quinta-feira, 8 de outubro de 2020

A PRAÇA DA REVOLUÇÃO E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO

A “Plaza de la Revolución”, em Havana, é um dos lugares mais míticos da Cuba revolucionária.

Com os seus 72.000 metros quadrados, é uma das maiores praças do Mundo, sendo rodeada por ministérios e outros edifícios governamentais, entre os quais o Palácio da Revolução, que é a sede do Governo e do Partido Comunista de Cuba.

Dois dos ministérios, em particular, chamam a nossa atenção.

O Ministério do Interior, com um gigantesco desenho de Che Guevara feito a partir da célebre fotografia que lhe foi tirada por Alberto Korda, ao lado do qual está inscrita a frase “Hasta la Victoria Siempre”.

O Ministério das Comunicações, que tem um idêntico desenho que muitos pensam ser de Fidel Castro (eu próprio o pensara, há anos atrás...), mas que, na realidade, é de Camilo Cienfuegos, e que tem ao lado a frase “Vas Bien Fidel”.

Estes desenhos estão iluminados de noite, dando à Praça um ambiente muito especial.

Numa dos extremos da Praça encontra-se o Memorial José Marti, constituído por uma torre em forma de estrela com mais de cem metros de altura e por uma estátua de mármore de Marti com 17 metros de altura, com um ar de reflexão que nos faz lembrar “O Pensador”, de Rodin.

O topo do Memorial é considerada a vista mais alta da cidade de Havana.

José Marti, o simbolo da independência cubana, agradava a gregos e a troianos, leia-se tanto a Fulgêncio Batista como a Fidel Castro. Por motivos nem sempre coincidentes, claro está…

É por isso que o Monumento a José Marti começou a ser construído na época de Fulgência e foi concluído, tal como toda a praça, em 1959, já com Fidel no comando das operações.

Os discursos de Fidel Castro têm fama de ser dos mais longos que alguma fez se fizeram. E não é só fama porque ainda hoje ele é o recordista do mais longo discurso proferido na Assembleia-Geral das Nações Unidas (4h29, em 26 de Setembro de 1960), que ainda assim ficou muito longe do seu próprio recorde pessoal, que foi de 7h10, proferido em 1986 perante o III Congresso do Partido Comunista de Cuba.

Mas, independentemente da sua duração, muitos dos historicamente mais relevantes discursos de Fidel foram feitos nesta mesma praça, como é o caso daqueles que ficaram conhecidos por Primeira e Segunda Declaração de Havana, em 02/09/1960 e 04/02/1962, respetivamente, daquele que declarou Cuba “território livre de analfabetismo”, em 22/12/1961, ou do relacionado com a safra de 10 milhões de toneladas de açúcar, de 26 de Julho de 1970, a que faz referência o filme de Chris Marker.

Com centenas de milhares de pessoas a assistir, entre cubanos e embaixadas dos “países amigos”, alguns dos discursos do 1º de Maio e de 26 de Julho ficaram, igualmente, lendários na História de Cuba.

Outros eventos importantes tiveram também lugar nesta Praça, como uma Missa rezada a 20 de Setembro de 2015 pelo Papa Francisco, cuja preparação já se fazia um mês antes, quando por lá passei.

E foi neste ambiente altamente solene e espiritual da Plaza de la Revolución que o Diabo atacou e desviou, por completo, a minha atenção. 

Vestido de vermelho, é claro…

No meio de todas aquelas respeitáveis carcaças dos anos 40 e 50 estacionadas no meio da Praça a aguardar cliente, um magnífico Ford Thunderbird, de 1958, olhava para mim com um ar desafiante, como quem me convida para alguns momentos de luxúria e de prazer.

Olhei-o de frente para lhe ver o sorriso.

Espantei-me com a elegância e a beleza das suas formas.

Mirei-lhe a traseira, de cortar a respiração.

Vi a beleza daquelas jantes incrustadas nas rodas que o agarravam ao chão.

O “coup de foudre” foi instantâneo, como sucede em relação àquelas raras mulheres que olhamos e de imediato pensamos “tens de ser minha”, sabendo perfeitamente que nunca o serão, primeiro porque não somos nenhum Paul Newman ou Alain Delon de olhar fatal, e depois porque para engate temos tanto jeito como o Woody Allen, pelo que o mais certo seria acabarmos a noite a cortar o cabelo…

Tens de ser meu”, disse para mim próprio, de imediato.

Mas os carros têm uma enorme vantagem em relação às mulheres, que é a de podermos comprá-los (ou alugá-los) sem que tal nos provoque qualquer problema de consciência.

 E foi o que fiz de imediato, contratando-o para me rebolar com ele na manhã do dia seguinte, em que me levaria à Finca Vigia e a Cojimar.

Foi inesquecível o passeio, como poderão imaginar, em particular as passagens de ida e volta pelo Malécon.

Os feitiços perduram no tempo e, passados que foram cinco anos, ainda aqui continuo eu enfeitiçado…

É por isso que não me consigo limitar a dizer-vos “vejam bem a imponência deste lugar”, sem acrescentar, logo de seguida, “reparem na suavidade e na elegância destas linhas”...

Ou dizer-vos “ponham os olhos naqueles desenhos de Che e de Cienfuegos ali no alto dos edifícios,tão emblemáticos da Havana revolucionária e que guiam, dia e noite, o povo cubano”, sem insistir na recomendação “olhem-me bem a maravilha destas jantes raiadas”….

Nem falar-vos de José Marti, o herói da independência de Cuba e o Poeta de “Guantanamera”, que todos nós cantámos vezes sem conta, sem vos perguntar logo de seguida “viram bem aquelesinteriores…? E a traseira….?”.

Pois é…

A verdade é que o carro concentrou toda a minha atenção e já nem à Torre tive tempo para subir…

Não deixa de ser uma ironia do destino que aqui, neste local de Havana onde as memórias da Revolução mais nos esmagam, nesta histórica praça onde o Imperialismo mais criticado e mais vilipendiado foi nas últimas décadas, o Capitalismo tenha vencido…!

À minha custa e logo com um Ford, cujo criador inventou a maldita cadeia de montagem…!

Não foi como Fausto, que vendeu a Alma ao Diabo, mas quase…

Em boa verdade, enquanto gajo que se diz de esquerda, deixo muito a desejar….

PS:

A propósito dos longos discursos de Fidel, se ainda o não fizeram não percam a oportunidade de ver “Diary of a Beginner”, o episódio do israelita Elia Suleiman que integra o filme coletivo “Sete Dias em Havana” (2012). É uma verdadeira delícia de humor fino!


Texto e fotografias de Luís Miguel Mira

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