quinta-feira, 23 de julho de 2020

OLHAR AS CAPAS


A Barca dos Sete Lemes

Alves Redol
Prefácio: Alexandre Pinheiro Torres
Publicações Europa-América, Lisboa, Junho de 1977

A primeira vez que o ouvi deu-me vontade de gritar que o levassem. «Por que razão o tinham posto naquela cadeia?» Perguntara-lhe o motivo da sua prisão e ele não hesitara um instante, como se contasse uma façanha que o fizesse célebre.
Repugnou-me a sua amizade e quis evitá-lo
Mas quando eu estava encostado à rede, que fica entre nós e a grade, seguindo as evoluções dos pombos da igreja, que vinham de lá para a cadeia, como se tomassem banho na luz macia da tarde, ouvi a sua voz trémula e apagada por trás de mim: «O senhor também gosta de pombos?...»
Não entendi a pergunta naquela boca e não pude responder-lhe.
«Também eu gosto… É o bicho mais bonito que há na Terra… O senhor já comeu carne de pombo?... Eu nunca fui capaz. Acho que devia ser proibido matá-los… Quando me casara hei-de fazer um pombal.»
Sentia-me incapaz de lhe falar.
«Foi no asilo que isso sucedeu. Depois do que o senhor escreveu, estive num asilo. Eu gostava muito de um pombo que a D. Branca tinha numa gaiola, à entrada do recreio. Um dia tirei o pombo lá de dentro e pus-me a fazer-lhe festas. O bicho arrulhava nas minhas mãos, quando ouvi os passos dela no corredor. O senhor talvez nãi saiba, mas aquela mulher fazia-me medo. Meti-me a correr dentro da retrete e, para que ela não desse por nada, torci o pescoço ao pombo. Ainda hoje as mãos me doem… Ela nunca soube, mas eu tive o castigo. Toda a minha vida ando a sofrer o castigo dessa morte.»

Sem comentários: