Quando
os Lobos Uivam
Aquilino Ribeiro
Livraria Bertrand, Lisboa, 1958
Edição Fac-simile por Edições A Bela e o
Monstro em 2014
Manuel
Louvadeus dum galão subiu os degraus. Em cima, no patamar, topou a porta
fechada e deteve-se, quando ia para bater, como quem toma fôlego. Com a breca,
achava tudo tal qual! Os dez anos de ausência apagaram-se como um sopro perante
a obsessiva eternidade que se lhe oferecia ao lance de olhos. Tudo na mesma, a
velha aldraba, puída de tanto se lhe pegar, o espelho da fechadura escantilhado
a uma banda, a couceira de lenho fibroso e terso, não chamassem ao castanho os
ossos de Portugal. Quer à roda, o alpendre de telha-vã e os esteios
esgrouviados, a pedra negra da parede em que o musgo pastava seus herpes
lucilantes, e ainda o silêncio, ah, este silêncio da moradia rústica, a
desoras, humilde, suspicaz e atento como um rafeiro no ninho, quer por largo,
os carvalhos do vale e os telhados próximos, se envolviam na antiga paz
vesperal do céu e da terra, fusca e intáctil como a cobertura duma gare. Que
distância, anos e anos que correram na levada do tempo, e as coisas
conservarem-se ali iguaizinhas, estáticas, teimosas no seu ar de encantamento!
Talvez mais velhas... Sim, mais velhas, ferradas mais fundo pelos dentes da
morte e a despenhar-se na voragem como as telhas do beiral. E haviam,
porventura, de resistir aos vaivéns mais que o coirão dum homem, entretanto que
se fartava de dar tombo por esses mundos de Cristo?! Este sentimento, a
transudar amargor, acabou por confortá-lo e absolver a pobre casa da sua
inalterável fisionomia. Tornou a olhar para a aldraba. Bato, não bato, que é
que me prende os dedos? Ouviu uma voz... a voz de Filomena, e estacou. Era lua
cheia, pelos fins de Março marçagão, na altura do ano em que os dias são iguais
às noites, e pelo tinir dos garfos e pausas intermitentes assentou para consigo
que estavam a cear. «Miga bem a tigela!», dizia a voz materna, amorável no seu
sotaque ralhado. «Miga bem, Jaime, que só tens caldo!» Depois as vozes
calaram-se. Ressoam assim os córregos quando descem das serras e tropeçam nos
seixos solevantados. Mas ele que tinha que especular?! Decidiu-se. Bateu uma...
duas... três vezes, e postou-se, parado, à escuta, como os mendigos depois de
rezarem o padre-nosso. Mentalmente pôs-se a orçar o tempo que ia passando pelo
tempo que levariam a apreender o apelo, a erguer-se da esteira, a poisar a
malga, e a abrir-lhe a porta. Demoravam- -se... Pareceram-lhe delongas a mais.
Não teriam ouvido! Considerando afinal que as pancadas, percutidas frouxas e
irresolutas, não se tivessem imposto à atenção, martelou rijo e afoito. Agora
sim, uma voz juvenil, abelhuda, destas que no cortiço estão sempre prontas a
acudir ao rumor, ergueu-se: — Quem está lá?
— Gente...
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