sábado, 26 de maio de 2018

O TEMPO PASSA


E outras iniciativas, publicações, antologias, a criação do PEN Clube português - possibilidade de encontros à luz do dia -, palestras, recitais on­de houvesse um recinto praticável. Maior ou mais pequeno. Estou vendo, lá para Alcântara, uma ga­ragem da CUF, que era ou me parece hoje que era imensa, cheia de operários erguendo-se de chofre e aplaudindo poesias, entre as quais a minha «Elegia ao companheiro morto», declamada, com a alma toda, pela Maria Barroso. Saia preta, blusa muito branca, uma imagem do povo inconformado. O tempo passa.
 «Convosco ou não, meu galope é em frente./ /Pertenço a outro mundo, a outra raça, a outra gente.// E andar! E andar!» Versos meus, de 42. Tendo ainda, como vêem, uma pontinha de in­fluência brasileira.
 Falei de amigos. Haverá melhor na vida do que tê-los? Muitos? Uns partem de vez (eram amigos a prazo), outros andaram por longe, regressaram, convertidos à ideia de que não há como beber um copo juntos. Nem que seja de café. Só na desgraça se conhecem bem: sabedoria popular. Fi-los em to­da a parte. No sanatório, por exemplo.
 No sanatório, onde, num daqueles dias infindá­veis, recebi, o mais inesperadamente que é possí­vel, uma carta do Joaquim Namorado a propor-me a inclusão do meu livro Poemas, que ele sabia pronto há muito, na colecção a que ele e outros tinham metido ombros e ia chamar-se «Novo Can­cioneiro». Êxito imprevisto. O volume, com uma gravura na capa do Manuel Ribeiro de Pavia, não chegou às livrarias. Vendeu-se rapidamente, de mão em mão, houve quem o passasse à máquina. Foi o segundo volume da colecção, que começara, com Terra, do Fernando Namora, também em 41.
 Fui e sou amigo de um bom punhado de gente. E, todavia (os absurdos da vida!), talvez ninguém tenha cortado tanto relações como eu. Chego a perguntar-me, descontente comigo, se chegará para o Guinness...
 Foi-me sempre difícil suportar, sem corte radi­cal, a mentira, a prepotência, a traiçãozeca. Ado­lescência retardada. Como se um corte de relações pudesse excluir da vida essas misérias pegajosas. Arrependido? Em grande parte dos casos, realmen­te não. Mal que não se tem em frente do nariz sente-se menos, não cheira. Noutros, hesito. No fundo, as pessoas mudam, eu próprio terei mudado alguma coisa. Talvez hoje pudesse conviver sem custo, bem pelo contrário, com gente a que não fa­lo por antigos excessos de rigor. Certas arranhade­las, de que simulei não dar-me conta na altura própria (necessidades de estratégia de outra or­dem), comprovam-me que sim.
 Porque ofensa, ofensa mesmo, e pública, só me lembro de três casos, biliosa de mais num, desrazoada de mais nos outros, para que fale aqui neles. Merecem só silêncio. Além de que até isso o tem­po vai gastando um pouco.

Mário Dionísio em Autobiografia

Legenda: Maria Barroso, fotografia tirada daqui.

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