segunda-feira, 13 de julho de 2020

SONGCATCHER


Na crónica anterior disse-vos que para uma mais ampla divulgação da “Folk Music” foi determinante a ação de muitos etnomusicólogos que andaram no terreno a recolher essas canções e que depois as publicaram em livro, contendo a letra e a música, acompanhadas de informações acerca da sua origem. 

Já vos mostrei a capa e já vos falei aqui de “Slave Songs of the United States”, que Francis Allen, Charles Ware e Lucy Garrison publicaram em 1867 e que é considerada a primeira obra dedicada à  música negra a ser publicada nos Estados Unidos.

Disse-vos, igualmente, que Francis Child havia sido o primeiro a divulgar a música de origem anglo-saxónica, através da sua obra “The English and Scottish Popular Ballads”, publicada em 5 volumes entre 1882 e 1898. Ainda hoje essas canções são conhecidas como “Child Ballads” e  em muitos discos de “Folk Music” contemporâneos é usual serem identificadas não só pelo seu próprio nome, como também pelo número de ordem que Child lhes atribuiu na sua antologia. 
Já no séc. XX, entre 1916 e 1918, foi o inglês Cecil Sharp, acompanhado pela sua ajudante, Maud Karpelles, quem andou pelo Sul dos Apalaches, na Virginia, na Carolina do Norte, no Kentucky e no Tennessee a recolher essas músicas de origem anglo-saxónica e a compará-las com os originais britânicos. Sharp escreveu diversos ensaios sobre o tema, nomeadamente “English Folk Songs From the Southern Appalachians”, contendo 274 canções e publicado em 1932, já depois da sua morte.


Entretanto, em 1910, já John Lomax tinha publicado, nos Estados-Unidos, “Cowboy Songs and Other Frontier Ballads”, com um prefácio do Presidente Theodore Roosevelt. Nas décadas seguintes John Lomax faria, com o apoio do seu filho Allan, não só diversas outras obras do género, como este “Folk Song USA” que vos mostro, publicado em 1947, como também gravações no terreno que viriam a integrar o “Archive of American Folk Music” da Biblioteca do Congresso, da qual era Curador e Consultor.

Mas a mais célebre de todas estas antologias publicadas nos Estados Unidos acabou por se tornar “The American Songbag”, que o poeta e musicólogo Carl Sandburg publicou em 1927, e da qual vos mostro o exemplar da minha coleção, numa edição de 1990. 

Como vos referi, todas estas publicações teciam alguns comentários acerca da origem e da evolução das canções. Das que conheço, a mais detalhada, nesse aspeto, é a dos Lomax. 


Todos esses homens foram, de facto, verdadeiros “caçadores de canções”, e “Songcatcher” é, precisamente, o nome de um filme realizado pela americana Maggie Greenwald em 2000, que é a única obra de ficção que conheço que retrata esses tempos e esses lugares.

O filme conta-nos a história de Lily Penleric, uma etnomusicóloga professora numa universidade americana que, sentindo-se prejudicada na evolução da sua carreira por ser mulher, decide mandar tudo às urtigas e ir passar uma temporada a Clover, nos Apalaches, onde a sua irmã mais nova é voluntária numa escola local.

Aí chegada começa a estabelecer contactos com diversas pessoas da vizinhança e a ficar entusiasmada com as canções que elas cantam e com a forma como o fazem, que nada tem a ver com a tradição académica a que estava habituada das músiquinhas tocadas ao piano.
De imediato lhe surge o desejo de fazer uma recolha cientifica dessas canções (a expressão é dela…), não só registando a sua letra e música, mas também gravando o que conseguisse gravar.


Com a apoio de um amigo da sua antiga universidade, consegue que lhe seja emprestado um aparelho de gravação, tipo fonógrafo de Thomas Edison, com os respetivos cilindros.
Agora tinha todas as condições para entrar na História, demonstrando aos seus colegas “académicos” as sua capacidades para fazer aquilo que eles nunca haviam feito, isto é, uma recolha direta das canções no campo, o seu “registo cientifico” e a sua interpretação.
E andou, literalmente, de fonógrafo às costas pelos Apalaches acima...

O filme passa-se na região de Asheville, na Carolina do Norte, que visitei, e vemos a jovem professora chegar de comboio e depois ter de ir de carroça até ao seu destino, por um autêntico caminho de cabras.

Ao chegar vai deparar-se com o estado de miséria e de atraso em que vive toda essa população, e vai ter de conquistar a sua confiança até que eles aceitem submeter-se às suas gravações.

Mas o filme não é maniqueísta e tanto retrata os habitantes locais como seres ética e moralmente irrepreensíveis, como nos mostra comportamentos irracionais, incompreensíveis e até de pura violência, muitos deles guiados por uma cega fé religiosa. 

O “casting” foi bem feito, as interpretações são boas, a fotografia é bonita, as belas paisagens dos Apalaches são valorizadas, mas sem excessos de “bonitinho”e todo o ambiente das montanhas dos Apalaches é muito bem retratado, com aqueles
casinhotos de madeira de que vos falei, as carências de vária ordem com que se debate a população, o oportunismo de quem vem do exterior e quer fazer bons negócios imobiliários à custa da ignorância dessa gente e das suas  necessidades de sobrevivência, etc.

A música é bastante bem valorizada, com interpretações que seguem o padrão da época e a forma como as canções, os instrumentais e as “barn dances” são introduzidas é muito subtil e bem adequada.


Mas a determinada altura o filme descamba numa série de historietas de amor paralelas sem pés nem cabeça e absolutamente dispensáveis…

É como se a realizadora tivesse sentido que apenas com o tema da recolha das canções o filme não tinha “pernas” para se aguentar e precisasse de uma muleta romântica…
O certo é que o filme acaba aí e nunca mais se levanta, o que é pena porque, como vos disse, é o único filme de ficção que conheço que aborda este tema absolutamente central na história da “folk-music” norte-americana.

Salvou-se, porém, a banda sonora, em que clássicos dessa época são cantados por intérpretes contemporâneos, como Emmylou Harris, Iris Dement, Rosanne Cash, Gillian Welch, Maria McKee Patty Loveless e Dolly Parton, embora, que me lembre, apenas duas apareçam no próprio filme.

E, como sempre sucede nos Estados-Unidos, coisas destas são sempre pretextos para novos lançamentos de músicas mais antigas, pelo que poderemos fazer, com este CD “Songcatcher II” que vos mostro, um perfeito contraponto entre as versões contemporâneas destas músicas dos Apalaches constantes do outro CD e estas mais antigas, interpretadas por veneráveis personalidades de que vos falei no último texto, como Doc Watson, Almeda Riddle, Hobart Smith, Doc Boggs, Roscoe Holcomb, Clarence Ashley e Maybelle Carter.  

Embora a memória desses incansáveis “caçadores de canções” justificasse coisa mais digna, o filme merece ser visto e colará que nem uma luva a que tenha tido a paciência de ler o meu último texto até ao fim.

Tanto mais que o filme acaba com a nossa professora numa carroça, com o novo namorado que encontrou nas montanhas. Ele tem boa figura, canta e toca bem diversos instrumentos, e vão a caminho da cidade com o intuito de gravarem essas músicas que ninguém conhece, porque lhes palpita que não tarda muito elas vão começar a suscitar um grande interesse...  

PS:

“Songcatcher” ganhou um prémio no Festival de Sundance, nos Estados Unidos, e teve uma carreira honrosa nesse país. 


Não teve estreia em Portugal e, segundo penso, nunca por cá foi visto, na televisão, na Cinemateca ou em sessões especiais.  

Texto de Luís Miguel Mira




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