sexta-feira, 31 de julho de 2020

OLHAR AS CAPAS



Os rostos da Escrita

Daniel Mordzinski
Prefácios: Luís Sepúlveda, Lídia Jorge e João Soares
Capa: Xavier Neves
Asa Editores, Porto, Dezembro 2000

Quando aos dezoito anos, retratei pela primeira vez um escritor, Jorge Luís Borges, não podia sequer imaginar a aventura que se abria no meu caminho de fotógrafo. Fui o primeiro a surpreender-me ao descobrir, muitos anos depois, que a magia dessa fotografia dependia do halo de luz que parecia voltear em torno de uma mão anónima. Mais tarde teria tempo de confirmar que cada foto é um salto para o desconhecido, em que factores imprevisíveis modelam e matizam uma identidade.
Ao sair da Argentina, partilhei viagens e atribulações com amigos escritores e percebi, entre outras coisas, que também o seu trabalho oscila entre o que querem dizer e o que as palavras lhes permitem.
O meu encontro com Luís Sepúlveda (e depois dele com tantos e tantos escritores) confirmou a intuição de que a minha vida teria a ver com as duas margens do Atlântico. Além disso, Sepúlveda, com o seu talento para fazer de cada pessoa e de cada história uma experiência fundamental e irrepetível, deixou-me perceber que era isso também que eu pretendia: que cada foto fosse um m omento único e que nesse momento coubesse, por inteiro, o próprio rosto da escrita.

ÂNSIA



Não me deixem tranquilo
não me guardem sossego
eu quero a ânsia da onda
o eterno rebentar da espuma
As horas são-me escassas:
dai-me o tempo
ainda que o não mereça
que eu quero
ter outra vez
idades que nunca tive
para ser sempre
eu e a vida
nesta dança desencontrada
como se de corpos
tivéssemos trocado
para morrer vivendo

Mia Couto

quinta-feira, 30 de julho de 2020

OLHAR AS CAPAS



A Música do Acaso

Paul Auster
Tradução: Ana Patrão
Capa: Teresa Cruz Pinho
Colecção Novos Continentes nº 50
Editorial Presença, Lisboa, 1992

Tinha gasto muito dinheiro irreflectidamente no princípio, concedendo-se idas a todo o tipo de restaurantes e hotéis de primeira classe bebendo bons vinhos e comprando brinquedos sofisticados para Juliette e para os primos, mas a verdade era que Nashe não tinha uma ambição pronunciada por luxos. Vivera sempre demasiado próximo do osso para pensar muito nisso, e mal a novidade da herança se esgotara, regressou aos seus velhos hábitos modestos: comendo refeições simples, dormindo em motéis baratos, gastando quase nada em roupas. Ocasionalmente esbanjava em cassettes de música ou livros, mas era o máximo. A verdadeira vantagem do dinheiro não era ter-lhe permitido comprar coisas: era o facto de lhe ter permitido parar de pensar em dinheiro. Agora que era forçado a pensar nele outra vez, decidiu fazer um contrato consigo mesmo. Continuaria a viajar até lhe sobrarem vinte mil dólares, e depois voltaria para Berkeley e pediria a Fiona para casar com ele. Não hesitaria: desta vez faria mesmo isso.

SUBITAMENTE AS PALAVRAS



 subitamente as palavras romperam de nós com
uma fúria que não lhes conhecíamos

quebraram os dolorosos casulos de domingo
quando todos os amigos decidiam partir
deixando-nos     naquela inesperada ausência
muito mais perdidos

mas pelo meio de todas as palavras agrestes                     
a tua recordação é de repente a palavra                       
mais agreste de todas
que risca no meu silêncio um destino de luas e marés     
a que é perigoso habituar-me assim
e     talvez por isso    avanço com dificuldade
pelas letras esquivas do teu nome
como se um animal bravio o rasgasse dentro de mim
e ele se tornasse     de uma hora para a outra
no meu crime mais imperdoável

como se te erguesses e dissesses ficarás
condenada por todos os desertos que espalhaste
sobre os meus dias       e terás a cor
de todas as feridas que abriste no meu sangue
e as tempestades vão alagar o teu ventre que não soube
resguardar os filhos que nele deixei
(como me disseste na única carta que de ti guardei e tu
sabe-se lá porquê        nunca escreveste)

e as palavras vão servir-nos apenas de passagem
para um mundo donde não se regressa
e o teu corpo ficará cada vez mais longe
- e as pessoas que em tempos nos amaram muito
vão agora escrever a nossa história
com as gotas de luz que sobraram
de todos os solstícios

adormecendo às vezes ligeiramente
entre dois capítulos mais tristes 

Legenda: pintura de Henri Fantin-Latour

quarta-feira, 29 de julho de 2020

OLHAR AS CAPAS


O Medalhão Perdido

Nicholas Blake
Tradução; Maria do Carmo Pizarro
Capa: Lima de Freitas
Colecção Vampiro nº 311
Livros do Brasil, s/d

Uma manhã de Janeiro. A luz do sol infiltrava-se através das janelas baixas da vivenda, dando às traves de madeira, à grande chaminé de pedra e às esteiras de juta holandesa, dispostas sobre o chão de lajes, um ar de frescura tal que pareciam ter sido acabadas de limpar. Depois da chuva persistente dos últimos meses, essa luz do sol era mais do que uma bênção, era um milagre.
«Quando se vive no campo», pensava Georgia, «faz-se verdadeiramente parte das estações do ano: nos meses sombrios, hiberna-se, a circulação do sangue torna-se mais lenta e o espírito abandona-se à indolência; depois uma bela manhã, sente-se uma agitação no ar, surge o sol e a vida começa a processar-se num ritmo diferente.

QUANDO ÀS HORAS DO FINDAR DO DIA



                                                                          A Meu Pai
                                                                         No Santo Dia dos Finados


Pai! quando às horas do findar do dia,
A bruma vaga cobre, triste, o Espaço
E a mim me envolve na melancolia…

Pai! Diz-me: sabes que secreto laço
Me prende, a mim, que vago n’este mundo,
Triste, avergado sob o atroz cansaço,
A ti, que pairas lá no céu profundo?…

Pai! sou teu filho! – sou teu filho, sinto…
Não me renegues – sou teu filho, oh! Pai!…
Vês como eu vago n’este labirinto,
Perdido, triste, alucinado, – aí! –
Tal como a nave em que Israel vagou,
E, erma, ao acaso, sobre as aguas vai,
Sem já saber que força me guiou,
Sem que me guie já vontade alguma,
N’esta derrota que seguindo vou?

Pois, como à nave que não tem nenhuma,
Nenhuma sombra de tripulação,
Sorri ainda Vésper, de entre a bruma…
Tal ao meu enlutado coração,
Que já não guia nem um só anseio,
Sorri, ao longe, de entre a cerração,
Oh! Pai! O afecto do teu nobre seio!

Pai! meu sincero, meu finado amigo!…
Dormes, no Nada majestoso e triste,
Ou vives ‘inda, como a Dor existe?…

Pai! quem me dera, logo, ir ter contigo!…

Pai! A Desgraça se enlaçou comigo,
Desde que, um dia, oh Pai! tu me fugiste!…
Pai!, se, n’um voo, pelo céu, partiste,
Dize-me o rumo, quero ver se o sigo…

Pai! Tua pobre campa, tão singela,
Talvez não tenha, como as outras têm,
No dia de hoje, quem n’a enflore a ela…

Ai! que é tão triste não se ter ninguém!

Ao menos, Eva, o nosso encanto, – vê-lá? –
E Pedro, e Vasco… São contigo além!

Ângelo Lima

terça-feira, 28 de julho de 2020

AVISO À NAVEGAÇÃO



Nestes 10 anos de Cais do Olhar apenas abandonámos o antro do bicho, por 8 dias, no primeiro ano. 
Vamos, agora, repetir a cena por três dias.
O que por aqui se publica nestes dias, é material que já estava agendado.
Como não temos equipamentos sofisticados, respostas a comentários, se os houver, acontecerão no próximo sábado.
Obrigado e voltem sempre.

UM HOMEM


de repente
como uma flor violenta
um homem com uma bomba à altura do peito
e que chora convulsivamente
um homem belo minúsculo
como uma estrela cadente
e que sangra
como uma estátua jacente
esmagada sob as asas do crepúsculo
um homem com uma bomba
como uma rosa na boca
negra surpreendente
e à espera da festa louca
onde o coração lhe rebente
um homem de face aguda
e uma bomba
cega
surda
muda

António José Forte

segunda-feira, 27 de julho de 2020

OLHAR AS CAPAS


 Sem Mentiras

Robert Wilson
Tradução: Jorge Pereirinha Dias
Capa: Rui Garrido
Publicações Dom Quixote, Lisboa, Setembro de 2019

- E quanto a essa conspiração de direita dentro da CIA? – perguntou ele, voltando novamente para junto dela. – Tu acreditas nisso?
- Eu fui oficial dos serviços secretos no Iraque. Em Bagdad. Vi o que passava.
- Estás a falar da manipulação das informações que nos conduziu à guerra.
- Não estou a falar de dinheiro.
- Dinheiro? – perguntou Boxer. – Toda a gente sabe que há sempre imenso dinheiro para uma guerra e nunca há o suficiente para um hospital.
- Eu estava na Zona Verde quando os C-130 trouxeram doze mil milhões de dólares em dinheiro numas paletes de carga – disse Louise. – Vi a maneira como o dinheiro era distribuído – os subordinados, as comissões, o dinheiro enfiado em mochilas e transportado por Bagdad em veículos de caixa aberta. E percebi as motivações desta guerra. Não eram as armas de destruição em massa, não era a protecção de Israel, não era regatar o Iraque de um ditador, nem proteger os interesses petrolíferos dos EUA, nem promover a democracia no mundo árabe, nem nenhuma das coisas que os nossos governos nos disseram acerca do assunto
- O que era então?
- Era que algumas pessoas sem escrúpulos sentiram uma grande necessidade de ganhar muito dinheiro – disse Louise, - E vi com os meus próprios olhos que havia uns certos agentes da CIA que andavam a facilitar isso e todos eles tinham relações muito fortes com uma empresa de segurança privada chamada Anchorlight, ou Kinderman Corporation, ou ambas. E, como sabes, ambas essas organizações contêm pessoas com ideias de extrema-direita.

CAFÉ


Era um espaço construído de olhares e de ruídos.
Antigo.
Delimitado pelo casulo da menina da tabacaria, com postigo para a rua, e o guarda-vento que lhe defendia a privacidade de gueto masculino.
As mesas dispunha-se ao longo das paredes.
Sublinhadas por fotografias desactualizadas, em conflito com a modernidade dos autocolantes.
Mesas privadas, e de vítima.
Infinitamente repetidas nos espelhos, que as devolviam aos interessados.
Tinha residentes:
o cauteleiro, que apregoava a felicidade avulsa, e um engraxador, de fato-macaco e sapatos cansados de mostrarem o brilho disponível dos seus gestos.
Sempre que podia, fazia-se ouvir com uma tira de pano de bilhar.
Afirmava-se, interrompendo as conversas dos senhores:
o médico, o advogado, o gerente do banco, o rico e o informador.
Também havia um artista.
Cafés sombrios e delatores, da Beira.
Ou catedrais de lavradores, como os de Évora, em dia de são porco.
Cresci neles, com uma onça de tabaco e um caderno, autorizado por um café de saco.
Nem todos foram pervertidos em bancos, ou travestidos em lugares de culto.
Mas entre as saudades do cheiro e do espaço, pondero a maldade e a arrogância da frequência.

Jorge Fallorca em Longe do Mundo

Legenda: pintura de Karen Offutt

domingo, 26 de julho de 2020

POSTAIS SEM SELO


A minha especialidade é viver.

E.E. Cummings

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.

ETECETERA


Há muito que a justiça portuguesa se passeia pelas ruas da amargura.

Maria João Marques deixou escrito no Público:

«Sabem o que me lembram os vários juízes arguidos na Operação Lex e a expulsão da magistratura de Rui Rangel? A Igreja Católica com os escândalos de pedofilia.
Os padres católicos entretiveram-se durante décadas especializando-se em recomendar uma moral sexual draconiana – e abusiva – aos crentes do mundo todo, em vez de se dedicarem, como deviam, a trabalhar em prol dos mais pobres e fracos.»

O Ministério Público vai acusar Ricardo Salgado de liderar organização criminosa.

José Maria Ricciardi, outro membro do gang BES, que tem passado pelo intervalo dos pingos da chuva, com um descaramento infinito, manifestou-se perplexo, e disse aos jornalistas «Não imaginei que a situação fosse tão má!»

Mas este tipo quer enganar quem?

Já o banco estava nas lonas, corria o ano de 2008, membros do conselho superior do banco, atribuíram a si próprios, e cada um, 29 milhões de euros para que a família pudesse continuar a brincar aos pobrezinhos na quintarola da Comporta.

A acusação levou seis anos a ser montada e está lavrada em 4.117 páginas. Já não sei quantos milhões e milhões de euros estão em jogo.

As televisões aproveitaram para recordar as palavras do presidente Cavaco Silva e do presidente do Banco de Portugal Carlos Costa, garantindo que o BES era completamente credível e os portuguese podiam apostar nele.

Também Pedro Passos Coelho e Maria Luís Albuquerque a garantirem que os portugueses não pagariam um cêntimo que fosse pelo Novo Banco.

1.
Centenário do nascimento de Amália Rodrigues.
Manuel Alegre a dizer no Diário de Notícias que Amália e Camões foram feitos um para o outro.
Porque não te calas, como dizia o outro.

2.

Éramos os melhores a enfrentar a pandemia, os jornais lá fora não falavam de outra coisa. 

Agora uma série de países dizem que não somos um destino recomendável.

O presidente Marcelo não entende como isto nos está a acontecer.

3.

O Governo desaconselha os portugueses de fazerem férias em destinos longínquos e avisa mesmo que não haverá operações de repatriamento, ao contrário do que aconteceu no início da pandemia.
4.

Li há dias que os gastos com graffittis, que a CP já despendeu em 10 anos, dava para comprar um comboio.

5.

Os clubes das primeiras divisões europeias vão ter quebras de 4 mil milhões de euros em receitas (excluindo transferências) nas épocas 2019/2020 e 2020/2021, conclui um estudo da Associação Europeia de Clubes sobre o impacto da pandemia do novo coronavírus.

6.

O José Gomes Ferreira disse um dia que a Poesia não se premeia persegue-se.

Alguém, que não lembro o nome, disse que os prémios literários são um reconhecimento, agradecem-se e no dia seguinte o trabalho continua.

Pois os prémios valem o que valem e nunca lhes dei qualquer importância.

Tudo isto para vos dizer que o escritor Mário Cláudio, com Tríptico de Salvação, ganhou, pela terceira vez, o Grande Prémio de Romance e Novela de 2019.

Foram admitidas 60 obras a concurso e nos finalistas estavam, para além de Mário Cláudio, A visão das plantas, de Djaimilia Pereira de Almeida, O Gesto que Fazemos para Proteger a Cabeça, de Ana Margarida de Carvalho, Homens de Pó, de António Tavares, e A Luz de Pequim, de Francisco José Viegas.

Por três vezes, José Saramago, viu negada a atribuição deste prémio.

Quando, por fim, o recebeu, com o dinheiro do prémio mandou comprar livros para serem enviados para os Palop.

Mário Claudio é um homem amável, um bom escritor, mas algo distante de, por três vezes, ser vencedor do prémio.

Coisas!... ou para acabar de vez com a cultura, como diria um tal de Woody Allen.

ANTOLOGIA DO CAIS


Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram sendo publicados.

RELACIONADOS

Quando, em Outubro de 1965, a cidadã Ivone Maneiras teve conhecimento que Amália Rodrigues publicara um disco a cantar Luís de Camões, escreveu uma carta ao Director do Diário Popular.

A carta foi publicada na edição de 23 de Outubro de 1965:


O vespertino aproveitou a carta para fazer um inquérito a algumas personalidades.

Passados todos estes anos, consigo compreender a posição do poeta mas não concordo com ela. Aliás, José Gomes Ferreira teve para com Luís Cília uma posição de desagrado com as músicas que Cília fez para poemas seus.

Um destes dias irei buscar essas amargas palavras de José Gomes Ferreira.

Este é o recorte do inquérito feito pelo Diário Popular:





A talhe de foice, e por mera curiosidade, publicamos uma carta patética de um colaborador de A Voz, jornal católico, monárquico e salazarista, sobre a lírica de Camões e a voz de Amália.

O recorte pertence à edição de 16 de Fevereiro de 1966:


Texto publicado em 31 de Março de 2019.

sábado, 25 de julho de 2020

ANTOLOGIA DO CAIS


Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram sendo publicados.

AMÁLIA CANTA LUÍS DE CAMÕES

Há uma Amália antes e depois de Alain Oulman.

Não sou dado a grandes conhecimentos da matéria, mas se assim penso assim, escrevo.

Quando, em Outubro de 1965, Alain Oulman musicou poemas de Camões para a voz de Amália, Amália Canta Camões, os intelectuais tiveram reacções diversas.

José Gomes Ferreira não concordou e respondeu assim ao Diário Popular:

«Não estou disposto a ouvir. Não quero ouvir. Mas acho mal. Existem obras-primas da música portuguesa, como por exemplo, “Os Madrigais”, de Luís de Freitas Branco, inspiradas em poesias de Camões. Claro que também existiu a Engraxadoria Camões. Para cada um - seu paladar».

Se bem que tenha um número bem razoável de poemas seus musicados, José Gomes Ferreira nunca simpatizou com a ideia.

A excepção é o trabalho com Fernando Lopes Graça.

A tal ponto que, em 28 de Setembro de 1970, enviou à Sociedade de Escritores e Compositores Teatrais a seguinte carta:

«De regresso de férias, encontrei a vossa carta de 21 de Setembro de 1970 a que me apresso a responder, com os meus melhores cumprimentos.
O pedido de autorização ao sr. José António Matildes para musicar o meu poema de Poesia III, “Ó pinheiro verdadeiro” honra-me muito, mas infelizmente não posso conceder-lha por motivo de “princípios estéticos” pois discordo inteiramente da chamada música ligeira quando adaptada aos meus versos, escritos sem essa intenção.
Claro que esta recusa nada tem de pessoal. Peço-lhe até que explique ao Sr. José António Matildes que as canções e as baladas aparecidas recentemente na rádio e em discos com versos meus são todas clandestinas, feitas sem a minha autorização. Ao Sr. José António Matildes devo, pelo menos, essa delicadeza que muito me sensibilizou.
Em resumo: incito-o a fazer a música que lhe apetecer sem me pedir licença!»

Em contraste, é interessante ir buscar o exemplo de António Gedeão que, nas suas Memórias, escreve que muito deve a Manuel Freire e às músicas que fez para poemas seus:
 «Suponho que foi pela sua actuação que a minha poesia conseguiu tão grande êxito generalizado.»

Texto publicado em 30 de Março de 2019


OLHAR AS CAPAS


Montanha Mágica

Thomas Mann
Tradução: Herbert Caro
Revisão: Maria Graça Fernandes
Capa: Bernardo Marques
Colecção Dois Mundos nº 32
Livros do Brasil, Lisboa, 1958

E assim, no tumulto, na chuva, no crepúsculo, perdemo-lo de vista.
Adeus, Hans Castorp, bravo menino mimado da vida! A tua história terminou, Acabámos de conta-la. Não foi nem breve nem longa, é uma história hermética. Contámo-la por amor a ela mesma, não por amor a ti, porque tu era simples. Mas, afinal, era a tua história, como te coube em sorte. Deves ter certas qualidades porque a viveste, não dissimulamos a simpatia pedagógica que, ao narrá-la nutrimos por ti, e que seria capaz de induzir-nos a tocar delicadamente o canto de um olho com a ponta do dedo, ao pensar que nunca mais tornaremos a ver-te nem ouvir-te.
Adeus! Agora vais viver, ou morrer! Tens poucas probabilidades. Este baile macabro a que foste arrastado durará ainda alguns anos criminosos e não queremos apostar muita coisa na tua possibilidade de escapar. Para falar com franqueza, não sentimos grandes escrúpulos ao deixar esta questão sem resposta. Certas aventuras da carne e do espírito, que educaram a tua simplicidade permitiram-te vencer no domínio do espírito aquilo a que não escaparás certamente no domínio da carne. Momentos houve em que nos sonhos que tu «governavas», viste brotar da morte e da luxúria do corpo um sonho de amor. Será que dessa festa da morte, dessa perniciosa febre que incendeia à nossa volta o Céu desta noite chuvosa, também o amor surgirá um dia?

sexta-feira, 24 de julho de 2020

NINGUÉM FALOU DISTO


Num café decente, mesmo o pior e mais ganancioso dos ricos se coíbe de insultar alguém e os pobres agradecem e comportam-se com a maior das modéstias. O ambiente de um verdadeiro café implica estas características: camaradagem, satisfação do estômago, boa disposição e melhor comportamento. Ninguém falou disto, nessa noite, na loja de Miss Amélia, mas todos o sabiam, embora, é claro, nunca, até àquele dia, tivesse existido um café na terra.

Carson McCullers Em Balada do Café Triste

Legenda: imagem Shorpy

quinta-feira, 23 de julho de 2020

CONVERSANDO


De muito novo comecei a ler Alves Redol e sempre gostei do que li. 

Como hábito antigo, para além de ler as obras dos autores de que gosto, sempre me habituei a ler o que sobre esses autores está escrito.

No caso de Redol, li o que Alexandre Pinheiro escreveu em Os Romances de Alves Redol, e no caso de A Barca dos Sete Lemes, que é o livro de hoje, recordo:

«A Barca dos Sete Lemes é um belo título para um livro, mas aquele que mais estaria de acordo com o seu conteúdo seria então: «A Arte de Transformar Um Homem do Povo num Carrasco.»

Do que li, há a conclusão de que Alves Redol era um homem de carácter, um homem ávido de gente.

Ou como escreveu José Gomes Ferreira::

«Senhores e senhoras: o segredo da Arte de Redol resume-se nesta frase: amou verdadeiramente o povo.»

Carlos de Oliveira deixou escrito em O Aprendiz de Feiticeiro:

«Quem fala do povo com a paixão obsidiante de redol, a sua teimosia, os seus momentos de grandeza, incomoda e vive na incomodidade. Isto explica, julgo eu, certos preconceitos políticos e literários, certo musgo que a humidade circunstancial (às vezes sem querer, mas outras de propósito) tentou gerar em torno de uma obra notável sob vários aspectos: autenticidade, fôlego, importância histórico-literária.

José Cardoso Pires estava em Londres quando Redol morreu:

«Esta manhã chegou-me o telegrama da Edite. Morreu o Redol. Fiquei diante da janela do quarto, a olhar, ou a não olhar, sei lá, o pátio coberto de neve - e tudo branco, tudo puro, o nada, e a notícia ali na minha mão a dizer-me que tínhamos' perdido o nosso velho António, o nosso querido e paciente amigo.
Não adianta, bem sei, desabafar-se assim. Mas na morte de qualquer escritor português digno há sempre um remorso do tempo, sempre. Há um outro cancro que vem detrás e que é a injustiça e o suportar em silêncio. E esse mal, quando não vence uma verdade interior, mata primeiro do que o vírus decretado pelas certidões de óbito.
As vezes que falámos nisto, eu e o Redol. Ainda há pouco, numa carta em que se despedia de mim para sempre, lá vinha esta verificação magoada e terrivelmente simples: «Sou um dos que vai morrer na incomunicabilidade com o seu tempo».

Grande parte da sua obra, redol escreveu-a durante as horas dos seus frugais almoços ou durante as viagens de comboio entre Vila Franca de Xira e Lisboa.

Mário Dionísio chamou-lhe um operário das letras e José Carlos Ary dos Santos deixou este magnífico retrato:

Porém    se por alguém não foi ninguém
cantou e disse flor canção amigo
a si o deve.    A si e mais a quem
floriu cresceu    cantou lutou consigo.

Homem que vive só    não vive bem
morto que morre só é negativo
morrer é separar-se de ninguém
e contudo    com todos    ficar vivo.

Nado-vivo da morte.    É isso.    É isso.
Uma espécie de forno de bigorna
de corpo imorredoiro que transforma
em fusão o metal do compromisso:
Forjar o conteúdo pela forma:
marrar até morrer.    E dar por isso.

OLHAR AS CAPAS


A Barca dos Sete Lemes

Alves Redol
Prefácio: Alexandre Pinheiro Torres
Publicações Europa-América, Lisboa, Junho de 1977

A primeira vez que o ouvi deu-me vontade de gritar que o levassem. «Por que razão o tinham posto naquela cadeia?» Perguntara-lhe o motivo da sua prisão e ele não hesitara um instante, como se contasse uma façanha que o fizesse célebre.
Repugnou-me a sua amizade e quis evitá-lo
Mas quando eu estava encostado à rede, que fica entre nós e a grade, seguindo as evoluções dos pombos da igreja, que vinham de lá para a cadeia, como se tomassem banho na luz macia da tarde, ouvi a sua voz trémula e apagada por trás de mim: «O senhor também gosta de pombos?...»
Não entendi a pergunta naquela boca e não pude responder-lhe.
«Também eu gosto… É o bicho mais bonito que há na Terra… O senhor já comeu carne de pombo?... Eu nunca fui capaz. Acho que devia ser proibido matá-los… Quando me casara hei-de fazer um pombal.»
Sentia-me incapaz de lhe falar.
«Foi no asilo que isso sucedeu. Depois do que o senhor escreveu, estive num asilo. Eu gostava muito de um pombo que a D. Branca tinha numa gaiola, à entrada do recreio. Um dia tirei o pombo lá de dentro e pus-me a fazer-lhe festas. O bicho arrulhava nas minhas mãos, quando ouvi os passos dela no corredor. O senhor talvez nãi saiba, mas aquela mulher fazia-me medo. Meti-me a correr dentro da retrete e, para que ela não desse por nada, torci o pescoço ao pombo. Ainda hoje as mãos me doem… Ela nunca soube, mas eu tive o castigo. Toda a minha vida ando a sofrer o castigo dessa morte.»