domingo, 31 de março de 2019

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Quando, em Outubro de 1965, a cidadã Ivone Maneiras teve conhecimento que Amália Rodrigues publicara um disco a cantar Luís de Camões, escreveu uma carta ao Director do Diário Popular.
A carta foi publicada na edição de 23 de Outubro de 1965:


O matutino aproveitou a carta para fazer um inquérito a algumas personalidades.
Passados todos estes anos, consigo compreender a posição do poeta mas não concordo com ela. Aliás, José Gomes Ferreira teve para com Luís Cília uma posição de desagrado com as músicas que Cília fez para poemas seus.
Um destes dias irei buscar essas amargas palavras de José Gomes Ferreira.
Este é o recorte do inquérito feito pelo Diário Popular:



A talhe de foice, e por mera curiosidade, publicamos uma carta patética de um colaborador de A Voz, jornal católico, monárquico e salazarista, sobre a lírica de Camões e a voz de Amália.
O recorte pertence à edição de 16 de Fevereiro de 1966:

sábado, 30 de março de 2019

AMÁLIA CANTA LUÍS DE CAMÕES


Há uma Amália antes e depois de Alain Oulman.

Não sou dado a grandes conhecimentos da matéria, mas se assim penso assim escrevo.

Quando, em Outubro de 1965, Alain Oulman musicou poemas de Camões para a voz de Amália, “Amália Canta Camões”, os intelectuais tiveram reacções diversas.

José Gomes Ferreira não concordou e respondeu assim ao Diário Popular:

Não estou disposto a ouvir. Não quero ouvir. Mas acho mal. Existem obras-primas da música portuguesa, como por exemplo, “Os Madrigais”, de Luís de Freitas Branco, inspiradas em poesias de Camões. Claro que também existiu a Engraxadoria Camões. Para cada um - seu paladar».

Se bem que tenha um número bem razoável de poemas seus musicados, José Gomes Ferreira nunca simpatizou com a ideia.

A excepção é o trabalho com Fernando Lopes Graça.

A tal ponto que, em 28 de Setembro de 1970, enviou à Sociedade de Escritores e Compositores Teatrais a seguinte carta:

De regresso de férias, encontrei a vossa carta de 21 de Setembro de 1970 a que me apresso a responder, com os meus melhores cumprimentos.
O pedido de autorização ao sr. José António Matildes para musicar o meu poema de Poesia III, “Ó pinheiro verdadeiro” honra-me muito, mas infelizmente não posso conceder-lha por motivo de “princípios estéticos” pois discordo inteiramente da chamada música ligeira quando adaptada aos meus versos, escritos sem essa intenção.
Claro que esta recusa nada tem de pessoal. Peço-lhe até que explique ao Sr. José António Matildes que as canções e as baladas aparecidas recentemente na rádio e em discos com versos meus são todas clandestinas, feitas sem a minha autorização. Ao Sr. José António Matildes devo, pelo menos, essa delicadeza que muito me sensibilizou.
Em resumo: incito-o a fazer a música que lhe apetecer sem me pedir licença!»

Em contraste, é interessante ir buscar o exemplo de António Gedeão que, nas suas memórias, escreve que muito deve a Manuel Freire e às músicas que fez para poemas seus: «Suponho que foi pela sua actuação que a minha poesia conseguiu tão grande êxito generalizado.»

sexta-feira, 29 de março de 2019

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Quando comprei o Segundo Livro de Crónicas do António Lobo Antunes disseram-me que tinha direito a levar um seu livrinho que dava pelo nome de Letrinhas de Cantigas.

Dedicatória do livrinho:

«Ao Vitorino, para quem estas letrinhas foram escritas, quase todas em toalhas de papel de restaurante.»

Provavelmente, tal como conta António Lobo Antunes numa das suas crónicas:


Lê-se nos créditos do livrinho:

«Esta edição (inédita e irrepetível) comemorativa dos 20 anos de Trabalho de António Lobo Antunes com as Publicações Dom Quixote, não pode ser vendida, destinando-se exclusivamente a oferta aos compradores de outras obras do autor.»

O livro é composto por 55 letrinhas que deram, podem dar coladeiras, boleros, rumbas, valsas que podem ser lentas, minuetes, fados de Coimbra, berceuses, cantochão, fox-trots, marchas militares, passodobles, mornas.

Das letrinhas, Vitorino escolheu algumas e fez um disco a que chamou «Eu Que Me Comovo por Tudo e por Nada».

É este o alinhamento do disco:

01. Bolero do Coronel Sensível Que Fez Amor em Monsanto
02. Ana I
03. Todos os Homens são Maricas Quando Estão Com Febre
04. Branco
05. Aos Maridos
06. Canção Para a Minha Filha Isabel Adormecer Quando Tiver Medo do Escuro
07. Tango do Marido Infiel numa Pensão do Beato
08. Fado da Prostituta da Rua de St. António da Glória
09. Rua do Quelhas
10. Valsa das Viuvas da Pastelaria Benard
11. E Se Eu Não Te Amar Mais
12. Marcha da Alcântara
13. Ana II

Bolero do Coronel Sensível Que Fez Amor em Monsanto

Eu que me comovo
por tudo e por nada
deixei-te parada
na berma da estrada
usei o teu corpo
paguei o teu preço
esqueci o teu nome
limpei-me com o lenço
olhei-te a cintura
de pé no alcatrão
levantei-te as saias
deitei-te no banco
num bosque de faias
de mala na mão
nem sequer falaste
nem sequer beijaste
nem sequer gemeste,
mordeste, abraçaste
quinhentos escudos
foi o que disseste
tinhas quinze anos
dezasseis, dezassete
cheiravas a mato
á sopa dos pobres
a infância sem quarto
a suor, a chiclete
saíste do carro
alisando a blusa
espiei da janela
rosto de aguarela
coxa em semifusa
soltei o travão
voltei para casa
de chaves na mão
sobrancelha em asa
disse: fiz serão
ao filho e à mulher
repeti a fruta
acabei a ceia
larguei o talher
estendi-me na cama
de ouvido à escuta
e perna cruzada
que de olhos em chama
só tinha na ideia
teu corpo parado
na berma da estrada
eu que me comovo
por tudo e por nada.


OLHAR AS CAPAS



Letrinhas de Cantigas

António Lobo Antunes
Capa: Atelier Henrique Cayatte com Rita Múrias
Publicações Dom Quixote, Lisboa, Outubro de 2002

Todos os Homens São Maricas Quando Estão Com Gripe

Pachos na testa
terço na mão
uma botija
chá de limão
zaragatoas
vinho com mel
três aspirinas
creme na pele
grito de medo
chamo a mulher
ai Lurdes, Lurdes
que vou morrer
mede-me a febre
olha-me a goela
cala os miúdos
fecha a janela
não quero canja
nem a salada
ai Lurdes, Lurdes
não vales nada
se tu sonhasses
como me sinto
já vejo a morte
 nunca te minto
já vejo o inferno
chamas diabos
anjos estranhos
cornos e rabos
Vejo os demónios
nas suas danças
tigres sem listras
bodes de tranças
choros de coruja
 risos de grilo
ai Lurdes, Lurdes
que foi aquilo!
não é a chuva
no meu postigo
ai Lurdes, Lurdes
fica comigo
não é o vento
a cirandar
nem são as vozes
que vêm do mar
não é o pingo
de uma torneira
põe-me a santinha
à cabeceira
compõe-me a colcha
fala ao prior
pousa o Jesus,
no cobertor
chama o doutor
passa a chamada
ai Lurdes, Lurdes
nem dás por nada
faz-me tisanas
e pão-de-ló
não te levantes
que fico só
aqui sozinho
a apodrecer
ai Lurdes, Lurdes
que vou morrer.

MINIBIOGRAFIA


Não me quero com o tempo nem com a moda
Olho como um deus para tudo de alto
Mas zás! do motor corpo o mau ressalto
Me faz a todo o passo errar a coda.

Porque envelheço, adoeço, esqueço
Quanto a vida é gesto e amor é foda
Diferente me concebo e só do avesso
O formato mulher se me acomoda

E se nave vier do fundo espaço
Cedo raptar-me, assassinar-me, cedo:
Logo me leve, subirei sem medo
À cena do mais árduo e do mais escasso.

Um poema deixo, ao retardador:
Meia palavra a bom entendedor.


Luiza Neto Jorge

Legenda: contra capa de uma «plaquete» publicada pela Cinemateca Portuguesa no ano em que Luiza Neto Jorge morreu, com textos escritos pelos realizadores com quem trabalhou: Margarida Gil, Jorge Silva Melo, Paulo Rocha, Alberto Seixas Santos e Solveig Nordlund.
Luiza Neto Jorge morreu a 23 de Fevereiro de 1989.

quinta-feira, 28 de março de 2019

POSTAIS SEM SELO


Escreve-se imaginando um leitor que saiba ler.

Paulo da Costa Domingos

Legenda: pintura de Françoise Collandre

OLHARES


Não sou fã de Leitão Assado.

Os pés deslocam-se rapidamente para uns tordos fritos, um cabritinho assado no forno, mas pouco ou nada por leitão assado.

Como um ou dois pedaços da parte das costelas e isso já é matéria suficiente para deitar abaixo uma garrafa de espumante… ou duas…

O Leitão Assado que se pratica na região da Bairrada já está generalizado por tudo o que é sítio.

Aconteceu o mesmo com o pão.

Qualquer baiúca, apetrechada com um forno forno eléctrico, diz-nos  que vende pão alentejano ou de Mafra, do que calhar e der jeito.

Quando os jogos de futebol eram às três da tarde, uma ida a Aveiro para ver o Benfica jogar com o Beira-Mar, ou a Coimbra para ver a Académica, metia sempre almoçarada na Bairrada. 

Percorremos grande parte desses restaurantes, mas na memória ficou um leitão assado no Virgílio, comido às dez e meia da manhã, com o reco a sair triunfalmente do forno.

Mas um dia o Carlos Garrudo chegou-se ao grupo-jantarista-das-últimas-sextas-feiras-de-cada-mês, e com aquela seriedade que o caracteriza, falou-nos, quase clandestino, da urgência em ir comer um leitão assado a uma casa em Sangalhos recomendada pelo seu amigo e vinicultor Luís Pato que, sempre que organiza reuniões para lançamento dos vinhos e espumantes que produz, manda vir o leitão assado dessa tal casa.

A casa chama-se Restaurante Mugasa e fica no Largo da Feira na aldeia da Fogueira, junto a Sangalhos.

De facto nunca comi leitão como o do Mugasa.

Guardei a excelência do bicho.

Mas a opinião minha não oferece grandes garantias porque, a abrir, declarei que não sou fã do leitão assado. O que já não acontece com o Luís Miguel Mira, o Carlos Garrudo, a Aida, a Cristina, a exigente Cristina, verdadeiros adeptos do Leitão assado, que ficaram extasiados.

No Mugassa os recos não têm mais de quatro quilos e são assados em brasas de sarmentos de vides.

A primeira ida ao Mugasa terá ocorrido nos primeiros anos do corrente século.


Um dia, ao folhear o suplemento Fugas do Público, 24 de Fevereiro de 2018, deparei com um artigo assinado por Pedro Garcias titulado  «O melhor leitão e os vinhos da Bairrada que enfeitiçam.»

Ao longo do texto, o autor identifica-se como um duriense enfeitiçado pela Bairrada e com um toque de honestidade adianta que «Uma boa parte do que se produz na Bairrada será sofrível. Mas o que é bom é mesmo bom.»

O melhor estava guardado para o final do texto:

«Quer saber onde se come o melhor leitão? No Mugasa, claro.»

 Escreveu Baudelaire, que a crítica deve ser parcial e apaixonada.

OLHAR AS CAPAS


Poesia e Prosa
Antologia
1º Volume

Eugénio de Andrade
Capa: Rochinha Diogo
Círculo de Leitores, Lisboa, Maio de 1987

Deixa que seja uma criança
a inclinar a tarde.
Dizem que é verão: não acredites.
O verão tem os pés iluminados pela lua,

O verão tem os nomes todos do mar,
não é o deserto
da cama aberta ao frio,
o prazer imitando a neve.

O que se vê daqui não é a dança
da claridade com o trigo,
o rio onde os cavalos bebem
a tarde a chegar ao fim.

Deixa que seja uma criança.

De Contra a Obscuridade

quarta-feira, 27 de março de 2019

POSTAIS SEM SELO


Cultivar a memória, primeiro que tudo.

Albert Camus em Cadernos III

CONSERVADO EM ALCOOL


 Chegamos ao fim da revisitação das entrevistas do Luiz Pacheco antologiadas em O Crocodilo Que Voa.

Estas são as duas últimas perguntas que Ricardo Nabais e Vladimiro Nunes fizeram a Pacheco na entrevista que foi publicada pelo semanário Sol em Janeiro de 2008.

A quem acha graça hoje em dia?

Agora acho muito pouca graça. E aqui então não se pode. Já mandei uma gaja aí à merda. Porque isto é um ambiente deprimente. Sexualmente isto é um desgosto. Mas aqui há namoros! É claro que vocês estão cá meia hora e depois arejam. Mas para a pessoa que cá fica… o que vale é que estou isolado... Também é muito cedo para dizer que estou mal. Ainda estou a experimentar. Em oito dias, só hoje é que fui conhecer o andar de cima. Ainda me desnorteia, não sei onde é o elevador. De resto, isto parece-me muito bom. É melhor do que eu supunha. Mas é difícil achar graça a alguma coisa com esta idade. Tenho 82 anos, porra! Há aquela coisa que é a PDI, a Puta Da Idade, o caruncho...E o velho, geralmente, é egoísta. Ou é mais egoísta do que o novo. Mas estou a falar de coisas muito tristes…

Convenhamos que, ao longo da vida, o Luiz Pacheco também não se tratou muito bem.

Não, tratei-me! Fui conservado em álcool. A questão é que não havia dinheiro para grandes rambóias. Não estou taralhoco de todo. Estou é um bocadinho desmemoriado e tomo muitos medicamentos.

OLHAR AS CAPAS



Um Número à Escolha

Anders Bodelsen
Tradução: Fernanda Pinto Rodrigues
Capa: Lima de Freitas
Colecção Vampiro nº 307
Livros do Brasil, Lisboa s/d

Bork foi o último a sair. Deu uma volta, a arrumar coisas que podiam ficar para o pessoal da limpeza, que vinha de manhã.

MORRER POR NADA


Morrer por nada
ter alcançado
e morrer exausto
porque deus emudeceu
em nosso diálogo
extremo e irrazoável.

Ana Marques Gastão de O Silêncio de Deus em Três Vezes Deus

Legenda: fotografia tirada do blogue ultimaemociom

terça-feira, 26 de março de 2019

POSTAIS SEM SELO


… as tarefas que surgem nunca se dominam com a descrença na própria força, mesmo que só um coração fique a guardar o testamento que o passado deu e o futuro exige.

Alves Redol, citação de «Porto Manso» na contra capa de Vértice nº 322-23

FARTO DE COISAS NECROLÓGICAS


Carta de Jorge de Sena, datada de 28 de Setembro de 1958, para António Ramos Rosa:

«Eu não gosto de escrever postais, porque me parecem uma desculpa para as cartas que não escrevemos; e cada vez tenho menos tempo para escrever cartas, o que tanto gosto de fazer e não posso.»

Em carta anterior Ramos Rosa tinha pedido a Sena que lhe enviasse colaboração para os Cadernos do Meio-Dia. Lembrava que o nº 3, a sair em Outubro de 1958, seria dedicado à memória de Afonso Duarte:

«Não lhe mando poema para o número do Afonso Duarte, porque já me vou pessoalmente fartando dessas coisas necrológicas em que tenho passado a vida a participar.»

Em Correspondência

Legenda: Afonso Duarte

OLHAR AS CAPAS


Número Especial de Homenagem a Alves Redol

Vértice nº322-23/Novembro-Dezembro de 1970
Coimbra, Dezembro de 1970

Londres, domingo 30

Esta manhã chegou-me o telegrama da Edite. Morreu o Redol. Fiquei diante da janela do quarto, a olhar, ou a não olhar, sei lá, o pátio coberto de neve - e tudo branco, tudo puro, o nada, e a notícia ali na minha mão a dizer-me que tínhamos' perdido o nosso velho António, o nosso querido e paciente amigo.
Não adianta, bem sei, desabafar-se assim. Mas na morte de qualquer escritor português digno há sempre um remorso do tempo, sempre. Há um outro cancro que vem detrás e que é a injustiça e o suportar em silêncio. E esse mal, quando não vence uma verdade interior, mata primeiro do que o vírus decretado pelas certidões de óbito.
As vezes que falámos nisto, eu e o Redol. Ainda há pouco, numa carta em que se despedia de mim para sempre, lá vinha esta verificação magoada e terrivelmente simples: «Sou um dos que vai morrer na incomunicabilidade com o seu tempo».

José Cardoso Pires, «Carta aos Amigos Comuns».

O MEL EM BRASA


Traçaram-lhe o perfil ao sair da água.
Não era nadador
Nem os seus pulmões conheciam o ar da clausura
Isso que está por baixo
E só o próprio sabe controlar tão bem
Como no sono.

Por vezes os seus gestos eram jactos
De fogo.
Houve quem dissesse
Que os seus poemas balavam os túmulos
Levedavam a vida
E sagravam o corpo numa ostentação
De jóias e artérias.

Tive a sorte de vê-lo
Quando se dirigia ao local prévio
Onde fundia a sede
E levava à boca um pequeno vaso
De limalha.
Não era o seu ofício, aquilo,
Não era ainda o fogo, a grata labareda
Que lhe saía do peito.

Assim se permitia mover os dedos
Com uma estranha timidez que não vem nos livros
Abafando os relâmpagos ao nível dos castiçais
Para que se ouvisse a voz primeiro
Que a dança.

Não trocámos palavras nem sedas de circunstância.
Olhámos os dois em frente.
E eu não sabia onde ocultar a pedra
De mim próprio.

Armando Silva Carvalho de Sol a Sol em O Que Foi Passado a Limpo

segunda-feira, 25 de março de 2019

POSTAIS SEM SELO


A vida Inteira para dizer uma palavra! Felizes os que chegam a dizer uma palavra!

Saul Dias

Legenda: fotografia de Christian Living

O QUE DIZEM AS CRIANÇAS


«Quando eu crescer, vou cortar as flores grandes, para não haver vento.» A história é esta: fazia muito vento, e por isso a mãe não deixara a filha ir brincar para a rua. Como o sinal do vento o via ela nas árvores a abanar («as flores grandes»), cortando-as desapareceria o sinal, quer dizer: a própria coisa (o vento). Então, já ela poderia ir brincar para a rua. Mas como o poder é dos adultos (a «quantidade milagrosa» - a idade), só quando ela «crescesse» poderia cortar as árvores. Modificaria a realidade segundo o princípio do desejo. E isto é não só o princípio mesmo da poesia, mas o das relações do homem com a realidade - o significado do trabalhador criador. Adaptar o mundo ao nosso desejo, através de um acto radical. E é quando o trabalho se faz jogo.

Herberto Helder em  minúsculas

NUNCA ENCONTREI UM PÁSSARO MORTO NA FLORESTA


Nunca encontrei um pássaro morto na floresta.

Em vão andei toda a manhã
a procurar entre as árvores
um cadáver pequenino
que desse o sangue às flores
e as asas às folhas secas…

Os pássaros quando morrem
caem no céu.

José Gomes Ferreira de Melodia em Poesia I

domingo, 24 de março de 2019

POSTAIS SEM SELO


Domingo é o espaço onde todos cabem sem lhes ser preciso fazer vénia ao sol.

Luiza Neto Jorge

OLHARES


Na sua crónica no Diário de Notícias, Maria do Rosário Pedreira lembra o Catecismo Nacional, na capa uma imagem de Jesus falando às crianças, e nele se podia ler o aviso de que Deus estava em toda a parte e tudo via.

Lembro-me dessa lenga-lenga ditada pela malta da rua que ia à catequese do Senhor Magalhães ma Igreja da Penha de França.

Eu jogava a bola da rua, fiquei longe dos ensinamentos.

Muito mais tarde, quando as grandes desgraças aconteciam aos homens.
sempre me perguntei onde estava Deus.

É nisso que penso quando olho as imagens trágicas das cheias em Moçambique.

Uma vez mais.

E Deus?

 Onde está?

Tentam dizer-me:

Deus não é silencioso. Nós é que somos surdos.

Mas continuo a olhar as imagens das cheias de Moçambique.

As de hoje.

Poderiam ser as de Fevereiro do ano 2000 e lembrar as palavras de Mia Couto:

Nestes 19 anos, o que fizeram os homens por todos os Moçambiques-em-tempo-de tragédia espalhados pelo Mundo?

Que caminhos tomaram as solidariedades de então?
E as solidariedades de agora, que caminhos vão percorrer?

E Deus, está mesmo em toda a parte e tudo vê?

O SOM DO MUNDO


Releio poemas mudo-os de lugar
no livro que crescendo devagar
me exaspera, por vezes um poema
faz-me crer que prendi acaso o tema

quer ao som das palavras quer ao mundo
outros talvez como este nem ao menos
chegam ao fim ou terminados caem
no limbo conhecido de múltiplas esperas

e é o mesmo mundo que me inspira
que de dizer me impede os sons precisos
dia após dia até que (por fim ditos
os segredos no vácuo do silêncio

tanto tempo retidos, o amor
que da vida nunca se solta e é isso
que o torna algumas vezes impossível)
a espera recomeça em novos limbos


Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.

sábado, 23 de março de 2019

POSTAIS SEM SELO


Sem as palavras… sem aquelas que nós… que cada um em si tem, as que se dizem e as que não se dizem, quem seríamos, e o quê?

ADORAVA DESEMPREGAR-ME



Há um texto em que fala de ter um emprego das nove às cinco ou viver como se quer. «Vou ter prazer na vida, fazer o que bem entendo.» Isso decide-se assim?

Não, são coisas que aparecem. E depois houve o 25 de Abril, que deu dinheiro a muita gente, não só a mim. Não é escolha, é feitio, são acasos. A vida é muito variada.


Mas parece uma opção, até porque saiu daquele emprego seguro na Direcção-Geral de Espectáculos.

Adorava desempregar-me. O Nicolau Santos, que foi director do Diário Económico (DE) e que agora é vice-director do Expresso, pagou adiantado e convidou-me a ir para o DE. Havia uma página de regabofe, de crítica de cinema, uma coisa de artes. Durante meses escrevi para lá. Aquilo era pago, primeiro, a 30 contos. O que era muito bom na altura. Mais tarde passou para 35 contos. Depois disseram-me que fazia parte de uma grupo que ia ser saneado no jornal. O Nicolau perguntou-me se não queria ir para o Público e saí do DE. Quando lá cheguei, disseram-me que não podia escrever como escrevia. Era na revista, onde estavam o Lobo Antunes e um psiquiatra qualquer. Davam-me 50 contos por crónica.

Quanto tempo durou essa colaboração?

Trabalhei lá até o Nicolau sair. Houve qualquer merda lá no Público, gajos despedidos, e ele saiu. Estive no Público com outros novos colaboradores e era ‘escritor e polemista’. ‘Ai querem que eu vá para aí fazer sangue?’ Tinha jeito para a porrada, sim…

Era uma espécie de Vasco Pulido Valente bolchevique.

Era. Mas só dei porrada em dois gajos. No Esteves Cardoso, porque, de repente, tinha um nome muito acima do que vale. Não é mau rapaz, mas é um bocado pateta. E dei a outro, que não conheço pessoalmente, o José Eduardo Agualusa. Um gajo que lá havia, o [Torcato] Sepúlveda fez-lhe uma punheta, escreveu sobre o romance dele, Nação Crioula. E então pensei: ‘Este gajo, o Sepúlveda, não vê que o outro é um aldrabão?’. Vai daí, dei uma porrada ao Agualusa, mas a porrada era também para o outro. Isso deu-me gozo, fiz o gosto ao dedo.

Mas foi-se embora outra vez.

Depois saiu o Nicolau, e eu, nem é tarde nem é cedo, escrevi-lhe: ‘Não somos siameses mas você é que me meteu no Público. Você sai, eu também saio’. Agora, o gozo que dá um gajo abandonar o emprego…

Esteve muito tempo na Direcção-Geral dos Espectáculos.

Entrei em 1957 e estive lá 14 anos. Como é que se arranja empregos? É por conhecimentos. O meu pai era amigo de um chefe de secretaria e foi lá comigo. Iam abrir seis vagas em Janeiro. Fui logo a correr. Tinha a vantagem do cartão da Inspecção, que permitia chegar a um cinema, a um teatro, ou a uma praça de touros, e entrar.

E a saída, como foi?

Outra grande alegria. Fui lá uma manhã e escrevi um requerimento ao ministro a pedir a demissão.


Porquê?

Já não podia ver aquela merda. O chefe de serviço até me perguntou: ‘Então o senhor Pacheco está a fazer mais um livro?’ De repente, ganha-se asco aos ambientes.

RECEITA


Vidro, muito vidro
moído.

Consumido
rigorosamente

A melhor dieta
para tornar o poeta
transparente

Cláudio Lima de Itinerâncias em Resumo: a poesia em 2010.

sexta-feira, 22 de março de 2019

POSTAIS SEM SELO


um ramo oscila ao vento é a vida que começa.

Ruy Belo, verso do poema A Margem da Alegria em Todos os Poemas

VILA AMARAL


Nasci em casa, na Rua Mestre António Martins, ali à Penha de França.
Decorria o parto e a minha avó tinha uma galinha a coser. Acreditem ou não, fiquei com o cheiro da hortelã que salpicava a canja.

Nas traseiras havia quintais, hortas, urtigas e azedas, batatas e couves diversas, lagartixas espreguiçavam-se, corriam pelas pedras dos muros.

E havia a Vila Amaral, terra aberta às brincadeiras, às púrrias.

Foi nessas hortas muradas que olhei os primeiros girassóis de que guardei o gosto, que, muitos anos depois, Van Gogh haveria de prolongar e consolidar.

As quintas, os quintais, as hortas já não existem, deram lugar a prédios mas a Vila Amaral sim, e ainda lá estão as casas-barracas, constituindo um estreito e comprido corredor.


Havia os rapazes da rua Mestre António Martins e a malta ranhosa da Vila Amaral.

A minha infância dividiu-se entre os rapazes da rua e a malta que vivia na vila.

Dos pais da malta miúda que vivia na Mestre António Martins, apenas o meu não proibiu o convívio com a malta da vila. Essa malta era a que eu preferia para passar os dias. Muitos anos depois, a minha avó materna diria que não cheguei a doutor nem a engenheiro porque preferi esse convívio onde nada se aprendia.

Sim, não cheguei e doutor nem engenheiro, mas aprendi vivências e solidariedades, outras maneiras não de viver, mas sobreviver.

A pátria da minha infância.

A infância não envelhece, escreveu algures o Dinis Machado.

RETRATO DO POVO DE LISBOA


É da torre mais alta do meu pranto
que eu canto este meu sangue este meu povo.
Dessa torre maior em que apenas sou grande
por me cantar de novo.

Cantar como quem despe a ganga da tristeza
e põe a nu a espádua da saudade
chama que nasce e cresce e morre acesa
em plena liberdade.

É da voz do meu povo uma criança
seminua nas docas de Lisboa
que eu ganho a minha voz
caldo verde sem esperança
laranja de humildade
amarga lança
até que a voz me doa.

Mas nunca se dói só quem a cantar magoa
dói-me o Tejo vazio dói-me a miséria
apunhalada na garganta.
Dói-me o sangue vencido a nódoa negra
punhada no meu canto. 

Quem dorme à noite comigo
É meu segredo,
Mas se insistirem, lhes digo,
O medo mora comigo,
Mas só o medo, mas só o medo.

E cedo porque me embala
Num vai-vem de solidão,
É com silêncio que fala,
Com voz de móvel que estala
E nos perturba a razão.

Gritar quem pode salvar-me
Do que está dentro de mim
Gostava até de matar-me,
Mas eu sei que ele há-de esperar-me
Ao pé da ponte do fim.

José Carlos Ary dos Santos em fotos-grafias

Legenda: Fotografia de Nuno Calvet em fotos-grafias

quinta-feira, 21 de março de 2019

POSTAIS SEM SELO


Gostarias que de ti ficasse (mas qual?) uma memória. Em todo o caso não a forces.


Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.

POR FALTA DE MASSAS!


Paramos, hoje, em duas cartas de António Ramos Rosa para Jorge de Sena em que
volta a referir as tremendas dificuldades económicas em que vivia.
António Ramos Rosa, para além de poeta admirável, do melhor que a nossa literatura possui, era um homem amável e sincero, de uma humildade desconcertante.
No findar da carta, datada de 13 de Agosto de 1958, pergunta a Jorge de Sena se recebeu o seu livro «O Grito Claro»:

«Recebeu o meu livrinho? Vi-me obrigado a fazer essa selecção porque as massas não chegavam para o livro completo. Fiz mal? Mesmo assim, fiquei inteiramente depenado. Vamos a ver se se vende.»

Tomem nota: por falta de massas Ramos Rosa não publicou o livro que tinha entre mãos, o livro que deveria ser publicado.

No dia seguinte envia outra carta:

«Aí lhe mando um poema que lhe é especialmente delicado que me levou a escrever as palavras de admiração que lhe dirigi ontem. Não ponha em dúvida a minha sinceridade do que ultrapassa de muito longe a pura amabilidade. Não o enganará decerto o tom dos meus versos, fracos porventura, mas onde eu creio perpassa algo de puro e genuíno. Eles foram inesperados. Há mais de cinco, seis ou sete meses que eu não escrevia um verso. Quase me sinto feliz – e duplamente por eles terem nascido para si. É decerto um sangue novo que aflui, não só à minha poesia, mas a esse diálogo que eu julgo não interrompido entre nós. Ainda bem e oxalá V. esteja de acordo comigo. É claro, digo isto, independentemente do valor real que se possa atribuir a esta minha poesia. Pode V. fazer dela o que entender, mas eu tinha empenho em que ela fosse publicada, para público testemunho duma gratidão que neste caso ultrapassa qualquer pessoalismo. Como não posso inteiramente descurar o lado material da questão, sugeriria que a publicasse na pág. lit. Do Diário de Notícias *, pois encontrando-me neste período de Verão, quase sem trabalho, como é habitual, muito jeito me fazia esse negócio. Claro, o negócio é por acréscimo, mas tem urgência.

*Há tempos pedi a este jornal que, na secção «Ronda», anunciasse o meu livrinho: até agora nada. Há anos enviei para lá um artigo, em carta registada, dirigida a Natércia Freire e também não o publicaram nem me responderam.»

Segue-se o poema que Ramos Rosa dedica a Sena e que foi publicado no Diário de Notícias de 4 de Setembro de 1958, Certamente não seria publicado se Jorge de Sena não tivesse feito diligência junto da matriarca Natércia. «Já lho pagaram?, pergunta ainda Sena em carta de 28 de Setembro.




Legenda: reprodução da 1ª edição de O Grito Claro, tirada de In-Libris

FEIRA DO LIVRO DE POESIA


Aqui pelo Cais temos a tineta de não ligar aos dias determinados, sejam eles da Poesia, da Mulher, do Pai, da Mãe, da Árvore e por aí fora.

Hoje é o Dia da Poesia.

Por nós, a Poesia é de todos os dias, feita por todos, e dentro dessa filosofia tentamos que, em cada dia, os viajantes encontrem um poema.

Mas falamos do Dia da Poesia porque a Casa Fernando Pessoa realiza, até domingo, no Jardim da Parada, em Campo de Ourique, uma pequena Feira do Livro em que é possível encontrar livros de pequenas editoras que a selvajaria do mercado não permite colocar nos escaparates das livrarias.

Ainda há livrarias?

O dia está bonito e é bem provável que os nossos passos para Campo de Ourique se encaminhem.

Por Poesia, por Campo de Ourique, recordar que Fernando Assis Pacheco, que por ali viveu, chegou a escrever conselhos da vida e para a vida que intitulou «Regras Para Viver emCampo de Ourique».

Claro que o conceito das regras pode e deve ser alargado a outras paragens:

1. Pratica a arte da boa vizinhança; estás numa terra pequena, não sejas opaco.
2.  Dá o máximo de ti, pede aos outros o máximo. A escassez não vale uma vida.
3.  O alheamento não vale uma vida.
4.  Faz-te conhecer pelos gestos de todos os dias; mesmo os gestos neutros; mesmo os inúteis.
5.  Não deixes de contrastar os homens sobre as pedras.
6.  Saboreia os teus trajectos com uma paixão minuciosa,
7.  Mas reserva-te para a surpresa e para o imprevisto (como no trabalho).
8.  Vive direito. Vive claro. Evita enganar-te neste ponto.
9.  Aceita os outros, que são sempre diversos.
10.  Gostarias que de ti ficasse (mas qual?) uma memória. Em todo o caso não a forces.

O ESSENCIAL É TER O VENTO


O essencial é ter o vento.
Compra-o; compra-o depressa,
A qualquer preço.
Dá por ele um princípio, uma ideia,
Uma dúzia ou mesmo dúzia e meia
Dos teus melhores amigos, mas compra-o.
Outros, menos sagazes
E mais convencionais,
Te dirão que o preciso, o urgente,
É ser o jogador mais influente
Dum trust de petróleo ou de carvão.
Eu não: O essencial é ter o vento.
E agora que o Outono se insinua
No cadáver das folhas
Que atapeta a rua
E o grande vento afina a voz
Para requiem do Verão,
A baixa é certa.
Compra-o; mas compra-o todo,
De modo 

Que não fique sopro ou brisa
Nas mãos de um concorrente
Incompetente. 

Reinaldo Ferreira em Poemas

quarta-feira, 20 de março de 2019

POSTAIS SEM SELO


Se eu soubesse a palavra, a única, a última, e pudesse depois ficar em silêncio para sempre.

Vergílio Ferreira

OLHAR AS CAPAS


O Gato de Diamantes

Dorothy l. Sayers
Tradução: Mascarenhas Barreto
Capa: Cândido Costa Pinto
Colecção Vampiro nº 112
Livros do Brasil s/d

Lord Peter Wimsey estirou-se voluptuosamente entre os lençóis do Hotel Meurice. Depois das suas diligências para a solução do mistério de Batterson, seguiu os conselhos de Sir Julian Freke’s e ofereceu-se umas férias.
Sentia-se já farto de tomar, todos os dias, o pequeno almoço, virado para o cenário habitual de Green Park; chegara à conclusão de que andar pelas livrarias em busca de primeiras edições não constituía exercício suficiente para um homem de trinta e três anos. Os crimes de Londres andavam mais do que falsificados.
Resolveu abandonar o tédio e os amigos e escapou-se para a Córsega. Durante três meses, votou ao ostracismo, cartas, jornais e telegramas. Trepou às montanhas, admirou – a uma distância cautelosa – a beleza selvagem das camponesas corsas e estudou a «vendetta» no seu ambiente natural. Nestas condições o crime parecia-lhe não só razoável, mas até louvável.

TENHO VISTO


Tenho visto Olhos que Morrem
Volvendo em volta do Quarto –
Como à procura – de quê? –
E depois enevoarem-se –
E depois obscurecerem –
E depois – soldadas pálpebras
Sem me terem dito o que
Seria tão bom ser visto

Emily Dickinson em 80 Poemas de Emily Dickinson

terça-feira, 19 de março de 2019

DITO A MEU PAI EM TEMPO DE AGONIA



1.
A tua tristeza delicada
o teu cabelo enfim branco

as cadeiras onde te sentas
com um jornal no regaço

o amor violento a breve zanga
desapontada

esse marégrafo no paredão
para medir os meus agravos

2.
A poesia que por ti
em certas noite soluçava

a tua letra já molhada
despedaçando-se na mata

a saudade bordada a fio grosso
no camuflado

o olhar brando e tudo o que não dizes
e eu feito num oito adivinhava

Fernando Assis Pacheco em Variações em Sousa

Legenda: fotografia da revista Time