Na crónica anterior disse-vos que para
uma mais ampla divulgação da “Folk Music” foi determinante a ação de muitos
etnomusicólogos que andaram no terreno a recolher essas canções e que depois as
publicaram em livro, contendo a letra e a música, acompanhadas de informações
acerca da sua origem.
Já vos mostrei a capa e já vos falei
aqui de “Slave Songs of the United States”, que Francis Allen, Charles Ware e
Lucy Garrison publicaram em 1867 e que é considerada a primeira obra dedicada
à música negra a ser publicada nos Estados Unidos.
Disse-vos, igualmente, que Francis Child
havia sido o primeiro a divulgar a música de origem anglo-saxónica, através da
sua obra “The English and Scottish Popular Ballads”, publicada em 5 volumes
entre 1882 e 1898. Ainda hoje essas canções são conhecidas como “Child Ballads”
e em muitos discos de “Folk Music” contemporâneos é usual serem
identificadas não só pelo seu próprio nome, como também pelo número de ordem
que Child lhes atribuiu na sua antologia.
Já no séc. XX, entre 1916 e 1918, foi o
inglês Cecil Sharp, acompanhado pela sua ajudante, Maud Karpelles, quem andou
pelo Sul dos Apalaches, na Virginia, na Carolina do Norte, no Kentucky e no
Tennessee a recolher essas músicas de origem anglo-saxónica e a compará-las com
os originais britânicos. Sharp escreveu diversos ensaios sobre o tema,
nomeadamente “English Folk Songs From the Southern Appalachians”, contendo 274
canções e publicado em 1932, já depois da sua morte.
Entretanto, em 1910, já John Lomax tinha
publicado, nos Estados-Unidos, “Cowboy Songs and Other Frontier Ballads”, com
um prefácio do Presidente Theodore Roosevelt. Nas décadas seguintes John Lomax
faria, com o apoio do seu filho Allan, não só diversas outras obras do género,
como este “Folk Song USA” que vos mostro, publicado em 1947, como também
gravações no terreno que viriam a integrar o “Archive of American Folk Music”
da Biblioteca do Congresso, da qual era Curador e Consultor.
Mas a mais célebre de todas estas
antologias publicadas nos Estados Unidos acabou por se tornar “The American
Songbag”, que o poeta e musicólogo Carl Sandburg publicou em 1927, e da qual
vos mostro o exemplar da minha coleção, numa edição de 1990.
Como vos referi, todas estas publicações
teciam alguns comentários acerca da origem e da evolução das canções. Das que
conheço, a mais detalhada, nesse aspeto, é a dos Lomax.
Todos esses homens foram, de facto,
verdadeiros “caçadores de canções”, e “Songcatcher” é, precisamente, o nome de
um filme realizado pela americana Maggie Greenwald em 2000, que é a única obra
de ficção que conheço que retrata esses tempos e esses lugares.
O filme conta-nos a história de Lily
Penleric, uma etnomusicóloga professora numa universidade americana que,
sentindo-se prejudicada na evolução da sua carreira por ser mulher, decide
mandar tudo às urtigas e ir passar uma temporada a Clover, nos Apalaches, onde
a sua irmã mais nova é voluntária numa escola local.
Aí chegada começa a estabelecer
contactos com diversas pessoas da vizinhança e a ficar entusiasmada com as
canções que elas cantam e com a forma como o fazem, que nada tem a ver com a
tradição académica a que estava habituada das músiquinhas tocadas ao piano.
De imediato lhe surge o desejo de fazer
uma recolha cientifica dessas canções (a expressão é dela…), não só registando
a sua letra e música, mas também gravando o que conseguisse gravar.
Com a apoio de um amigo da sua antiga
universidade, consegue que lhe seja emprestado um aparelho de gravação, tipo
fonógrafo de Thomas Edison, com os respetivos cilindros.
Agora tinha todas as condições para
entrar na História, demonstrando aos seus colegas “académicos” as sua
capacidades para fazer aquilo que eles nunca haviam feito, isto é, uma recolha
direta das canções no campo, o seu “registo cientifico” e a sua interpretação.
E andou, literalmente, de fonógrafo às
costas pelos Apalaches acima...
O filme passa-se na região de Asheville,
na Carolina do Norte, que visitei, e vemos a jovem professora chegar de comboio
e depois ter de ir de carroça até ao seu destino, por um autêntico caminho de
cabras.
Ao chegar vai deparar-se com o estado de
miséria e de atraso em que vive toda essa população, e vai ter de conquistar a
sua confiança até que eles aceitem submeter-se às suas gravações.
Mas o filme não é maniqueísta e tanto
retrata os habitantes locais como seres ética e moralmente irrepreensíveis,
como nos mostra comportamentos irracionais, incompreensíveis e até de pura
violência, muitos deles guiados por uma cega fé religiosa.
O “casting” foi bem feito, as
interpretações são boas, a fotografia é bonita, as belas paisagens dos
Apalaches são valorizadas, mas sem excessos de “bonitinho”e todo o ambiente das
montanhas dos Apalaches é muito bem retratado, com aqueles
casinhotos de madeira de que vos falei,
as carências de vária ordem com que se debate a população, o oportunismo de
quem vem do exterior e quer fazer bons negócios imobiliários à custa da
ignorância dessa gente e das suas necessidades de sobrevivência, etc.
A música é bastante bem valorizada, com
interpretações que seguem o padrão da época e a forma como as canções, os
instrumentais e as “barn dances” são introduzidas é muito subtil e bem
adequada.
Mas a determinada altura o filme
descamba numa série de historietas de amor paralelas sem pés nem cabeça e
absolutamente dispensáveis…
É como se a realizadora tivesse sentido
que apenas com o tema da recolha das canções o filme não tinha “pernas” para se
aguentar e precisasse de uma muleta romântica…
O certo é que o filme acaba aí e nunca
mais se levanta, o que é pena porque, como vos disse, é o único filme de ficção
que conheço que aborda este tema absolutamente central na história da
“folk-music” norte-americana.
Salvou-se, porém, a banda sonora, em que
clássicos dessa época são cantados por intérpretes contemporâneos, como Emmylou
Harris, Iris Dement, Rosanne Cash, Gillian Welch, Maria McKee Patty Loveless e
Dolly Parton, embora, que me lembre, apenas duas apareçam no próprio filme.
E, como sempre sucede nos
Estados-Unidos, coisas destas são sempre pretextos para novos lançamentos de
músicas mais antigas, pelo que poderemos fazer, com este CD “Songcatcher II”
que vos mostro, um perfeito contraponto entre as versões contemporâneas destas
músicas dos Apalaches constantes do outro CD e estas mais antigas,
interpretadas por veneráveis personalidades de que vos falei no último texto,
como Doc Watson, Almeda Riddle, Hobart Smith, Doc Boggs, Roscoe Holcomb,
Clarence Ashley e Maybelle Carter.
Embora a memória desses incansáveis
“caçadores de canções” justificasse coisa mais digna, o filme merece ser visto
e colará que nem uma luva a que tenha tido a paciência de ler o meu último
texto até ao fim.
Tanto mais que o filme acaba com a nossa
professora numa carroça, com o novo namorado que encontrou nas montanhas. Ele
tem boa figura, canta e toca bem diversos instrumentos, e vão a caminho da
cidade com o intuito de gravarem essas músicas que ninguém conhece, porque lhes
palpita que não tarda muito elas vão começar a suscitar um grande
interesse...
PS:
“Songcatcher” ganhou um prémio no
Festival de Sundance, nos Estados Unidos, e teve uma carreira honrosa nesse
país.
Não teve estreia em Portugal e, segundo
penso, nunca por cá foi visto, na televisão, na Cinemateca ou em sessões
especiais.
Texto de Luís Miguel Mira
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