Namora morreu em Janeiro de 1989.

Até morrer, sofreu horrivelmente.

O Dr. José Luciano de Carvalho que, durante anos e anos, assistiu a nossa família, quando num dia longínquo lhe perguntei a sua opinião sobre a eutanásia, não se mostrou favorável e contou-me que, durante a doença, ao visitar o seu amigo e colega Fernando Namora, e este lhe pedira, encarecidamente, que o ajudasse a morrer.

- Fernando, sabes tão bem como eu, que não te posso ajudar: fizemos um juramento…


Acresce a este juramento profissional, a posição da Igreja.

Tenho um vasto dossier, li livros, vi filmes sobre o tema, sei-o fracturante, a crispação que o tema provoca, por tudo isto, também por instinto, sou a favor da eutanásia.

Hoje, o tema da morte assistida, quatro coprojectos do PS, Bloco de Esquerda, Partido Ecologista Os Verdes e PAN, será discutido na Assembleia da República.

O PCP e o CDS votarão contra, os restantes partidos deram liberdade de voto aos seus deputados.

O desfecho desta votação aponta para um «não» como resultado. Contas feitas pelos jornalistas, mostram que 116 deputados deverão chumbar a legalização da eutanásia contra 114 deputados que votarão a favor, mas estes números não são um dado adquirido.

Li a Posição política do Partido Comunista sobre a provocação da morte assistida, inclino-me a perceber o que nela se pretende, mas não concordo com os argumentos expostos.

Acresce que essa múmia política que dá pelo nome de Cavaco Silva, há longo tempo remetido ao silêncio, disse à Rádio Renascença que é contra a legalização da eutanásia:

 «Estando em causa a defesa do primado da vida humana, entendi que devia fazer uso das duas armas que me restam como cidadão: a minha voz, não ficando calado, e o meu direito de voto na escolha dos deputados nas próximas eleições legislativas.»

No mesmo sentido se pronunciou o ex-primeiro ministro Pedro Passos Coelho e, segundo o Expresso, Marcelo Rebelo de Sousa afirmou que não tem posição tomada em relação aos diplomas sobre a eutanásia que estão em discussão, mas deverá vetar a lei.

Seguem-se declarações de diversas personalidades, relembro uma história do quotidiano contada por José Cardoso Pires, incursões sobre os Diários de Miguel Torga e Vergílio Ferreira e mais à frente, em Relacionados, coloco três «velhos» recortes:

«Tenho idade e já sofri o suficiente para saber que a vida, sendo embora um bem finito, só vale a pena ser vivida em plenitude ou com dose razoável de humanidade. No ano em que se deixou morrer, Teixeira de Pascoaes disse à família uma coisa luminosa: “Não me tirem a dignidade de viver”. Tinha 75 anos, extinguia-se rapidamente e tinha consciência de que entrara na fase terminal da vida. É por isso, porque a decadência irreversível antecipada por uma cabeça é o mais horrível dos sofrimentos, que defendo o direito de cada um de nós dispor daquilo que pode ser considerado uma “dignidade de viver”.»

António Mega Ferreira, escritor.

«O Expresso pergunta-me por que defendo a eutanásia. E eu respondo, de forma simples e clara: porque quero continuar, como até agora, a poder decidir sobre todos os minutos da minha vida, mesmo quando ela se aproxime do fim e a única expectativa que posso alimentar é sofrer até ao último suspiro ou continuar vivo mas sem vida, estar mais morto que vivo.
Aprovada a morte assistida cada um poderá decidir como entender sobre a reta final da vida, ninguém fica obrigado a ela recorrer mas também ninguém estará impedido de o fazer
Defendo a morte assistida (eutanásia e suicídio medicamente assistido) porque defendo a minha liberdade e a de todos. Aprovada a morte assistida cada um poderá decidir como entender sobre a reta final da vida, ninguém fica obrigado a ela recorrer mas também ninguém estará impedido de o fazer.
Sim, há uma questão ética nesta discussão. A escolha é entre uma ética da liberdade – uma ética da tolerância - e uma ética da imposição. Eu não quero impor a eutanásia seja a quem for, mas não aceito que me imponham opções que não são as minhas. Muito menos quando a consequência dessa imposição é sofrer mais ou reduzir-me a um estado vegetativo.»

João Semedo, médico e ex-deputado do Bloco de Esquerda

«A Igreja que quero forte é a maioritária no meu país: a Igreja Católica Apostólica Romana. Sou ateu, não acredito na existência de um Deus (ou vários), acredito na autonomia do homem, na natureza, no conhecimento científico e que o que sobra quando morremos é pó e a memória que os outros guardarão de nós. Mas, mesmo sabendo que Deus não existe, sei também outra coisa: a Igreja existe. E, mesmo assente naquilo que eu simpaticamente posso admitir como um grande equívoco, é melhor que continue a existir - e forte. Forte para os nus e para os esfaimados do mundo, para os excluídos e para os que não têm outro remédio. Mal ou bem, para estes. Caridadezinha ou humanismo grande - que salve pessoas, é o que interessa.
Vêm aí decisões sobre a despenalização da eutanásia, no Parlamento. Afirmo-me desde já favorável. Admito o direito de alguém em dor e sofrimento, lúcida e plenamente informado, por decisão rigorosamente própria, perante uma doença clinicamente incurável, ter direito a que alguém de forma voluntária e medicamente competente lhe ponha fim à vida. Acontece que não tenho certezas sobre isto - e duvido que alguém verdadeiramente possa ter. Há nas circunstâncias de alguém que pede morte assistida mil e uma razões que me podem levar a ter dúvidas. E nenhuma lei as poderá prever todas, para lá de qualquer dúvida.»

João Pedro Henriques, jornalista

«No dia em que a minha vida for exclusivamente uma visão de caixas de comprimidos, sem trabalho, sem capacidade de leitura, de apreciar música, de sair à rua, pois não quero cá estar. Podemos concordar que discordamos, mas a minha morte é um assunto meu.»

Patrícia Reis, escritora

«Nós ouvimos falar de eutanásia e não nos podemos esquecer que a palavra vem do grego, significa "boa morte". Defendo que a vida compreende inevitavelmente a morte. Assim sendo, todos nós temos o direito de dispor da forma como queremos terminá-la. E devemos ter esse direito.
Penso que a sociedade já interiorizou que as pessoas não devem ter uma má morte. Quantas vezes nós ouvimos dizer, mesmo de quem tem um ponto de vista religioso: "Deus o leve." Isto quer dizer o quê? Ponham termo a este sofrimento. Com toda a franqueza, penso que esse sentimento já está interiorizado socialmente. As pessoas não gostam de ver sofrer familiares, nem terceiros.»

Paula Teixeira da Cruz, deputada, ex-ministra da Justiça.

«Sou a favor da eutanásia e subscrevi o recente manifesto Direito a Morrer com Dignidade. Não o fiz propriamente por achar que há um direito a morrer ou por qualquer razão jurídica. Não o fiz por considerar que a morte sem recurso à eutanásia e após grande sofrimento não possa ser digna. Claro que pode. E claro que se pode defender que a disposição da nossa Constituição que determina que “a vida humana é inviolável” não permite a legalização da eutanásia. Como, de resto, se afirmou relativamente à legalização da interrupção voluntária da gravidez. Mas são meras construções jurídicas e a questão de fundo não me parece ser jurídica.
É uma questão de concreta humanidade e amor ao próximo. Aceitar a legalização da eutanásia exige-nos a capacidade de aceitar que o “outro em sofrimento” não queira viver um pesadelo existencial sem outra saída que não seja a morte e possa evitar esse pesadelo e pôr termo à vida de uma forma não clandestina e angustiada mas antes, tanto quanto possível, tranquila e em paz. É também a possibilidade de alguém a quem amamos não ter de sofrer absurdamente.»

Francisco Teixeira da Mota, advogado

«Dois velhos a viverem há cinquenta anos numas águas furtadas da Avenida Marginal, frente ao Tejo: ele reformado da construção naval, sentado à cabeceira da mulher que esperava a morte que não vinha, e a olhar os navios que entravam e saíam da barra; a estudar os voos das gaivotas; a confirmar hora após hora os comboios que passavam entre ele o rio por essas praias além; a pensar mundos perdidos para lá dos nevoeiros. E vencido, impotente, porque a mulher há tantos anos, minada por metástases até aos ossos gritava, dormia e respirava dores, implorando a Deus que a levasse, depressa, Senhor, depressa para a sua santíssima presença.
Uma manhã, ao despertar, o velho viu-a por instantes bela e serena como nos seus tempos de amor. E chorou de mansinho e também ele desejou morrer.
Depois sentiu as dores a aproximarem-se de novo, e a escorrer lágrimas de desespero, de cansaço, de saudade, abraçou-se à mulher amada, envolveu-se nela e no seu sofrimento e cobriu-lhe o corpo de facadas.
Suicidou-se atropelado por um comboio, mesmo em frente da janela onde costumava ver passar os navios.»

José Cardoso Pires

«O pior na doença, mais do que o sofrimento, é a desgraça de ter todos os momentos na consciência a humilhação das fraquezas do corpo. É sentir cada órgão a recusar a função, cumprir de má vontade o acto de viver. É suportar a tirania dos sentidos e nada poder contra a degradação e o empobrecimento de ser seu escravo. Viver é estar inocente de si próprio. Como na santidade, que tem de se ignorar, também nenhuma parte de nós deve saber que existe.
(…)
Não sei como hei-de resistir.
- A resistir… - responde-me uma teimosa voz interior.
E deixo-me ficar estoicamente no meu sofrimento, fiel à íntima certeza em que sempre vivi de que a suprema fortuna é saber corajosamente merecer a vida, e a suprema desgraça é coverdemente não a saber perder.»

Miguel Torga, Diãrio Vol. XVI

«Mas a certa altura fala-me da nossa irmã. O espírito apaga-se-lhe precipitadamente e tudo aquilo que a ligava ao mundo se lhe confunde num caos. A filha, marido, todas as pessoas de família lhe são figuras estranhas como toda a perspectiva do tempo se lhe perdeu. Tento situar-me em face da minha irmã e não sei. Quando voltar a vê-la decerto me mão conhece. Todo o passado da nossa infância comum vem ter comigo e de súbito ele está morto nela a uma distância de vertigem. Que significa ela estar viva e real na realidade que é a sua? É morta minha irmã. No fundo de mim o sei.»

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