E outras iniciativas, publicações,
antologias, a criação do PEN Clube português - possibilidade de encontros à luz do dia -, palestras,
recitais onde houvesse um recinto praticável. Maior ou mais pequeno. Estou
vendo, lá para Alcântara, uma garagem da CUF, que era ou me parece hoje que
era imensa, cheia de operários erguendo-se de chofre e aplaudindo poesias,
entre as quais a minha «Elegia ao companheiro morto», declamada, com a alma
toda, pela Maria Barroso. Saia preta, blusa muito branca, uma imagem do povo
inconformado. O tempo passa.
«Convosco ou não, meu galope é em frente./ /Pertenço a outro
mundo, a outra raça, a outra gente.// E andar! E andar!» Versos meus, de 42.
Tendo ainda, como vêem, uma pontinha de influência brasileira.
Falei de amigos. Haverá melhor na vida do que tê-los? Muitos? Uns
partem de vez (eram amigos a prazo), outros andaram por longe, regressaram,
convertidos à ideia de que não há como beber um copo juntos. Nem que seja de
café. Só na desgraça se conhecem bem: sabedoria popular. Fi-los em toda a
parte. No sanatório, por exemplo.
No sanatório, onde, num daqueles dias infindáveis, recebi, o
mais inesperadamente que é possível, uma carta do Joaquim Namorado a propor-me
a inclusão do meu livro Poemas, que ele sabia pronto há muito, na colecção a
que ele e outros tinham metido ombros e ia chamar-se «Novo Cancioneiro». Êxito
imprevisto. O volume, com uma gravura na capa do Manuel Ribeiro de Pavia, não
chegou às livrarias. Vendeu-se rapidamente, de mão em mão, houve quem o passasse
à máquina. Foi o segundo volume da colecção, que começara, com Terra, do
Fernando Namora, também em 41.
Fui e sou amigo de um bom punhado de gente. E, todavia (os
absurdos da vida!), talvez ninguém tenha cortado tanto relações como eu. Chego
a perguntar-me, descontente comigo, se chegará para o Guinness...
Foi-me sempre difícil suportar, sem corte radical, a mentira, a
prepotência, a traiçãozeca. Adolescência retardada. Como se um corte de
relações pudesse excluir da vida essas misérias pegajosas. Arrependido? Em
grande parte dos casos, realmente não. Mal que não se tem em frente do nariz
sente-se menos, não cheira. Noutros, hesito. No fundo, as pessoas mudam, eu
próprio terei mudado alguma coisa. Talvez hoje pudesse conviver sem custo, bem
pelo contrário, com gente a que não falo por antigos excessos de rigor. Certas
arranhadelas, de que simulei não dar-me conta na altura própria (necessidades
de estratégia de outra ordem), comprovam-me que sim.
Porque ofensa, ofensa mesmo, e pública, só me lembro de três casos,
biliosa de mais num, desrazoada de mais nos outros, para que fale aqui neles.
Merecem só silêncio. Além de que até isso o tempo vai gastando um pouco.
Mário Dionísio em Autobiografia
Legenda: Maria
Barroso, fotografia tirada daqui.
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