sábado, 31 de outubro de 2020

POSTAIS SEM SELO


 Quem está a morrer fala uma outra língua. Próximo da morte somos já estrangeiros.

Gonçalo M. Tavares

ANTOLOGIA DO CAIS

Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram sendo publicados.

 

SARAMAGUEANDO

 

O livro, no bom dizer do saudoso editor Manuel Hermínio Monteiro deve conter a própria vida dos que com ele lidam quotidianamente.

Sou do tempo em que os livros estavam ao cuidado de gente culta.

Orgulhosamente profissionais, livreiros e editores sabiam o que tinham entre mãos.

Com a chamada globalização, os livreiros foram substituídos por computadores e os grandes grupos editoriais como a Leya, Porto Editora, Bertrand  &Cª Lda, desataram a comprar pequenas e grandes editoras, não com o objectivo de as valorizar mas para, simplesmente, ganharem algo com o negócio.

Por exemplo, Miguel Pais do Amaral, um empresário de tudo e mais alguma coisa, constituiu a Leya e comprou, entre outras pequenas editoras, as Publicações Dom Quixote e a Editorial Caminho que têm nos seus catálogos diversos escritores portugueses e jóias da coroa como António Lobo Antunes, e José Saramago.

Numa entrevista à Notícias Sábado, Fevereiro de 2010:

Os carros são o meu hobby, é algo que me acompanha desde sempre. Em termos competitivos, fui evoluindo aos poucos e agora isto é o máximo. O prazer de correr é único e sinto-me um privilegiado.

Pierre Bourdieu, citado por Arnaldo Saraiva, disse que o editor é um personagem duplo que deve saber conciliar a arte e o dinheiro.

Claro que é possível gostar de carros e de livros ou, como na aldeia de Asterix, ser-se bárbaro e gostar de flores, mas não é o caso do personagem que presidencialmente se senta numa cadeira do edifício Leya.

Mário de Carvalho, durante muitos anos editado pela Caminho, em 2012 abandonou o   grupo  Leya pois não estava sujeito a que tivessem demorado três anos para saber quem ele era.

Acho que quem sabe de livros, deve fazer livros, quem sabe de cervejas ou de sabonetes deve tratar de cervejas ou de sabonetes…

Quarta-feira ficámos a saber que José Saramago não volta a ser publicado pela Leya.

Não se conhecem os contornos da decisão, apenas se sabe que chegou ao fim uma relação editorial iniciada há 35 anos, com a publicação de A Noite.

A posição da Leya surge depois de uma das editoras do grupo a Editorial Caminho, ter anunciado deixar de publicar as obras de José Saramago, por falta de acordo com as herdeiras do Nobel da Literatura.

As herdeiras de José Saramago e a Editorial Caminho informam que não foi possível chegar a acordo sobre as condições contratuais que permitiriam continuar a publicar nesta editora a obra do escritor, lê-se num comunicado assinado pelas herdeiras do escritor, a viúva, Pilar del Rio, e a filha, Violante Saramago Matos, e ainda por Tiago Morais Sarmento e Zeferino Coelho.

José Sucena, administrador da Fundação José Saramago já tornou público que a instituição está a fazer diligências no sentido de encontrar uma editora que sirva a Saramago e a quem Saramago sirva, e avançou a hipótese de, caso não seja encontrada uma editora, ser a própria fundação e editar os livros de José Saramago

Almeida Faria, João Tordo, José Eduardo Água Lusa, Ricahrd Zimler, João Tordo, os herdeiros de Sophia Mello Breyner Andresen, o anteriormente citado Mário de carvalho, já abandonaram a Leya.

Miguel Sousa Tavares seguiu o mesmo caminho e, hoje, em declarações ao Público,  fala de descontentamento quanto ao trabalho do grupo que, matou a identidade das editoras” que agregou desde a sua fundação, em 2008. Não creio que o grupo Leya esteja vocacionado para a edição de livros. A Leya partiu do princípio que juntando várias editoras faziam sinergias e conseguiam fazer melhor, mas isto não é como juntar as salsichas Nobre com as salsichas Aveirense.

Texto publicado em 24 de Janeiro de 2014

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

NOTÍCIAS DO CIRCO


 O título dizia:

Agora é definitivo: governo suspende desporto este fim de semana.

Mas as primeiras linhas do texto adiantavam que apenas as 1ª e 2ª ligas de futebol iriam ser realizadas.

Mas o futebol não é desporto?

Ou estaremos sujeitos às ditaduras das televisões?

O que nós queremos é futebol tal como, naquele funesto tempo, mandou dizer o botas de Santa Comba

Mário Castrim numa crítica de televisão em Setembro de 1974:

«Mesmo para quem gostava de assistir ao futebol, uma tarde de domingo passado no campo da bola acabava por se transformar num hábito de vergonha. Quanta vez ao sair do Estádio Nacional os nossos olhos se toldavam ao voltarem-se para a prisão de Caxias que se via ao longe…»

POEMAS DA MINHA RUA

Quando encostam

ou abrem

o portão

do pátio do Duarte

na minha rua sossegada

à tarde

é como se os músicos

afinassem os instrumentos

antes do concerto

Adília Lopes

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

POSTAIS SEM SELO


Nesse tempo ainda era possível encontrar Deus pelos baldios. Isso foi antes de aprender álgebra.

José Tolentino Mendonça

... E OS DIAS DIMINUEM


Lentamente, começo a preparar-me para outro confinamento.

Voltar a memorizar os passos dentro de casa: janela da frente, janela das traseiras.

Continuar as (re)leituras, ouvir as velhas músicas, continuar a acreditar que o velho reprodutor de cassettes VHS não dê o berro, porque nessas cassettes é que estão os filmes de que gosto mesmo.

As memórias vivas dos livros, dos discos, dos filmes, da casa.

Escolher e falar de coisas simples, aquelas coisas insignificantes que nos emocionam até aos limites da ternura.

O título é roubado de September Song,  cantada pelo Frank Sinatra, ou pela Ella, ou pelo Willie Nelson: ...and the days dwindle down.

Músicas contra esse inferno que dá pelo nome de Covid-19,

É isso.

Valham-nos os deuses todos do Olimpo!



O PÃO DE CADA DIA


Que o pão encontre na boca
o abraço de uma canção
construída no trabalho.
Não a fome fatigada
de um suor que corre em vão.

Que o pão do dia não chegue
sabendo a travo de luta
e a troféu de humilhação.
Que seja a bênção da flor
festivamente colhida
por quem deu ajuda ao chão.

Mais do que flor, seja fruto
que maduro se oferece,
sempre ao alcance da mão.
Da minha e da tua mão.

Thiago de Mello

Legenda: fotografia Shorpy

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

POSTAIS SEM SELO


 A minha infância foi o meu avô, mais do que o meu pai. Odiei a minha mãe, que tinha partido sem me avisar, o meu pai, que não tinha sido capaz de fazer nada para o impedir, Deus porque tinha querido aquilo, e o avô porque lhe parecia normal que Deus quisesse coisas assim.

 Umberto Eco em OCemitério de Praga

 Legenda: fotografia Shorpy

DEMORAR NO QUE DÓI

Somos todos uns sentimentais e por isso demoramos no que nos dói. Temos o choro fácil que dá ou não dá em lágrimas, guardamos as dores cheias de pormenor enquanto as felicidades ficam por ali, confusas, com algumas caras, alguns sons, incertas e vagas. Lembramos os sapatos que calçávamos quando alguém morreu, a hora da notícia, o programa que passava nesse instante e até as vergonhas que pensámos. Folheemos as páginas do riso e pouco encontraremos, algumas frases, momentos caricatos, elementos de uma paisagem. Pouco e mal contado, estávamos distraídos, demasiado ocupados na felicidade para lhe fazermos o retrato. Somos tolos e sentimentais, temos arcas cheias de mágoas que não esquecemos e que abrimos a todo o momento a ver se ainda nos doem, e doem sempre. Descuramos o arquivo do bem que apesar de tudo nos vai acontecendo, somos tolos de lágrimas.

 Nuno Camarneiro em Debaixo de Algum Céu

 Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.

OLHAR AS CAPAS

Interlúdio Negro


Peter Cheyney

Tradução: Almeida Campos

Capa: Lima de Freitas

Colecção Vampiro nº 126

Livros do Brasil, Lisboa s/d

 

Shaun Aloysius O’Mara aproximou-se, aproveitando a sombra do muro baixo que delimitava a pequena igreja. Saltou desajeitadamente o muro e começou a andar através do adro em direcção do magestoso cedro.

Estava calor. O sol caía impiedosamente sobre a terra onde não corria a mais leve aragem. O’Mara tropeçou a caiu praguejando horrivelmente. Viu por cima do ombro a pequena figura do cura com o seu hábito escuro, a sotaina brilhante, a face magra e branca.

O’Mara começou a rir. Riu-se para o padre. Depois começou a cantar uma canção obscena em língua bretã.

O TEMPO CONCRETO


 O tempo duro

com estas unhas de pedra

este hálito pobre

de órgãos esfomeados

estas quatro paredes de cinza e álcool

este rio negro correndo nas noites como um esgoto

 

O tempo magro

em que minhas mãos divididas

nitidamente separadas e caídas

ao longo dum corpo de cansaço

pedem o precipício a hecatombe clara

o acontecimento decisivo

 

O tempo fecundo

dos sonhos embrulhados repetidos como um hálito de febres

repassadas no travesseiro igual das noites e dos dias

das ruas agrestes e pequenas da mágoa

familiar e precisa como uma esmola certa

 

O tempo escuro

da peste consentida do vício proclamado

da sede amarfanhada pelas mãos dos amigos

da fome concreta dum sonho proibido

e do sabor amargo dum remorso invisível

 

O tempo ausente

dos olhos dum desejo de claras cidades

em que acenamos perdidos às soluções erguidas

com vozes bem distintas de cadáveres opressores

com gritos sufocados de problemas supostos

 

O tempo presente

das circunstâncias ferozes que erguem muros reais

dos fantasmas de carne que nos apertam as mãos

das anedotas contadas num outro mundo de cafés

e das vidas dos outros sempre fracassadas

 

O tempo dos sonhos

sem coragem para poder vivê-los

com muralhas de mortos que não querem morrer

com razões de mais para poder viver

com uma força tão grande que temos de abafar

no fragor dos versos disfarçados

 

O tempo implacável

em que juramos de pé viver até ao fim

maiores dos que nós ser todo o grito nu

pureza conquistada no seio da vida impura

um raio de sol de sangue na face devastada

 

O tempo das palavras

numa circulação sombria como um poço

de ecos incontrolados

de timbres inesperados

como moedas de sangue cunhadas numa noite

demasiado curta e com luar de mais

 

O tempo impessoal

em que fingimos ter um destino qualquer

para que nos conheçam os amigos forçados

para que nós próprios nos sintamos humanos

e este fardo de trevas esta dor sem limites

a possamos levar numa mala portátil

 

O tempo do silêncio

em que o riso postiço dos fregueses da vida

finge ignorá-lo enquanto soluçamos

de raiva de razão reprimida revolta

e os senhores de bom senso passeiam divertidos

 

O tempo da razão

(e não da fantasia)

em que os versos são soldados comprimidos

que guardam as armas dentro do coração

que rasgam os seus pulsos para fazer do sangue

a tinta de escrever duma nova canção

 

António Ramos Rosa de Viagem Através de Uma Nebulosa em Obra Poética I

terça-feira, 27 de outubro de 2020

POSTAIS SEM SELO

Não se pode ser nada, quando o solo debaixo dos pés é um coágulo informe sorvido por outros corpos sociais dominantes de que os que governam são apenas lacaios.

 Maria Velho da Costa em Cravo

 Legenda: pintura de Edward Hopper

CONVERSANDO


Voltaremos ao silêncio das ruas desertas?

 No exacto momento em que começo a escrever, o mundo atingiu o número de 1.164.094 mortes causadas pela covid-19.

Os que destas coisas sabem, dizem que teremos 4 mil casos por dia em Novembro.

 1.

 Segundo o Público, o Banco de Portugal tinha poderes para afastar Ricardo Salgado do BES um ano antes do colapso do banco, mas há que dizer que tiveram medo de afrontar o então dono disto tudo.

 2.

 Mais do que duplicou o número de grávidas dispensadas pelas empresas.

 3.

 Lares para idosos ilegais, jardins de infância ilegais, canis ilegais.

Faltam agentes fiscalizadores: incúria, descuido?

Os gabinetes dos 70 membros do Governo têm ao seu serviço 1236 pessoas.

Razão tinha a Alexandra Alpha:

«Isto não é um país, é um sítio mal frequentado.»

 4.  

 Anos 70, eu e o meu pai à conversa, boa parte eram divinos e saborosos silêncios, no banco, debaixo da parreira de uva morangueira que havia na casa de Almoçageme, por vezes, o Marcolino aparecia a dizer-nos que a maçã reineta, para ser boa, tinha que ter aço (ele queria dizer ácidas) e que o vinho só podia ser feito com uvas. Fazia um vinho caseiro sem sulfitos que tínhamos de o engarrafar colocando lacre por cima da rolha para que estas não saltassem.

5.

Vai ficar tudo bem deu-nos a ideia de que o ataque que enfrentávamos nos tornaria pessoas diferentes, solidárias, compreensivas.

A pergunta é retirada da 1ª página do Expresso.

Numa altura em que tanta gente perdeu o emprego e outros aguardam o dia pela chamada para lhes comunicarem a extinção do seu posto de trabalho, ficamos a saber que os mais ricos ficaram ainda mais ricos.

6. 

O governo, o orçamento o Novo Banco.

Palavras de Francisco Louçã:

«Num tempo em que falta dinheiro para contratar médicos, fechar os olhos às manigâncias pouco imaginativas dos banqueiros não é política. É gosto pelo abismo. E sobretudo, desmerece o país.»

 7.

Ferreira Fernandes, no Público, cita o filme Os Amantes do Tejo em que Amália Rodrigues aparece a cantar Barco Negro e onde um miúdo de Alfama pergunta a Daniel Gélin se gostava de viajar e ele respondia: «Gosto é de partir.»

8.

No ano de 1973 a Arcádia pediu a Manuel da Fonseca que fizesse uma biografia de Amália Rodrigues.

O livro nunca foi publicado mas, recentemente alguém descobriu as fitas gravadas das conversas que Manuel Fonseca teve com Amália. Totalizam cerca de nove horas. Nelson de Matos e a Porta Editora, com o enquadramento e notas de Pedro Castanheira, publicaram, agora, o livro que tem por título «Amália nas suas Palavras». Rui Vieira Nery escreveu o prefácio.

Eu que tento gosto do Manuel da Fonseca e da Amália, dirigirei um destes dias os meus passos para comprar o livro.

Sobre Amália, no seu livro «Amália: Dos Poetas Populares aos Poetas Cultivados» escreveu Vasco Graça Moura: «soube incutir como mais ninguém um acento profundamente dramático à expressão daquilo que cantava. Não apenas por ser dotada de uma voz absolutamente extraordinária. A sua articulação por vezes centrava-se mais no significante do que no significado, mas acabava restituindo misteriosamente a este último todo o seu valor, e encontrou ou inventou melismas, inflexões verbais, tensões intrasilábicas, portamentos, arabescos e outros efeitos vocais, alguns porventura de uma inspiração mediterrânica bebida da Andaluzia à Córsega, mas todos eles únicos, pessoais, intransmissíveis e sobretudo singularmente adequados a traduzir uma entrega total à intensidade dos sentimentos, das dilacerantes violências da paixão à angústia mais torturada, à ternura mais límpida, ou à alegria simplesmente ingénua dos fados que ela cantava.»

 


 Lágrima tem versos de Amália Rodrigues que, segundo Vasco Graça Moura «é uma obra-prima».

Nota do editor: a citação do livro de Vasco da Graça Moura é retirada de um artigo de Nuno Pacheco publicado no Público.

AÇO

Quebre-se de encontro à dureza das arestas

cada desregrada ilusão da minha vida.

Que os bichos vão roendo o vão caruncho

da inútil poeira de astros que imagino.

Que — sei-o bem! — lá no mais fundo,

forte e imarcescível sob os golpes

resiste a minha força verdadeira.

E o poema sempre novo no meu sangue

conhece também sua glória de aço

que vê sem dor as pobres farsas

e os caminhos cruéis em que me perco.

Veio da luz inutilizando os laços

armados no caminho à minha espera,

mão de ferro erguendo-se dos limbos

e mandando-me fitar o sol em face!

 

Adolfo Casais Monteiro

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

POSTAIS SEM SELO

Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer, é porque um dos dois é burro.

 Mário Quintana

QUOTIDIANOS

Sempre fui uma defensora do comércio local.

Há uns 10 anos que, dois prédios ao lado daquele onde vivo, existe uma pequena frutaria em que trabalha um casal de jovens nepaleses.

Gente de uma simpatia sufocante, de uma amabilidade que só se aprende na dura vida que se leva.

Antes da pandemia abriam às 08,00 horas e fechavam sempres depois das 22,00 horas e nunca fechavam aos sábados nem aos domingos.

Um dia falei-lhes do trabalho duro que despendiam, calmamente, com um sorriso nos lábios, disseram que tinham deixado o Nepal para trabalharem, apenas para isso, e que aguardavam o dia de voltarem em condições diferentes daquelas com que partiram.

 Hoje estão fechados, é a festa do país, e deixaram um delicioso aviso aos seus clientes e em que pedem desculpa pelo incómodo.

Em momentos complicados, por exemplo, falta salsa para colorir as pataniscas de bacalhau, sei sempre que há a forte possibilidade que os «miúdos» nos desenrasquem.

Serei sempre uma defensora do comércio local, muito mais ainda nos tempos de pandemia que correm, em que as idas às grandes superfícies são um risco.

Aliás, tudo hoje em dia é um risco!

Texto e fotografia de Aida Santos

AS PÁGINAS DOS ROMANCES


Arriscávamos o salto mortal

voando com uma venda nos olhos

dos andaimes para o monte de areia da póvoa.

As obras da escola eram a nossa perdição:

 

as fasquias de alumínio, o ondulado de luzalite

das coberturas, o entulho, o ressalto

exacto do encaixe das tijoleiras, o pó quase de talco

dos sacos de cimento da cimpor. Nos sábados

 

à tarde erguíamos muros no combarro com tijolo

de quinze, marcávamos com estacas de pinho

o perímetro exterior do pavilhão, ligavamos a betoneira

a olhar em sobressalto os movimentos oscilatórios

 

do balde. Penso que era assim. Às vezes

pergunto o que fica dos livros, o que pertence

e não pertence à literatura, o que acrescentaram

à nossa vida as páginas dos romances.

 

José Carlos Barros

domingo, 25 de outubro de 2020

POSTAIS SEM SELO

Bebe vinho, ele te devolverá a mocidade, a divina estação das rosas, da vida eterna, dos amigos sinceros. Bebe, e desfruta o instante fugidio que é a tua vida.

 Omar El Kahyyam

ANTOLOGIA DO CAIS

Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram sendo publicados.


DIAS COMUNS

 

Como não compro livros em hipermercados, fnacs e outras variantes, apenas em livrarias, só no sábado tive a possibilidade de comprar o VII Volume dos Dias Comuns do José Gomes Ferreira.

Apercebi-me, então, que ainda não colocara, por aqui, nenhuma capa destes diários.

Apressei-me, no domingo a colocar a do I Volume e ontem a do agora saído VII Volume.

 As restantes irão aparecendo com o passar dos dias.

 Não quer isto dizer que ao longo destes tempos não tenham sido publicado muitos dos textos dos livros, principalmente durante o estertor salazarento colocado no Passar dos Tempos, finais de 1968.

 Segundo se pode constatar pela leitura de Música, Minha Companheira Desde Os Tempos daInfância, os Dias Comuns é um projecto que constará de 20 volumes.

 O último chama-se E A Vida Corre Sem A Elegância de Uma Gazela e percorre os dias de 1 de Outubro de 1979 a 25 de Maio de 1980.

 José Gomes Ferreira morreu a 8 de Fevereiro de 1985.

 A periodicidade da publicação destes diários tem sido de uma leviandade a todos os títulos lamentável.

 Vejamos e, por mera curiosidade, coloco o preço de cada volume, havendo um ou outro de que não tem essa indicação:

 1º Volume, Passos Efémeros, Outubro de 1990, mil novecentos e oitenta escudos.

 2º Volume, A Idade do Malogro, Setembro de 1998, dois mil duzentos e cinquenta escudos.

 3º volume, Ponte Inquieta, Maio de 2000.

 4º volume, Laboratório de Cinzas, Maio de 2004, catorze euros e quarenta cêntimos.

 5º volume, Continuação do Sol, Novembro de 2010, catorze euros.

 6º volume, Memória Possível, Janeiro de 2013.

 7º volume, Rasto Cinzento, Março de 2015, dezassete euros e noventa cêntimos.

 Ou seja: 25 anos para publicar sete volumes.

 Pelo andar da carruagem, muitos de nós, jamais irão ler os Dias Comuns na sua totalidade.

 Hélas!

 Quem é José Gomes Ferreira?

 Alguém lê José Gomes Ferreira?

 O império Leya comprou a Editorial Caminho, as Publicações Dom Quixote, outras editoras e mais não tem feito do que descaracterizar essas, em tempos, estimáveis editoras.

 Não admira que tantos autores já tenham batido com a porta, entre outros, Mário de Carvalho, João Tordo, José Saramago.

 Até António Lobo Antunes tem vindo a ser votado a um silencioso desprezo.

 De livros apenas devia tratar quem lhes sente a importância e os ame.

 José Gomes Ferreira deixou escrito que em todos os volumes destes diários deviam aparecer estas indicações:

 1.

Desejaria que estes meus Diários, pertencentes como as restantes minhas obras à minha mulher e filhos, fossem publicados na íntegra.

Antes da publicação gostaria contudo que consultassem os meus amigos mais íntimos para qualquer amputação ou disfarce (a substituição pelas iniciais de alguns nomes, por exemplo).

Exijo entanto que sejam sempre consultados o Carlos de Oliveira e o Alexandre Pinheiro Torres.

Lisboa, 7 de Março de 1976.

 2.

Imprimam sempre esta sentença no princípio de todos os meus diários:

Àqueles que podendo, por ter sido mal informado, peço que me perdoem e continuem a sorrir para a imagem.

 A abrir a nota que Maria Teresa Horta escreveu, em Dezembro de 2000 no Diário de Notícias, para os três primeiros volumes dos Dias Comuns, pode ler-se:

 Enchem-se-me os olhos teimosamente de lágrimas sempre que recebo mais um livro de José Gomes Ferreira, querido amigo desaparecido, que me ensinou a conservar o sorriso ao longo dos dias que vamos vivendo, e a esperança no mundo, apesar de tudo, e até nos outros, que nos levam a desconfiar de tanta coisa.

 E ainda:

Textos inestimáveis a trazer-nos de volta a memória de um Portugal amordaçado, amesquinhado. Pobre País no qual, apesar de tudo, José Gomes Ferreira acreditava.

 

Texto publicado em 14 de Abril de 2015

sábado, 24 de outubro de 2020

POSTAIS SEM SELO

Conseguem imaginar a velhice? É claro que não. Eu não conseguia. Não era capaz. Não fazia a mínima ideia de como era. Não tinha sequer uma falsa ideia – não tinha imagem nenhuma. E ninguém quer outra coisa qualquer. Ninguém quer enfrentar nada disto antes de ter outro remédio. Como vai ser? O embotamento é de rigueur.

 Philip Roth em O Animal Moribundo

ANTOLOGIA DO CAIS

Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram sendo publicados.


RELACIONADOS

 

Ao longe, a morte acena a Sam Shepard e ele fica com o entendimento que os seus leitores, ele próprio, merecem um último olhar sobre tabernas de cidades de fronteira ou perdidas no meio do deserto, terras de apaches e saguaros, sonhos e desventuras, olhar o céu, senti-lo perto de si, adormecer e acordar ao som do cântico dos tordos, uma espécie de melancolia, deitado à espera que alguém o encontre, algo de muito seu que lhe faça companhia na última viagem.

«Há alturas em que não posso deixar de pensar no passado. Sei que o presente é o lugar para se estar. Sei que me foi recomendado por pessoas muito sensatas que permanecesse no presente o mais possível, mas o passado apresenta-se. O passado não vem como um todo. Vem sempre em partes.»

 Quem é que Sam espia?

 Quem é que espia Sam?

 Nem ele se lembra, ou sabe.

 «Visto à distância. Isto é, a ver do outro lado da estrada, é difícil dizer qual a idade dele por causa do alpendre fechado com rede a toda a volta. Por causa dos óculos escuros a toda à volta. Roxos. O Mascarilha. Bandido mascarado. Não sei o que está a proteger. Está efectivamente dentro de um alpendre fechado, com insectos que zumbem, aves que chilreiam, todo o tipo de coisas estivais que vão ocorrendo, no exterior – borboletas, vespas, etc. -, mas é muito difícil dizer com exactidão a esta distância e a idade que tem. O boné de beisebol, as jeans encardidas, o colete velho.»

Sam Shepard começou a pensar no livro no ano de 2016.

Escreveu-o depois em rascunhos manuscritos já que a esclerose lateral amiotrófica que o atacou, impedia-o de dactilografar. Quando já não conseguia escrever à mão, passou a gravar os textos e os filhos faziam a transcrição para papel.

Patti Smith, amiga e antiga companheira, apoiou-o na edição do manuscrito, quem mais o poderia fazer, ela que é uma eterna frequentadora de sombras, fragilidades várias, visões de cemitérios perdidos pelos mundos?

 Sam fez a revisão do livro e ditou a versão final alguns dias antes de morrer, a 27 de Julho de 2017. Tinha 73 anos.

 «A Lua está a ficar cada vez maior. A Lua dos Morangos (lua cheia do mês de Junho, Strawberry Moon, segundo nota do tradutor). Iluminando a nossa pequena trupe. A Lua Cheia. Dois filhos e o pai, com toda agente atrás. Seguindo pelo meio de East Water Street, e agora a noite está mesmo clara. A lua cheia. Conseguimos e coxeámos pelas escadas acima. Ou melhor, eu coxeei. Os meus filhos não coxearam, eu coxeei.»

 Nas suas breves noventa e sete páginas, um livro desesperado mas um belíssimo livro.

 Não sabemos o que pensar daquelas palavras dos seus últimos dias, não sabemos o que fazer quando fechamos o livro e o deixamos suspenso entre as mãos.

  «Aliás, já estou vazio. Do género de uma concha», escreveu Sam, no aproximar da página final quando sente que já não sabe como suportar a monotonia.


Texto publicado em 29 de Outubro de 2018.

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

POSTAIS SEM SELO

Ser cristão é um risco, ser humano é um grande risco.

José Tolentino Mendonça

 Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.

ENGOLIDO POR UMA BALEIA

O escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez, autor de dois romances que ficarão para sempre na História da Literatura – Cem Anos de Solidão e O Amor nos Tempos de Cólera -, explicou, um dia, a origem da ficção: «A ficção foi inventada no dia em que Jonas regressou a casa e contou à mulher que chegou com três dias de atraso por ter sido engolido por uma baleia.»

João Tordo em Manual de Sobrevivência de Um Escritor.

Carrossel

Não enxergas. Quer dizer, olhas para isto e não vês
nada. Em rigor a manhã só desperta com o gesto
de um miúdo. Estender o braço e fazer pontaria.
Há quanto tempo está ali, a observar-te?

À volta de toda a praça, o grande carrossel gira,
o grande ciclo da vida, a morte e o renascimento.
Vozes desconhecidas ecoam por todo o lado, palavras
que se transmitem de uma geração para outra.

Pois bem, o balanço do mar largo continua.
Não te deixes enganar pela harmonia da calçada.
Hoje é dia das mentiras, és capaz de ter razão.

Vítor Nogueira em Resumo: a poesia em 2009

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

POSTAIS SEM SELO

Agora há só abismos não há rostos.

Alberto Lacerda em Exílio

PODEMOS CONFIAR NOS HOSPITAIS PRIVADOS?


 Já se esqueceram que, logo em março, muitos hospitais privados começaram a cobrar aos utentes das consultas mais simples uma abusiva "taxa Covid" de 10 a 20 euros, que podia ir às centenas de euros no caso de uma cirurgia? E isto até para pagar equipamentos de proteção, banais e baratos, como máscaras e gel?

Já se esqueceram que vários hospitais privados decidiram suspender as convenções com o Estado, no período de março a abril, a até então fase mais difícil da pandemia do novo coronavírus, deixando de dar apoio ao Serviço Nacional de Saúde quando este mais precisava?

Já se esqueceram que, em setembro, foi notícia o facto dos hospitais privados recusarem fazer partos a grávidas com COVID, sem terem avisado disso as mães que, durante a fase de acompanhamento da gravidez, iam lá às consultas médicas?

Já se esqueceram que no mês passado a Entidade Reguladora da Saúde teve de emitir um comunicado, depois de receber várias queixas de utentes, a pedir aos hospitais privados que recusam doentes com COVID-19 para avisarem antecipadamente os utentes dessa decisão?

É totalmente verdadeira a acusação de pessoas de direita a pessoas da esquerda de estas defenderem o Serviço Nacional de Saúde por motivos ideológicos - o pensamento de que o acesso a tratamentos médicos deve ser gratuito e de qualidade idêntica para pobres e ricos condiciona a abordagem que qualquer pessoa verdadeiramente de esquerda faz a este problema. Por mim, que sou de esquerda, ainda bem que é assim.

Mas também é totalmente verdadeira a acusação inversa: a de que as pessoas de direita defendem por motivos ideológicos o favorecimento dos hospitais privados, mesmo quando muitos deles defraudam clamorosamente, recorrentemente e gananciosamente os seus clientes, o seu dever de responsabilidade social, a pureza da ética médica. É o que está a acontecer com a operação "salvem os hospitais privados" em curso.

O comunicado da semana passada assinado pelo bastonário e ex-bastonários da Ordem dos Médicos vai muito bem até ao parágrafo sete (a pressão sobre o Governo para que garanta um Serviço Nacional de Saúde superlativo deve, até, ser permanente, não limitada aos tempos de crise) mas, depois disso, atira-se ao alarmismo para acabar a defender que "os setores de saúde sociais e privados devem ser mais envolvidos no esforço covid e não-covid para que a capacidade instalada seja efetivamente usada em vez de desperdiçada".

Em primeiro lugar, tal afirmação, para ser eticamente irrepreensível, deveria ser acompanhada por uma declaração de interesses de cada um dos seis bastonários subscritores do texto sobre as suas ligações à medicina privada - e aparentemente (basta uma busca na Internet para o comprovar) todos têm essa ligação, desde o nível básico de dar consultas num hospital ou num consultório privado, até ao mais complexo de ter o seu nome como marca de uma rede de laboratórios.

Em segundo lugar, a afirmação dos bastonários ignora uma questão de fiabilidade, dado o comportamento desolador, largamente documentado, dos hospitais privados assim que começou a pandemia: poderemos confiar neles para nos ajudarem nesta segunda fase da doença?

Em terceiro lugar, há a conta do contribuinte: no final do dia sai mais barato ao Estado pagar a privados para prestarem serviço público ou a gastar dinheiro em reforço dos seus meios humanos e técnicos? Ao longo de décadas inúmeros relatórios do Tribunal de Contas põem largas dúvidas sobre a vantagem da relação Estado-privados na Saúde.

E vou ignorar neste artigo a questão da corrupção, seja a puramente criminal, seja a institucionalizada e aceite como "normal" e até "recomendável", que as várias vertentes do negócio da Saúde no século XXI comportam: desde os preços dos medicamentos impostos pelos grandes conglomerados da indústria farmacêutica até à promiscuidade do exercício profissional da medicina, simultaneamente, no setor público e privado.

Acho aliás bastante graça ao facto de o texto dos bastonários referir muito o SNS, limitando-se ao equívoco da sigla, sem nunca explicar se se refere ao Serviço Nacional de Saúde ou se utiliza a "novilíngua" que a direita inventou para privatizar, na mente das pessoas, a prestação pública de cuidados de saúde: Sistema Nacional de Saúde.

O texto dos bastonários serviu de pretexto para o Presidente da República dar uma finta ao governo e iniciar uma série de audiências ao atual e aos ex-bastonários da Ordem dos Médicos, a outros bastonários das áreas ligadas à saúde, a ex-ministros da saúde, a sindicatos, a confederações sindicais e patronais, à própria ministra da Saúde - e adivinho a conclusão do Presidente ir coincidir, quase na íntegra, com as teses dos bastonários.

Simultaneamente, no Parlamento, a esquerda tenta convencer o Governo a reforçar mais do que o previsto o investimento no Serviço Nacional de Saúde - e aqui está, palpita-me, o busílis da questão: com os novos fundos europeus que estão prometidos, o que se passa, de facto, não é uma guerra para melhorar o atendimento dos doentes, é a conquista para os privados da maior fatia possível desse bolo.

Obviamente que se for necessário usar os hospitais privados para salvar vidas a pessoas se deve fazê-lo, e já. Mas transformar isso num instrumento para voltar a enfraquecer o Serviço Nacional de Saúde - fazendo com que no pós-pandemia ele dependa mais da "ajuda" privada - não é aceitável. Por motivos ideológicos, sim, mas sobretudo, como se tem visto, porque não se pode confiar neles.

 

Pedro Tadeu no Diário de Notícias on-line

PERGUNTAS

Tenho sempre, na algibeira da noite,
algumas vigorosas perguntas de reserva,
prontas a disparar em legítima defesa
contra o negrume.

Algumas são pequeninas, vulgares
aspectos de pormenor.
Outras, pelo contrário, são enormes,
desabridas como a boca dum forno --
do género, porque é que deste quatro,
e não seis, ou oito, pernas à rã.

Hoje ocorre-me fazer a menor de todas:
se foste tu que fabricaste o tempo
e a ele nos acorrentaste?
e com que barro? e com que raio
de segunda intenção?

Se é que não foi apenas por descuido.
Ou até casualmente, como acontece às vezes
ao cientista que faz experiências
e acaba por descobrir seja o que for.

A.M. Pires Cabral em resumo: a poesia em 2010

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

POSTAIS SEM SELO

A serenidade é a maior virtude da inteligência.

 José Rodrigues MiguéisPáscoa Feliz

 Legenda: imagem Shorpy

OLHAR AS CAPAS


 O Santo e o Detective Habilidoso

 

Leslie Charteris

Tradução: Fernanda Pinto Rodrigues

Capa: Lima de Freitas

Colecção Vampiro nº 244

Livros do Brasil, Lisboa s/d


O rebelde de ontem é o herói de amanhã.

Simon Templar, conhecido pelo Santo, Cuja captura foi a ambição de todos os polícias de Londres há alguns anos, por via dos seus esforços para impor a sua marca pessoal de justiça extralegal, é hoje fotografado ao lado de estrelas de cinema, em noites de estreia, e tem de ser salvo pela Polícia de multidões de admiradores que o assediam a pedir autógrafos.

O inverso também acontece.

Joe Luckner «Felizardo», o ídolo de Soho, chefe de uma quadrilha cujo campo de acção eram as corridas e que esteve prestes a ser o equivalente inglês dos extorsionários americanos, vai ser julgado por tentativa de assassínio.

Não vemos necessidade de o Santo voltar ao seu antigo procedimento, pois os nossos criminosos são tratados como merecem, por homens cuja mussão é essa e que têm o apoio da opinião pública.

Foi assim, com este optimismo, que o autor do editorial do News Chronicle falou, caerta manhã, a um milhão de ingleses, que leram o seu artigo enquanto tomavam o pequeno almoço.