domingo, 27 de maio de 2018

OLHAR AS CAPAS


Morreram pela Pátria

Mikail Cholokov
Versão: Jaime Brasil
Capa: João da Câmara Leme
Colecção Contemporânea nº 49
Portugália Editora, Lisboa, Outubro de 1963

- Não vás supor, Nicolau, que foi sempre assim desde o nosso casamento. Não há mais de dois aos que minha mulher ficou desarranjada por causa da literatura.
«Vivemos oito anos como outro casal qualquer. Anastácia e eu fazíamos equipa numa ceifadora, sem nunca ela ter desmaios nem fazer fitas. Depois quando lhe deu para a literatura, foi o começo do fim. Tornou-se tão sábia que não pode falar como toda a gente: precisa de maiúsculas para tudo. Passa s noites a ler e de dia parece uma ovelha com ronha: suspira e tudo lhe cai das mãos. Uma vez, imagina, aparece-me a suspirar, mas então a ponto de cortara o coração, e explica-me com ares amaneirados: «Meu pobre Ivan, pensa que nunca me fizeste uma declaração de amor! Nunca ouvi da tua boca palavras ternas como as que escrevem na literatura!». Eu começava a ficar a estar danado. Ela leu e tresleu, pensava, e respondi-lhe: «Anastácia, não estarás um tanto chalada? Há dez anos que estamos juntos. Já nos nasceram três garotos. De que teria o ar, santo Deus, se me pusesse a recitar uma declaração de amor? Poderia dar as voltas que desse à língua; mas não sairia nada. Palavras ternas, até no tempo em que era jovem, nunca as disse; explicava-me por gestos; não seria nesta altura que ia começar. Não sou tão tapado como tu imaginas. Em lugar de leres todos esses calhamaços idiotas, farias melhor se te ocupasses dos pequenos.» Os garotos, devo dizê-lo, crescem ao deus-dará, e a casa transformou-se numa espécie de bazar.

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