Para assinalar os 10
anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar
alguns textos que por aqui foram sendo publicados.
PIEDOSA
MENTIRA
Eu
tenho um prato do Benfica…!
É
claro que já estou a ouvir as más-línguas do costume a dizer: “lá vem este chato dar-nos cabo do juízo com
os seus vómitos… Porque não se cala…?” …
Mas
garanto-vos que é a pura verdade e que não me estou a preparar para gozar o
prato à custa do Benfica…
A
imagem comprova que vos falo verdade…
Acredito
que estão maravilhados…
Mas, certamente, não
tão maravilhados quanto eu próprio fiquei, quando ele me foi
oferecido, há muitos, muitos anos atrás. Primeiro, porque era um
puto de cinco ou seis anos, e tudo o que fosse oferta me caia bem;
mas, sobretudo, porque o prato tinha, na altura, um
colorido e um brilho magníficos, que hoje, em parte, já se
perderam… Era feito com aqueles pozinhos brilhantes utilizados nas artes
manuais e parecia que até no escuro dava luz.
Tem,
apenas,duas inscrições: uma que diz S.L.B. em letras grandes;
outra, Oferta da Piedade escrito
de uma forma mais singela.
No
meio, dois pequenos losangos, um com um emblema do Benfica e outro
com uma fotografia minha de mão dada, ou perto disso, com uma miúda
da minha idade, sobrinha da melhor amiga da minha Mãe.
Agora
que já acreditam em mim, estou certo de que irão gostar de conhecer
o resto da história… Mas isso irá obrigar-nos a um longo flash-back de mais de 50 anos.
Na
altura (1957, 1958…) morávamos numa grande casa entre o Campo
Pequeno e Entrecampos, no local onde se foi instalar, depois, a
Feira Popular. A casa tinha dois andares e um grande pátio para a frente e
outro para as traseiras (se vos falo nesses pormenores não é por
preciosismo, mas por serem importantes para a nossa história…).
Nessa
época, que me lembre, não tínhamos nenhuma Empregada residente, mas
tínhamos uma – a Piedade – que entrava de manhã cedinho e saia ao final da
tarde.
Quem
a levava e a ia buscar era o marido, um tipo alto, magro, com ar simpático e
bonacheirão, que se chamava Júlio e a quem eu chamava Gungun, não de forma
carinhosa, mas por, quando ainda muito miúdo, não saber dizer o nome de
outra maneira. Depois ficou sempre assim, tal como a prima Lena
ficou Bábá durante muitos anos.
O
Júlio/Gungun foi o primeiro da enorme multidão de benfiquistas que se me
atravessaram no caminho ao longo da vida.
Mas
o Júlio tinha uma particularidade: era um benfiquista talvez ainda mais
ferrenho do que todos os outros e meteu-se-lhe na cabeça que haveria de fazer
de mim o mais fanático dos benfiquistas à face da Terra, depois
dele, claro está…
Desde
tenra idade que me habituei aos nomes dos principais atletas e aos
gloriosos feitos do glorioso clube. O nome de Alves Barbosa, por
exemplo, era-me bastante mais familiar do que o da maior parte dos meus
próprios familiares directos…
O
Júlio chegava a casa - recordo-me sempre dessas ao fim da tarde, porque de
manhã devia estar a dormir - e berrava para mim naquele casarão
enorme: “LUIS MIGUEL (ou LUISINHO, já não me lembro bem como é que ele me
chamava…), QUEM É O MAIOR…? E eu, estivesse onde
estivesse, tinha de vir a correr para lhe responder, a boca
colada junto aos joelhos: “É O BENFICA GUNGUN!, É O
BENFICA!,… O BENFICA”…
A
cena repetia-se diariamente e, às vezes, entretido nas minhas
brincadeiras de criança, apanhava verdadeiros sustos com aquele
vozeirão. Todo o meu nervosismo e, seguramente, a gaguez
que me acompanhou durante muitos anos e ainda se manifesta de quando em
vez, tiveram certamente aí a sua origem…
Ultrapassada
que foi essa fase de doutrinação na História, nos nomes e nas
palavras-de-ordem, passámos então, digamos assim, a uma fase
mais prática. Passei a ir ver os jogos ao vivo no Estádio da Luz, com o
bom do Júlio e com a Piedade, adepta quase tão fervorosa quanto ele…
A
primeira vez que me lembro foi um Benfica – Porto, que me parece que o
Benfica ganhou por 1 – 0, com um golo de cabeça do Águas. Apesar de
puto, tinha sido tão massacrado que já sabia muito bem, nessa
altura, que no mundo da bola não havia cabecinha como a do
José Águas…
A
última, já mais crescidote e a única que me lembro de ter sido à noite
para a então chamada Taça dos Campeões Europeus, um Benfica – Feyenord que
o Benfica ganhou por 3 – 0 ou por 3 – 1, já não me lembro ao certo. Mas
três foram, de certeza…
No
entretanto, não sei dizer ao certo mas devo ter ido à Luz pelo menos
uma boa dúzia de vezes, e ficava, quase sempre, de
fim-de-semana em casa deles.
Mas
o problema é que o Júlio e a Piedade moravam em Odivelas e, mais
tarde, em Camarate e não tinham carro (lá mais para o fim lembro-me que
até já tinham um muito velho, mas não o levavam para o Estádio…). O
que significava que tínhamos de ir de transportes públicos até ao cimo do
Campo Grande e depois … a butes até à Luz . Ida e volta…
E
não pensem que a 2ª Circular de então era a beleza que é hoje… No
início, nem sequer existia o viaduto sobre a Estrada das Laranjeiras
e tínhamos de descer lá para o fundo e voltar a subir em direcção ao Estádio.
Lembro-me de ter feito esse caminho debaixo de chuva e com tudo enlameado à
minha volta, provavelmente já resultante das obras do viaduto…
A
ideia que tenho, desse tempo, é que ir à bola não me desagradava de todo (devia
comer um gelado ou beber um pirolito…), mas nunca constituiu, para
mim, um prazer muito especial. Muito longe, por exemplo, da magnífica obsessão
que já era, na mesma altura, uma ida ao Cinema…
Mas
aquela caminhada para a Luz era demasiado cansativa…
E
esse prazer inicial transformou-se em obrigação, a
obrigação em suplício, o suplício em tortura e tudo isso junto me aguçou o
engenho para inventar enormíssimas dores de barriga ou inadiáveis
obrigações escolares de cada vez que se adivinhava um convite para o Paraíso da
Luz…
Eles
devem ter percebido…
A
Piedade, entretanto, deixou de trabalhar para a minha Mãe e assim
terminou, de forma inglória, a minha curta carreira de maior
benfiquista à face da Terra (depois do Gungun, claro está…)…
A
oferta do prato, já o adivinharam, vem desses tempos de doutrinação
ideológica. Não sei de quem terá partido a ideia de oferecer um
prato do Benfica ao miúdo, se da Piedade se do Júlio, mas para o caso
pouco interessa. Quem fez a obra foi o Júlio, que era o
verdadeiro artista…
Mas
houve uma coisa que sempre me intrigou neste prato…
Havendo
tantas fotografias minhas em nossa casa, e sendo, na altura, o futebol
uma coisa de Homens,
porque carga d’água foram eles escolher uma fotografia onde eu apareço
acompanhado por uma rapariga…?
Dei
comigo a fazer as minhas próprias suposições…
Será
que o Júlio quis associar ao Benfica uma ideia de Paixão, assim simbolizada por aqueles dois miúdos de mão
dada…? Até é possível que eles dissessem na altura, por
brincadeira, que a Natalinha – assim se chamava a pequena – era a
minha namorada…
Ou
será que o prato, assim bonito e reluzente, não simbolizaria
mais, afinal, do que a Paixão do próprio Júlio pela Piedade, e
eu e a Natalinha não passássemos de um mero pretexto para a ilustrar…? No
dia-a-dia era, aliás, bem perceptível que o Júlio tinha uma autêntica
devoção pela Piedade, que não ia sem ela para lado nenhum e (isso
digo eu agora, claro está…) o simples facto de a ir levar e buscar todos
os dias poderá demonstrar grande preocupação da parte dele em que ela não
se perdesse pelo caminho…
Jamais
o saberei e, agora, pouco importa. Prefiro pensar que o prato foi
feito só para mim, embora me continue a irritar o facto de estar
acompanhado, e não sozinho, nessa fotografia…
Guardei
esse prato religiosamente ao longo dos anos e, perdido que deverá
estar, para sempre, o xailinho azul bebé onde me enrolavam em
pequenino, ele constitui uma das minhas duas únicas recordações
materiais desses tempos de tenra idade. A outra é o prato onde comia a
sopa, bordejado de bonequinhos e que já está, hoje, em poder dos
meus netos, seus legítimos herdeiros.
Mas
o que eu gostaria hoje, verdadeiramente, era de poder dar um
enorme, um enormíssimo abraço à Piedade e ao Gungun…
Há
uns anos atrás, ao contar está história, alguém me falou que o
Henrique Mendes tinha um programa na SIC cujo objectivo
era, precisamente, encontrar pessoas desaparecidas… Mas nem eu
teria lata para
aparecer na SIC com
um prato na mão, nem eles, certamente ávidos de histórias de ciúmes, traições,
vinganças familiares, cenas de faca e alguidar, iriam alguma vez dar
importância a esta minha preocupação…
Dei
comigo, por isso, a imaginar a minha própria história…
Era
um Domingo de muito sol, o Estádio da Luz estava bem composto e, ao
intervalo, o Benfica já ganhava por três a zero (vão perceber que, para a
história funcionar bem, o dia tem de estar bom e o Benfica tem de dar uma
cabazada…).
Durante
o intervalo o simpático Speeker
de serviço faz uma pausa no discurso habitual e lança uma desafio à multidão:
“Porventura
está entre vós alguém que se chama Júlio, mora ou morou para as bandas de
Camarate,
é ou foi
casado com uma Senhora chamada Piedade que trabalhou a dias num lugar que se
chamava
Mercado Geral
de Gados, ali perto de Entrecampos, onde depois foi instalada
a Feira Popular…?
Se
sim, pede-se a gentileza de se dirigir no final do jogo à estátua do
Eusébio, porque alguém Amigo lhe
deseja fazer
uma boa surpresa…
Obrigado!”
(ouvem-se
palmas, porque quando o Speeker da
Luz fala há sempre palmas, excepto para o árbitro e para os
jogadores
da equipa adversária…)
A
tarde continuava magnífica, o Benfica ganhara por 7 – 0 e foi sem
qualquer tipo de esperança que me dirigi, no final do jogo, para a estátua do
Eusébio, com o meu prato cuidadosamente embrulhado debaixo do braço…
Esperei
imenso tempo, bastante mais do que seria razoável… Várias vezes estive
para me ir embora, mas uma voz cá dentro dizia-me sempre para
esperar um bocadinho mais, que diabo, já que me tinha dado a
tanto trabalho…
Já
o sol ia baixo quando vi surgir, ao longe, aquela figura alta e
magra, embora um pouco curvada, que parecia andar muito devagarinho
apoiada numa bengala. Naquele contraluz, era mais uma sombra que caminhava
lentamente, mas não tive a mais pequena dúvida de que era ele…
Deixei-o
avançar um pouco mais e então aproximei-me e chamei-o pelo nome.
Acenou-me que sim com a cabeça e ficou a olhar para mim com um ar
interrogativo.
Disse-lhe
quem era e ele lembrava-se de mim, talvez porque tivesse levado aquele
tempo todo, desde o intervalo do jogo, a pensar no Mercado Geral de
Gados…
Depois
de um longo abraço, perguntei-lhe se queria tomar alguma coisa e ele
respondeu-me que uma tacinha de branco e uns pastelinhos de bacalhau o
deixariam já muito bem jantado.
Sentámo-nos
no sítio mais sossegado que consegui encontrar e perguntei-lhe, de
imediato, pela Piedade.
Uma
lágrima ao canto do olho respondeu por ele, muito antes das suas próprias
palavras… Tinha-lhe desaparecido há vinte anos anos
atrás, numa morte estúpida. Uma queda num alçapão num armazém do
Catujal, onde trabalhava. A queda não fora grande, mas a forma como
batera com a cabeça e o pescoço fora-lhe fatal… Morte instantânea e sem
sofrimento, ao menos isso…
Lamentei
a situação e procurei mudar de conversa.
Perguntei-lhe
se ainda vinha à bola com frequência e respondeu-me que não, que vinha
muito raramente, quando o tempo estava bom e o jogo não fosse de grandes
sustos, porque a máquina já não lhe funcionava da mesma maneira… E as
pernas sempre foram o seu calcanhar de Aquiles… Usava bengala não por absoluta
necessidade, mas por prudência… Andava sempre devagar, mas não
necessitava de grande apoio. Mas um dia, na confusão das entradas do
estádio, foi empurrado e caiu desamparado no chão… Serviu-lhe de emenda
e, a partir daí, foge das confusões … Vê os jogos no café do bairro e
quando vem ao estádio, para matar saudades, traz sempre consigo
a bengala para se apoiar melhor. Às vezes embirram com ela à
entrada, mas acaba sempre por conseguir passar…
Falava
lenta e pausadamente, e comia, também, muito
devagar, saboreando com prazer.
Perguntei-lhe
o que tinha feito na vida e contou-me que tinha montado um negócio de
serralharia perto de casa, que lhe tinha dado para viverem os dois sem
problemas, já que nunca tinham conseguido ter filhos. O negócio dava o
suficiente para a Piedade não ter necessidade nenhuma de
trabalhar, mas ninguém a aguentava parada em casa…
Ele
próprio tinha trabalhado até muito tarde porque, sobretudo depois da Piedade
lhe ter desaparecido, estar parado era o pior que lhe poderia acontecer.
Mas
a partir do momento em que a vista começou a piorar e as pernas a pesarem-lhe
ainda mais, passou o negócio e ganhou um dinheirito que lhe vai chegando
para as necessidades, que também já não são muitas…
Continua
a viver na mesma casa de Camarate que eu conheci, embora lhe tivessem
feito grandes obras. É lá que se sente bem e é lá que continua a sentir a
companhia da mulher. Acontece-lhe muito ouvi-la na cozinha a arrumar a
loiça, mas é sobretudo à noitinha, antes de se deitar, que ela
se vem sentar no sofá junto dele para dois dedos de conversa.
Os
vizinhos mais antigos já lhe disseram que, qualquer dia, tem de
pensar em vender a barraquita e ir para um Lar, para estar mais
acompanhado. Mas dali ninguém o tira… Se tivesse de sair de casa morreria mais
depressa do que o Cardozo levaria a fazer uma desmarcação dentro da
área, disse-me ele, esboçando um ligeiro sorriso…
Deixei-o
acabar de comer e percebi que lhe soube bem. Café já não
tomava à noite, mas aceitou acompanhar-me num Licor Beirão, para comemoração do nosso encontro.
Confesso
que hesitei bastante antes de avançar, atendendo às circunstâncias… Mas
convenci-me a mim próprio de que ele haveria de gostar…
Enchi-me
então de coragem e, com toda a cautela, mostrei-lhe o prato e
perguntei-lhe se isso o fazia recordar alguma coisa…
Deixei-o
a olhar durante algum tempo e depois pousei a minha mão sobre o seu braço
e agradeci-lhe, comovidamente, o ter feito de mim benfiquista desde
pequenino..
Quanto
voltou a levantar o olhar na minha direcção as lágrimas estavam lá, mas também
lá estava, estampado no rosto, o mais belo sorriso com que me brindou
durante todo esse tempo em que estivemos juntos…
E
fiquei, então, com a certeza absoluta de que foram essas minhas palavras, e não
a exibição e a goleada do Benfica, o que lhe fizera ganhar
verdadeiramente o dia, nessa tarde.
Texto
de Luís Miguel Mira
Publicado
em 29 de Janeiro de 2012
2 comentários:
Que linda e fascinante história!
Estes momentos inesquecíveis tornam-nos mais humanos.
Na era dos telemóveis ainda haverá espaço para os meninos viverem momentos tão sublimes?
Lembram-me o filme "Cinema Paraíso".
Obrigado Sammy!
Caro Seve: o obrigado será enviado para o Luís Miguel Mira que é o autor desta história maravilhosa. Neste momento anda algures em férias cá dentro, porque a pandemia lhe deu cabo dos planos para mais uma viagem à América para mais deslumbres, mais conhecimentos, mais crónicas.
Enviar um comentário