terça-feira, 31 de outubro de 2023

CONVERSANDO


À força de nos quererem de boa saúde, tudo fazem para nos tirarem os vícios e sem os quais a vida seria uma chatice.


Jules Romains, citado por Manuel António Pina, dizia que a saúde é um estado precário que não augura nada de bom.


Tiram-nos o sal do pão - menos um grama de sal por dia salvaria 2649 vidas por anos, se fossem quatro gramas chegaríamos às sete mil, dizem os higienistas - cortam nas chouriças e no açúcar – já houve quem reclamasse uma lei que obrigue a que os pacotes de açúcar servidos nos cafés com a "bica", não tenham mais de 6 gramas, isto para combater a diabetes, a obesidade, as doenças cardiovasculares e cerebrovasculares - impedem-nos de cigarrar após a refeição num qualquer restaurante, o que considera uma intromissão intolerável na liberdade dos cidadãos.
Querem dar-nos cabo da vida, é o que é.
A procura da raça pura, de pessoas imaculadas, a tentativa desesperada para morrermos cheios de saúde e ele não sabe que puto de piada tem o morrer cheio de saúde.

Cada um deve viver a vida como muito bem entenda, dizia a minha avó, uma analfabeta repleta de sabedoria filosófica.

Deixem-no, pois, continuar a frequentar tudo o que o transporte aos “musts” do perfeito colesterol.

Chamem-lhe o que bem entenderem.

A idade deu-lhe a imunidade de com isso se preocupar… zero!!!

Legenda a imagem que encima o texto, é uma cortesia de Mr. Ié-Ié. 

OLHAR AS CAPAS


Viver para Contá-la

Gabriel García Márquez

Tradução: Maria do Carmo Abreu

Capa: Rita Múrias

Publicações Dom Quixote, Lisboa, Março de 2003

 Até à adolescência, a memória tem mais interesse no futuro do que no passado e, portanto, as minhas recordações da aldeia não estavam ainda idealizadas pela nostalgia. Recordava‑a como era: um lugar bom para viver, onde toda a gente se conhecia, na margem de um rio de águas transparentes que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré‑históricos.

E O QUE TE DIZ ELA A TI...

E o que te diz ela a ti … essa canção
que só pode ser ouvida por quem
na sua própria voz cantando a escuta?
– Nada lhe peço que me diga Apenas
que venha que continue a chegar
até mim com a sua morte a viver
oferecida viva e sem remédio.

E há então… uma tal soturna idade
uma tão violenta doçura… agora
que para sempre… por momentos
adia o meu morrer.

Manuel Gusmão

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

DE QUE FALAM AS CASAS


 As casas são uma máquina de habitar, é certo, e desempenham um papel-chave na construção da nossa experiência humana, Mas todas as casas falam, pela presença ou pela ausência, de outra coisa que está para lá delas, Falam disso que um humano é, matéria ao mesmo tempo sucinta e imensa, de fazer espanto. Falam do conhecimento que só é verdadeiro se alojar em si a consciência do que ignora hoje e ignorará até ao fim. Falam da luta pela sobrevivência, com a sua rudeza, a sua dor e o seu tumulto, mas também da excedência que experimentamos. Falam da intimidade, aquém e além da pele. Falam do silêncio e da palavra, que umas vezes se contradizem e outras não. Falam do cumprido e do adiado, do sono e da vigília, do fraterno e do oposto, da ferida e do júbilo, da vida e da morte. «Oh as casas as casas as casas.»

José Tolentino Mendonça em O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas

NOTÍCIAS DO CIRCO

O Governo promete e cumpre!!!

O aumento das rendas no próximo ano não vai sofrer nenhum travão, ao contrário do limite dos 2% que foi imposto este ano, e os senhorios vão poder subir os valores em 6,4% – o maior em 30 anos.

OS DIAS VISTOS DO CAFÉ DO MONTE

Sempre, desde os tempos do Expresso, de onde foi saneada, por motivos nunca declarados, mas calculam-se, para aparecer nas páginas do Público, dentro do suplemento Ipsilon, que me delicio com as crónicas da Ana Cristina Leonardo. 

Há sempre uma frase, um parágrafo, que obriga a sublinhados.

«Pois assim sendo, diria eu, no que respeita à homossexualidade o mantra dominante por aqui é, mais coisa menos coisa, idêntico àquele que foi enunciado há muito pelo irlandês republicano, poeta e dramaturgo Brendan Behan (1923-1964). No seu livro Nova Iorque (publicado originalmente no ano da sua morte e editado por cá pela Tinta-da-china em 2010) pode ler-se: “A minha atitude em relação à homossexualidade é muito semelhante à daquela mulher que, aquando do julgamento de Oscar Wilde, disse que não se importava com o que faziam, desde que não o fizessem na rua e não assustassem os cavalos”.

Brendan Behan morreu aos 41 anos na sequência de um coma alcoólico que o fez cair do balcão do bar onde estava sentado; não por acaso tinha chegado a definir-se a si próprio como “um bebedor com um problema de escrita” (e eu aproveito para lamentar a sua morte precoce, assim como o facto de a auto-ironia ser uma arte tão pouco cultivada…).
O comentário de Behan sobre a homossexualidade mostra-se, apesar das bebedeiras tenderem a funcionar como desinibidoras de uma certa aspereza linguística, bastante polido na escolha das palavras. Já a dramaturga e argumentista norte-americana Lillian Hellman, companheira por trinta anos de Dashiell Hammett e uma das vítimas da “caça às bruxas” encabeçada na década de 1950 pelo senador norte-americano Joseph McCarthy, terá sido bem mais gráfica, a acreditarmos em Christopher Hitchens que a citou dizendo, quando alguém a interrogou sobre o seu silêncio sobre os gay rights: “The forms of fucking do not require my endorsement” (mantenho no original para não assustar as crianças…).»

Ana Cristina Leonardo, de uma crónica no Público

OLHAR AS CAPAS


Conflito em Palmyra

Erskine Caldwell

Tradução : Aida Lawrence

Capa: Guilherme Casquilho

Livraria Bertrand, Lisboa s/d

- Vê lá se calas duma vez para sempre com essa conversa do teu pai! Já estou farta de ouvir falar nele!

Com os lábios trémulos e os olhos rasos de lágrimas, Maebelle ficou imóvel, sentada na cadeira, a olhar vagamente para o sol claro da manhã que se escoava através dos vidros da janela.

MARCADORES DE LIVROS


 

Colaboração de Aida Santos

OLHAR AS CAPAS



Morrer em Portugal 

Mário Ventura

Capa: José Cândido

Livraria Bertrand, Lisboa, Abril de 1975

Começou a nevar de manhã cedo, no momento em que o ar ficou mais seco, nevou durante todo o dia, e ao cair da noite uma camada muito branca e pouco segura cobria todo o Norte da Espanha. A neve tombava ainda quando o escuro e longo comboio, avultando estranhamente no manto branco, avançou pela noite dentro, com os homens que regressavam ao aseu país.

A meio da madrugada aquele comboio entrara de obcecar-me. Esperava havia horas, cercado pela neve e pela indiferença da cidade adormecida. As perguntas que fazia de quando em vez, para convencer-me a mim próprio de que o tempo passava, encontravam o eco como resposta. Só o uivo prolongado dos «mercadorias» em marcha me dizia que nem tudo dormia naquela noite sem fim, noite que reavivava o pesadelo de outras noites intermináveis.

«Quando llega el emigrante?»

Nem sequer uma palavra, apenas um encolher de ombros.  E sobre todas as coisas, pessoas e palavras que não se disseram, um frio penetrante que empurrava para a inconsciência. 

DÁS ALGUNS PASSOS...

Dás alguns passos, e estás na Via Appia
ou na Tuscolana, onde tudo é vida,
para todos. Ou melhor, é mais cúmplice
dessa vida quem estilo e história
não conhece. Os seus significados
confundem-se na paz sórdida,
na indiferença e na violência. Milhares,
milhares de pessoas, polichilenos
de uma modernidade de fogo, ao sol
cujo significado é também real,
cruzam-se pululando escuras
nos ofuscantes passeios, contra
as Ina-Case enterradas no céu.
Sou uma força do Passado.
O meu amor é só amor à tradição.
Venho das ruínas, das igrejas,
dos retábulos de altar, das aldeias
abandonadas dos Apeninos, dos Pré-Alpes,
onde os meus irmãos viveram.
Ando pela Tuscolana como um louco,
pela Via Appia como um cão sem dono.
Ou olho para os crepúsculos, para as manhãs
de Roma, da Ciociaria, do mundo,
como se fossem os primeiros actos da Pós-História,
a que assisto, por privilégio do registo civil,
da orla extrema de uma qualquer idade
sepultada. Monstruoso é quem nasceu
das vísceras de uma mulher morta.
E eu, feto adulto, mais moderno
do que todos os modernos, ando
em busca de irmãos que já não há.

Pier Paolo Pasolini

domingo, 29 de outubro de 2023

ESCREVER É FLUTUAR NO VAZIO

Quero dizer que escrevemos na escuridão, sem mapas, sem bússolas, sem sinais reconhecíveis do caminho. Escrever é flutuar no vazio.

Rosa Montero em A Louca da Casa

EM BUSCA DE FLORES AZUIS NO DESERTO

1.

A União Europeia pediu este domingo que seja permitida a entrada de ajuda humanitária na Faixa de Gaza "sem obstáculos", incluindo combustível e recursos para a proteção da população afetada pelos bombardeamentos israelitas.

2.

Benjamin Netanyahu criticou este domingo os responsáveis pela segurança do seu país por terem subestimado os riscos de um grande ataque do Hamas, numa mensagem escrita na rede social X que depois apagou e o levou a pedir desculpa.

3.

O exército israelita aumentou o número das suas tropas na Faixa de Gaza, onde estão a ocorrer confrontos com o grupo islamita palestiniano Hamas, anunciou o porta-voz militar de Israel.

4.

O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, mostrou-se este domingo alarmado com a situação "cada vez mais desesperada" na Faixa de Gaza, lamentando que Israel tenha "intensificado as suas operações militares" na região.

5.

A Agência das Nações Unidas para os Refugiados Palestinianos afirmou que milhares de pessoas invadiram os seus armazéns em Gaza para levar alimentos e outros artigos essenciais, divulgou hoje a agência de notícias Associated Press. Thomas White, diretor da agência da ONU em Gaza, disse este domingo que a invasão foi "um sinal preocupante de que a ordem civil está a começar a colapsar", após três semanas de guerra entre Israel e o grupo islamita palestiniano Hamas.

6.

Benjamin Netanyahu, alertou que a guerra contra o movimento islamita palestiniano Hamas na Faixa de Gaza será "longa e difícil", mas o exército "destruirá o inimigo na terra e no subsolo".

7.

O exército israelita avisou este sábado que considera a cidade de Gaza e a região circundante como um "campo de batalha" e ordenou aos residentes que "partam imediatamente" para o sul, através do rio Wadi Gaza. O secretário da Defesa dos Estados Unidos, Lloyd Austin, pediu ao ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, que considere a proteção dos civis em Gaza, instando-o a permitir que a ajuda humanitária entre na faixa.

8.

«A Europa, no centro dos furacões ucraniano e palestiniano, parece vítima de sonambulismo. A vulgaridade da sua elite, sem coragem para olhar de frente a imensa tragédia que nos ameaça a todos, só não envergonha quem nem sabe o que a vergonha é.»

Viriato Soromenho Marques no Diário de Notícias

9.

“Nestes dias angustiosos, a tarefa de Israel é muito mais difícil e muito mais perigosa: destruir um inimigo cobarde, cruel, difuso e insensível ao sofrimento das pessoas”

Manuel Carvalho no Público 21.10.2023

«Da série de adjectivos utilizados neste excerto para caracterizar o inimigo de Israel, parece-me que um deles, “cobarde”, merece o comentário crítico que Susan Sontag fez num artigo que escreveu para a revista New Yorker logo a seguir ao 11 de Setembro: “Pode-se dizer muita coisa dos autores do massacre de terça-feira, 11 de Setembro, mas não que eles foram cobardes”. Com esta afirmação, Sontag não quis desculpabilizar os terroristas que lançaram os aviões contra as Torres Gémeas nem colocá-los do lado da coragem maléfica no mais alto grau. Quis apenas dizer que não devemos abandonar os nossos deveres para com a linguagem, mesmo perante situações extremas em que proferimos palavras com ímpeto guerreiro, para que elas não nos sejam devolvidas como corpo inertes ou armas degradadas.»

Texto retirado de uma crónica de António Guerreiro no Ipsilon do Público.

UM SÍTIO ONDE POUSAR A CABEÇA

Voltar a Manuel António Pina. Sempre.

«Uma das ideias centrais da minha poesia é a morte, o sítio onde pousar a cabeça. O regresso a casa é a melancolia da infância e é também a morte. Do mesmo modo que nascemos do ventre da mãe, há um regresso, uma espécie de percurso circular, ao ventre da terra. Por algum motivo dizemos "a terra natal". E muita gente quer ser enterrada na terra onde nasceu, por mais voltas que tenha dado.»

OS DIAS VISTOS DO CAFÉ DO MONTE


E é como se no monte a morte pesasse mais. Aqui, as mortes pesam mesmo mais (e já foram muitas). Não porque a dor de quem fica seja maior ou menor. Antes porque à perda há ainda que somar as casas que vão ficando para trás silenciosas e vazias, sobras destinadas ao olvido, sem que nenhum choro de criança chegue para apaziguar as memórias de quem se foi embora para sempre.


Ana Cristina Leonardo de uma crónica no Público

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da imagem.

O QU'É QUE VAI NO PIOLHO?


Arrumar caixas e caixotes, por mais arrumações que faça, pouco ou nada se modifica.

Encontrar este catálogo da Cinemateca aquando do centenário do seu nascimento: 18 de Janeiro de 1904.

«Todos querem ser Cary Grant. Até eu quero ser Cary Grant.»

Pessoas da minha idade, gostam de cinema por tantas e tão variadas coisas, mas acima de tudo, digo eu, pelas suas actrizess e actores.

Colaboração de Aida Santos

NOTÍCIAS DO CIRCO

Sondagem da Aximaxe para o DN, JN e TSF:

Partido Socialista: 28,6%

PSD: 24,9%

Os radicais de direita duplicam o resultado das últimas legislativas.

Luís Paixão Martins, especialista em comunicação, diz que as sondagens não servem para prever resultados eleitorais.

Será para acreditar?

Cautelas e caldos de galinha, dizia a minha avó materna.

sábado, 28 de outubro de 2023

POSTAIS SEM SELO


 Por que razão não está Deus nos lugares desfavorecidos?

Lídia Jorge

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


No dia 1 de Outubro de 1998, José Saramago, no Último Caderno de Lanzarote, diz-nos que esteve a rever A Lista de Schindler e deixa a pergunta:

Como se comportam hoje os judeus com os palestinos? Quase como nazis…

ENGANO

O ruído dos motores tornara-se ensurdecedor. Depois, de súbito, tudo ficou em silêncio.

Foi à janela e olhou.

Lá em baixo os carros tinham parado, exactamente em frente à mansão. Abriram-se as portas e as fardas começaram a sair, algumas de bota alta, olhando para cima.

Recuou um pouco, para não ser visto lá de fora. Encostou o cano da stein ao canto da janela e, aguentando com firmeza na anca, atirou a primeira rajada num movimento sabiamente circular e continuou.

Enganara-se. Pela primeira vez.

Vinham apenas dizer-lhe que fora eleito Presidente.

 

Mário-Henrique Leiria em Contos do Gin-Tónic

OS DIAS VISTOS DO CAFÉ DO MONTE


 Não leio notícias da guerra.

Ana Cristina Leonardo na crónica de ontem no Público

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

POSTAIS SEM SELO


É natural estar-se cansado da terra. Quando estivermos mortos, é provável que também nos cansemos do céu.

Louise Gluck

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da imagem.

HÁ COISAS QUE NÃO FAÇO AO MESMO TEMPO


Não sucessivamente, mas em tempos idos o Expresso dispensou dois cronistas que gostava de ler: o Manuel S. Fonseca e a Ana Cristina Leonardo.

Se motivos houve, não os conheço. Sei apenas que os que arranjaram para substituição não lhes chegam aos calcanhares, e alguns que ficaram não os leio.

Felizmente que a Cristina Leonardo assentou praça às sextas-feiras, no Ipsilon do Público, quanto ao Manuel S. Fonseca zarpou para o Correia da Manhã mas são águas, por motivos higiénicos que me ercuso a frequentar. Felizmente que ambos têm blogues: a Página Negra do Manuel Fonseca, Meditação na Pastelaria da Cristina Leonardo.

Há dias cacei este início de crónica na Página Negra:

«Sir Winston Churchill está sentado na retrete. O seu chefe de gabinete, quem fosse, bate-lhe à porta com tanta urgência como a sentada urgência dele. E, para que ouça bem, grita-lhe que está ao telefone o Lord Keeper of the Privy Seal. Esclareço: esse lorde é o quinto na hierarquia dos grandes oficiais do Reino Unido, um braço ou quase uma mão da rainha. Sentado na sanita, Churchill talvez pense que é um Chris Rock em Hollywood e não resiste: “Digam-lhe que só me consigo ocupar de uma merda de cada vez.”».

 

Legenda:  Winston Churchill pintando na Ilha da Madeira

OLHAR AS CAPAS


De Meca Freixo de Espada à Cinta

Aquilino Ribeiro

Livraria Bertrand, Lisboa, 1960

Que sabemos nós os Ocidentais, que nunca passámos para lá do Canal de Suez, do Oriente e do mundo árabe?

MÚSICA PELA MANHÃ


José Dias Coelho nasceu em Pinhel, Guarda, a 19 de Junho de 1923.

Foi assassinado pela PIDE na Rua da Creche em Lisboa no dia 19 de Dezembro de 1961.

Margarida Tengarrinha, mulher de José Dias Coelho, nasceu em Portimão a 7 de Maio de 1928.

Morreu a 26 de Outubro de 1923.

José Dias Coelho e Margarida Tengarrinha usariam o que aprenderam sobre as suas artes para falsificar documentos e apoiar a resistência à ditadura.

 

Antes de ser assassinado, José DiasCoelho estivera numa reunião na casa de Mário Castrim que então morava junto à estação da Carris em Santo Amaro, tal como conta num poema que consta do seu livro Viagens:

 

VIAGEM ATRAVÉS DE UMA FATIA DE BOLO-REI

Corria o ano de 1961.
Estávamos à porta do Natal.
Eram quase duas horas da manhã

e eu perguntei-lhe

se queria comer alguma coisa.

Disse que sim. Mas que

estava com muita pressa.

 

Enquanto vestia a gabardina, trouxe-lhe

uma sanduíche de fiambre

um copo de vinho

uma fatia de bolo-rei.

Estava de pé

comia como se fosse a primeira vez

desde a infância.

 

- Há quantos anos

deixa cá ver

há quantos anos é que eu não comia

bolo-rei?

Este é bom, sabe a erva-doce

e a ovos.

(Caíam-lhe migalhas

aparava-as com a outra mão

em concha)

 

- Comes outra fatia, camarada?

 

- Isso não.

Estou atrasado já.

Mas se ma embrulhasses...

 

Através da janela

do quarto às escuras

fico a vê-lo atravessar a Rua da Creche

seguir pela Rua dos Lusíadas.

 

Nenhum de nós sabia

que estava já erguida a pirâmide do silêncio

à espera dele

num breve prazo.

 

Quando talvez o gosto do bolo-rei

mais forte do que nunca

tivesse ainda na boca.


SONETO IMPERFEITO DA CAMINHADA PERFEITA

Já não há mordaças, nem ameaças, nem algemas
que possam perturbar a nossa caminhada
em que os poetas são os próprios versos dos poemas
e onde cada poema é uma bandeira desfraldada.

Ninguém fala em parar ou regressar
Ninguém teme as mordaças ou algemas

- o braço que bater há-de cansar
e os Poetas são os próprios versos dos poemas.

Versos brandos... Ninguém mos peça agora.

- Eu já não me pertenço: sou da Hora.
E não há mordaças, nem ameaças, nem algemas

que possam perturbar a nossa caminhada
onde cada poema é uma bandeira desfraldada
e os poetas são os próprios versos dos poemas
.

Sidónio Muralha de Passagem de Nível em O Novo Cancioneiro

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

MARGARIDA TENGARRINHA


 Morreu Margarida Tengarrinha.

EM BUSCA DE FLORES AZUIS NO DESERTO


Uma guerra religiosa?

É mais qualquer coisa, e não é pouco.

No Outro Lado das Estantes da Biblioteca da Casa está um calhamaço com mais de 700 páginas que dá pelo nome de História das Religiões de Chantepie De La Saussaye.

Li-o pelos 16/17 anos.

Meti-me depois com o Albert Camus, o Bertrand Russell.

Fiquei a saber que a religião não seria um problema da minha vida.

Respeito quem tem fé, os deuses em que acreditam e lhes atenuam as dúvidas e as dores, tal como alguém deixou dito:

Só Deus sabe da tranquilidade do meu ateísmo e do respeito que tenho pela fé dos outros.

José Saramago no discurso que proferiu aquando da atribuição do Prémio Nobel disse:

«As religiões nunca serviram para aproximar os homens, e a mai absurda de todas as guerras é uma guerra religiosa, tendo em consideração que Deus não pode, ainda que o quisesse, declarar guerra a si próprio.»

1.

Como é que os judeus que tanto sofreram, podem esquecer aquilo por que passaram?

«Estou impressionado com a retórica e as ações de tantos líderes e governos ocidentais, com a exceção particular do Governo da Irlanda, que pela primeira vez estão a fazer a coisa certa. Os crimes de guerra são crimes de guerra mesmo quando cometidos por aliados, e devem ser denunciados pelo que são.»

Estas palavras foram proferidas por Paddy Cosgrave, CEO da Web Summitt que, face ao escândalo que provocaram ente israelitas e seus apoiantes, acabou por se demitir do cargo.

2.

Israel, face a um discurso de António Gueteres, Secretário-Geral da ONU, decidiu negar vistos aos representantes da Organização que queiram dirigir-se ao país e já recusaram o visto a Martin Griffiths.  

 «Chegou a altura de lhes dar uma lição», declarou o embaixador de Israel na ONU, Gilad Erdan.

O que disse Guterres?

«O povo palestiniano foi sujeito a 56 anos de ocupação sufocante. Viram a sua terra constantemente devastada por colonatos, assolada por violência, a sua economia esmagada, as suas populações deslocadas e as suas casas demolidas

O sofrimento do povo palestiniano não pode justificar os terríveis ataques do Hamas, mas que isso, por seu lado, não podia fundamentar as claras violações da Lei Internacional em Gaza.

Israel chegou ao ponde de exigir a demissão de António Guterres do cargo de Secretário Geral da ONU.

3.

«Desde o dia 7 de Outubro, há um estribilho vindo de longe que atravessou trevas e sofrimentos para desaguar mais uma vez no discurso de muitos colunistas regulares ou esporádicos da imprensa: “Não tenho palavras”. Seríamos levados a pensar que se trata da confissão derradeira de um naufrágio linguístico do pensamento, ou do desespero que antecede o sucumbir, como acontece na ópera de Schönberg Moses und Aron, quando Moisés pronuncia a sua última réplica, que fez correr rios de tinta: “O Wort, du Wort, das mir fehlt!” (“Oh palavra, tu palavra, que me faltas”). Mas não, até agora não vi ninguém sucumbir depois de gritar publicamente o seu desespero linguístico; pelo contrário, essa afirmação antecede ou culmina quase sempre uma animada tagarelice.»


António Guerreiro no suplemento Ipsilon do Público

4.

« Não vamos ceder. Permaneceremos na nossa Terra.»

Mahmoud Abbas, presidente palestino.

5.

«Se me perguntar qual é a natureza do conflito entre palestinianos e israelitas hoje, respondo numa palavra: terra, nada mais. E eu quero que os israelitas deixem de se apoderar das nossas terras, porque é isso que fazem. O que realmente magoa é que nós, palestinianos, reconhecemos o Estado de Israel em 1988, há já 20 e tal anos. Aceitámos viver num Estado que se resume a 22% do que era a antiga Palestina. E Israel — que nós reconhecemos — ocupa 78% do nosso território. Todos os dias se constroem mais colonatos judeus e aqui chegam mais pessoas, criando-se uma realidade conflitual no terreno. É uma tragédia em curso.»
Suad Amiry, escritora palestina.

6.

A Câmara dos Representantes dos EUA, de maioria republicana, aprovou, hoje, uma resolução que reforça o apoio a Israel e exige que o grupo islâmico palestiniano Hamas cesse os seus ataques contra o Estado judaico.

Os deputados aprovaram a resolução sobre Israel com 412 votos a favor e 10 contra. O texto reconhece que Israel é um parceiro estratégico dos EUA.

OLHAR AS CAPAS


A Volta ao Mundo em 80 Dias

O Raio Verde

Júlio Verne

Desenhos de Neuville e Bennet

Tradução: A.M. Cunha

Círculo de Leitores, Lisboa. Maio de 1996

Phileas Fogg dera a volta ao mundo em oitenta dias!...

Phileas Fogg ganhara a aposta de vinte mil libras!...

Contudo, como pudera um homem tão exacto, tão meticulosos, cometer este erro de um dia? Por que razão se julgava na noite de sábado 21 de Dezembro, ao desembarcar em Londres, quando na realidade era sexta-feira 20 de Dezembro, isto é, o septuagésimo nono dia depois de ter partido?

Eis a razão do erro, cuja explicação é, aliás, fácil.

Sem o suspeitar, Phileas Fogg ganhara um dia no seu itinerário – e eisto pela simples razão de que fizera a viagem à volta do mundo caminhando para o oriente, dia que, pelo contrário, teria perdido se houvesse caminhado em sentido inverso, isto é, para o ocidente.

Com efeito, marchando para o oriente, Phileas Fogg caminhava para o Sol, e, por conseguinte,, os dias diminuíram para ele na razão de quatro minutos por cada grau que percorrera naquela direcção. Ora, na circunferência terrestre contam-se trezentos e sessenta graus, e estes trezentos e sessenta graus, multiplicados por quatro minutos, dão exactamente vinte e quatro horas, isto é, o dia inconscientemente ganho. Por outras palavras, enquanto Philras Fogg, caminhava para o oriente, vira o sol passar oitenta vezes no meridiano, os seus colegas que tinham ficado em Londres só o viram passar setenta e nove vezes. Fora por isso que naquele mesmo dia, que era sábado e não domingo, como supunha Fogg, eles o esperavam no salão do Reform Club. 

FRIA CLARIDADE

No meio da claridade
Daquele tão triste dia
Grande, grande era a cidade
E ninguém me conhecia

Rostos, carros, movimentos 

Traziam noite e segredo
Só eu me sentia lento 

E avançava quase a medo

Só a saudade da pátria 

Longínqua, me acompanhava
Quisera voltar à serra 

E ouvir o vento e a água brava

Quisera voltar ao bosque 

Onde sei que sou lembrado
Voltar às leiras de Afife
E ouvir a canção tão mansa 

Do pastor que guarda o gado

Mas nas ruas sinuosas 

Ainda o rumor crescera
E eu contemplava assombrado
Minhas mãos ontem com rosas

Minhas mãos hoje de cera

Então passaram por mim 

Uns olhos lindos, depois
Julguei sonhar, vendo enfim 

Dois olhos, como há só dois

Em todos os meus sentidos 

Tive presságios de adeus
E os olhos logo perdidos 

Afastaram-se dos meus

Acordei, a claridade 

Fez-se maior e mais fria
Grande, grande era a cidade 

E ninguém me conhecia

Pedro Homem de Mello

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

NOTÍCIAS DO CIRCO


Jornais e… livros vão fazendo montinho, ao canto da sala, aguardando leituras.

Este é um recorte do suplemento de Economia do Expresso de 29 de Setembro.

Aquilo que poderíamos chamar os horrores da Madame Lagerde.

Pessimistas como sempre, mas com a variante de a madame – e nós! – não sabermos o que iria acontecer a 7 de Outubro no Médio Oriente.

Mas sabemos para já, que para além de outros dramas, o petróleo está aumentar…

No mesmo suplemento era lembrado que, em 2010, a Grécia foi a primeira vítima da crise da dívida. Foi resgatada nesse ano, seguindo-se a Irlanda no mesmo ano e Portugal em 2011.

E Ricardo Reis, professor na London School of Economics, em entrevista, mostrava-se «chocado» por não terem sido feitas as reforma que poderiam imunizar a zona euro contra o regresso de crises semelhantes como as de 2010 e 2011 e declarava:

«Estamos expostos ao risco de nova crise.»

Como classificar esta guerra, este horror?

UM POEMA ANTIGO

Repetir os nomes das árvores:
olaia, bétula, negrilho, alfarrobeira;
a cerejeira do fundo dos muros e os admiráveis
brincos da infância; o carvalho negral
e as folhas ténues trazendo às colinas
os primeiros meses de Abril.
Dizer em voz alta os nomes
dos lugares onde parece
que o mundo se suspendeu
para que pudéssemos regressar
à água e ao lume, à terra
e ao éter e à varanda incandescente
das tardes de Verão: Gardunho
e Segirei, Cacela, Voluntário, Vilarinho
Seco. Roubar à caligrafia
os nomes da manhã acabada de nascer:
nuvem onde poisamos as mãos.

José Carlos Barros 

terça-feira, 24 de outubro de 2023

POSTAIS SEM SELO



 Sabemos como a vida imita os filmes.

Paulo Teixeira

Legenda: imagem do filme Três Cartazes à Beira da Estrada de

                 Martin McDonagh .


O OUTRO LADO DAS CAPAS


Consta que Salazar considerava Aquilino um grande escritor, mas designava-o como um inimigo do regime e mandou perseguir-lhe a obra.

É o caso de Quando os Lobos Uivam. O coronel censório que o analisou, começa logo por escrever:

«O autor intitula este livro de romance, mas com mias propriedade deveria chamar-lhe um romance panfletário, porque todo ele foi arquitectado para fazer um odioso ataque à actual situação política. »  

É uma pena que Aquilino Ribeiro tenha caído completamente no esquecimento, que os jovens não o leiam. Sim, a leitura dos livros de Aquilino não é fácil obriga a um dicionário por perto, mas é um desfilar daquela maravilhosa prosa barroca.    

Castelo Branco Chaves, num livrinho publicado pela Seara Nova:

«O estilo é sem dúvida um dos valores máximos da obra de aquilino, especialmente, pelo imaginoso dêsse estilo. É êste escritor dotado de uma extraordinária imaginação verbal, de um invulgar poder vocabular. E não é só a abundância; é também, e especialmente, o singular poder decorativo das palavras que escolhe, a arte com que as agremia e um assombroso sentido do seu valor prosódico. Tôdas estas riquezas do estilista sobressaem naquelas suas páginas em que o descritivo domina e predomina. O seu estilo está apto para toda a descrição, com um poder de colorido, uma riqueza de tons que assombra e domina.

Possui Aquilino um verdadeiro talento narrativo, uma arte de contar tão perfeita, acabada, de tão sugestivo desenho e vivo colorido que lê-lo é uma maravilha e deleite.»

José Régio:

«Creio que até os que pessoalmente menos estimam a arte de Aquilino nele sentem um Mestre.»

O que Aquilino disse sobre a sua escrita:

«Como conheço tantas palavras? Porque li e reli os clássicos… porque estudei, esmiucei o Camilo… e porque tenho passado a vida a prestar atenção ao que os outros dizem… Sim, sim, a menos de ser surdo, um escritor que tem a peito escrever na sua língua, deve anotar cada palavra, cada expressão que lhe encanta ou lhe fere o ouvido… A língua do povo é um manancial!... Se o escritor assim proceder, verá que, no momento oportuno, todo esse léxico virá por seu próprio pé ao sabor da escrita. Mas foi com os nossos clássicos e com os homens e mulheres da minha região que elaborei a minha língua e, com ela, o meu estilo… que vale o que vale, mas que é o meu

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Quando os Lobos Uivam

Aquilino Ribeiro

Livraria Bertrand, Lisboa, 1958

Edição Fac-simile por Edições A Bela e o Monstro em 2014

Manuel Louvadeus dum galão subiu os degraus. Em cima, no patamar, topou a porta fechada e deteve-se, quando ia para bater, como quem toma fôlego. Com a breca, achava tudo tal qual! Os dez anos de ausência apagaram-se como um sopro perante a obsessiva eternidade que se lhe oferecia ao lance de olhos. Tudo na mesma, a velha aldraba, puída de tanto se lhe pegar, o espelho da fechadura escantilhado a uma banda, a couceira de lenho fibroso e terso, não chamassem ao castanho os ossos de Portugal. Quer à roda, o alpendre de telha-vã e os esteios esgrouviados, a pedra negra da parede em que o musgo pastava seus herpes lucilantes, e ainda o silêncio, ah, este silêncio da moradia rústica, a desoras, humilde, suspicaz e atento como um rafeiro no ninho, quer por largo, os carvalhos do vale e os telhados próximos, se envolviam na antiga paz vesperal do céu e da terra, fusca e intáctil como a cobertura duma gare. Que distância, anos e anos que correram na levada do tempo, e as coisas conservarem-se ali iguaizinhas, estáticas, teimosas no seu ar de encantamento! Talvez mais velhas... Sim, mais velhas, ferradas mais fundo pelos dentes da morte e a despenhar-se na voragem como as telhas do beiral. E haviam, porventura, de resistir aos vaivéns mais que o coirão dum homem, entretanto que se fartava de dar tombo por esses mundos de Cristo?! Este sentimento, a transudar amargor, acabou por confortá-lo e absolver a pobre casa da sua inalterável fisionomia. Tornou a olhar para a aldraba. Bato, não bato, que é que me prende os dedos? Ouviu uma voz... a voz de Filomena, e estacou. Era lua cheia, pelos fins de Março marçagão, na altura do ano em que os dias são iguais às noites, e pelo tinir dos garfos e pausas intermitentes assentou para consigo que estavam a cear. «Miga bem a tigela!», dizia a voz materna, amorável no seu sotaque ralhado. «Miga bem, Jaime, que só tens caldo!» Depois as vozes calaram-se. Ressoam assim os córregos quando descem das serras e tropeçam nos seixos solevantados. Mas ele que tinha que especular?! Decidiu-se. Bateu uma... duas... três vezes, e postou-se, parado, à escuta, como os mendigos depois de rezarem o padre-nosso. Mentalmente pôs-se a orçar o tempo que ia passando pelo tempo que levariam a apreender o apelo, a erguer-se da esteira, a poisar a malga, e a abrir-lhe a porta. Demoravam- -se... Pareceram-lhe delongas a mais. Não teriam ouvido! Considerando afinal que as pancadas, percutidas frouxas e irresolutas, não se tivessem imposto à atenção, martelou rijo e afoito. Agora sim, uma voz juvenil, abelhuda, destas que no cortiço estão sempre prontas a acudir ao rumor, ergueu-se: — Quem está lá?

— Gente...