Quando Cátia Mazari Oliveira, aliás "A Garota Não", iniciou a leitura de um poema que escreveu para agradecer a atribuição do Globo de Ouro para Melhor Intérprete da 27.ª edição da iniciativa da SIC, arrancou uma primeira reação de aplauso do público no quarto dos 12 versos desse texto, quando disse: "Saibamos agradecer aos bancos os juros que nos cobram na habitação."
Na véspera desta cerimónia, intitulada
de gala, milhares de pessoas mobilizaram-se para acorrerem, numa vintena de
cidades, a manifestações pelo direito à habitação. Em Lisboa e no Porto foram
mesmo grandiosas.
Viram-se cartazes com linhas deste tipo:
"Os nossos bairros não são os
vossos negócios";
"Sob a capa do desenvolvimento e do
novo capital a angústia é social";
"Se não há habitação existe direito
à okupação"
...entre muitas outras no mesmo tom,
várias delas comparando salários muito baixos com elevados preços de
arrendamentos ou de prestações a pagar aos bancos.
Há uma naturalidade hiperbólica na
mecânica das manifestações políticas e sociais: às frases fortes dos cartazes,
diretas e acusatórias, junta-se o grito de palavras de ordem reivindicativas, o
apupo aos poderosos ou oponentes políticos, o cântico de históricas canções de
protesto, a exigência de soluções imediatas e, até, a ameaça do recurso à
violência desesperada - tudo isso é normal, neste enquadramento democrático, há
já muitos anos (em Portugal há quase 50).
Quando A Garota Não, no palco brilhante,
frívolo e luxuoso do Coliseu dos Recreios, disse, na mesma voz meiga com que
canta a sua arte, a frase "Saibamos agradecer aos bancos os juros que nos
cobram na habitação" simbolizou com serenidade a reivindicação, o grito, o
apupo, o cântico, o desespero dos manifestantes das ruas do país, assustados
com a escuridão de um cenário de miséria que lhes enquadra uma vida demasiado
real.
Cátia começou por dizer que vinha do
Bairro 2 de abril (que é, também, o nome do seu segundo LP), em Setúbal, talvez
com a intenção de explicar que sentia que o mundo dela era mais o da gente lá
de fora do que a daquele planeta que a homenageava. Mas procurou a adesão das
pessoas que estavam à sua frente, não as alienou, o que seria arrogante e
mal-agradecido. Procurou antes que aqueles homens vestidos de smoking e aquelas
mulheres de vestido de noite, talvez indiferentes ou até críticos das
preocupações e posições políticas e sociais expressas em muitas das suas
cantigas, tivessem, pelo menos, uma hipótese de sentirem empatia com as
motivações da cantautora.
A ovação final parece comprovar que até houve mais do que isso, houve mesmo identificação entre plateia e oradora. Ela conquistou-os. Mais importante que isso: mais de um milhão de pessoas, na TV, foi também envolvida por esse ambiente e essa aprovação.
Numa entrevista ao site Setenta e
Quatro, Cátia disse que se sente mais uma cantora inconformada do que uma
cantora de intervenção...
Eu acho que ela é uma cantora de
protesto. Disse até, num programa de rádio que faço na Antena 1, que A Garota
Não "representa uma inovação na canção de protesto portuguesa, quer na
forma musical e interpretativa, quer nos textos que escreve ou escolhe para
interpretar, quer na maneira como se apresenta em palco ou como fala com o
público.
Ela é clara nas posições que toma, mas,
ao mesmo o tempo, recusa ser agressiva com o ouvinte ou o espetador - o
protesto, a denúncia, a indignação estão lá, mas estão subordinados à
sensibilidade, ao humanismo, à dignidade, à ternura e à liberdade com que quase
todos nós, naturalmente, nos identificamos".
Para José Mário Branco, há 50 anos, a
cantiga era uma arma onde, dizia a letra da música com esse nome:
"Tudo depende da bala
E da pontaria
Tudo depende da raiva
E da alegria."
Para A Garota Não, cantora de protesto
em dias onde a raiva é a bala de prata da injustiça social, a meiguice é a
melhor arma das suas canções.
PS: Deixo, para registo, o texto que foi
lido por Cátia Mazari Oliveira:
"Vivemos o tempo dos Budas, das
flores de plástico e das cómodas douradas,
E rimos muito alto, por cima da música
alta das esplanadas.
Vivemos o tempo da Kombucha, do
coaching, das soft skills e da gratidão;
Saibamos agradecer aos bancos os juros
que nos cobram na habitação.
Vivemos o tempo mais corrido de sempre,
Das metas, dos objetivos, do "nem
que me esfarrape";
Não há esforço que não valha a pena,
seremos todos Luft, Tap.
Vivemos tempo de maioria absoluta, de
posso e mando, de meritocracia.
O mérito mede-se a partir dos dentes,
das notas do colégio ou da demagogia.
Obrigada por esta oportunidade, um Globo
de Ouro nas mãos de um ser tão falho.
Há quem tenha muita sorte.
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