sábado, 17 de outubro de 2020

TIRADAS


 Está na altura de acabarmos com estas brincadeiras do W.A., que acabaram por ir bem mais longe do que eu inicialmente imaginara.

A partir de determinada altura o livro centra-se, exclusivamente, na ligação com Mia Farrow e nas nossas bem conhecidas alegações de pedofilia em relação à sua filha adotiva Dylan e a Soon- Yi, filha adotiva mais velha de Mia. Estranha pedofilia esta última, com uma rapariga de 23 anos, mas enfim, vindo de Mia tudo parece possível... 

Woody defende-se como pode e uma boa parte desta sua autobiografia é destinada a procurar desmontar essas acusações.

E se no início o pensei, depois de ler o livro tenho a certeza absoluta de que Woody Allen, um homem sempre tão cioso da sua privacidade, só avançou para esta obra como meio de defesa pessoal, numa altura em que, graças a fenómenos como o "MeToo", a sua história passada voltou à baila. E de que maneira: A Amazon rescindiu-lhe um contrato para realização de um filme; atores e atrizes que anteriormente filmaram com ele retrataram-se publicamente e ofereceram esses "cachets" a obras de caridade; novos atores recusaram-se a trabalhar com ele em novos filmes; à data da publicação do livro, o seu último e bonito filme, "Um Dia de Chuva em Nova Iorque", ainda não tinha sido estreado nos Estados Unidos; a publicação de "A Propósito de Nada" foi recusada por diversas editoras americanas importantes; a imprensa americana cravou-lhe os dentes o e não mais o deixou em paz; e por aí fora...

O livro torna-se, assim, um ajuste de contas com Mia Farrow, alguns dos seus filhos, o poder judicial, alguma Imprensa e outros responsáveis editoriais e da Indústria Cinematográfica.

Tenho a minha opinião pessoal acerca de todo este longuíssimo, processo, mas para fofoquices não contem comigo...

Acabaremos aqui, portanto,...

Para terminar, não resisto a uma última "Tirada". Será a mais extensa de todas, porque corresponde a mais de três páginas inteiras do livro, mas tem a vantagem de ser a última...

É acerca de W.A. na culinária.

Eu, que sei estrelar e mexer ovos e fiquei muito contente quando, muito recentemente, consegui fazer qualquer coisa que já se assemelha bastante a uma omelete, achei muita graça... 

".... num momento de loucura inexplicável, decidi fazer uma breve pausa na minha ascensão meteórica para alturas não merecidas e tornar-me um grande chefe de cozinha. Até então , as minhas aptidões culinárias eram iguais às de qualquer outro cidadão capaz de lidar com um abre-latas. Era um homem hábil no que dizia respeito a sandes de atum. Conseguia cozer ovos com algum aprumo, e posso dizer que o meu copo de água fresca era a inveja de qualquer finalista do Gordon Bleau. Sendo solteiro, e quando Jean Doumanian (Nota: amiga pessoal e produtora dos seus filmes) ou semelhante companhia não estivesse disponível para uma refeição no Elaine's, podia normalmente ser encontrado a encomendar e devorar comida chinesa, colado ao ecrã da televisão. Onde quero chegar é que, certo dia, decidi aprender a cozinhar. Mas não queria simplesmente aprender a aquecer carne enlatada ou a fazer um excelente arroz instantâneo. A minha fantasia digna de Coleridge era tornar-me um verdadeiro chef. Aprenderia os segredos da mestria culinária e jantaria hortulanas e línguas de pavão, mesmo que me fosse sentar sozinho á frente de Walter Cronkite.

E daqui resultariam algumas vantagens complementares. Possuindo claramente os dotes de um Escoffier ou de um Gordon Tramsey, tornaria a estrada de homem solteiro para a sedução mais livre de buracos. Para a voluptuosa CEO loura que eu convidaria para jantar, primeiro encantada pela minha inteligência e por uma nova poupa que apresentaria, seguindo o molde  de A Grande Onda, de Hokusai, chegaria ter de tolerar educadamente uma nova versão de toucinho e papas misturados por um solteiro solitário e inepto; talvez uma mistura de Bird's Eye descongelada ou uma sopa rala da variedade servida aos hóspedes do Arquipélago Goulap. Ela oferecer-se-ia para assumir o controlo e mostrar-me como, num instante, era possível a alguém que soubesse o que estava a fazer preparar um festim. Mas esperem, o que é isto? Como é que a surpreendi? Coquilles St. Jacques, talvez com um Chablis ou Sauvignon. Ou camembert assado com um Bordaux tinto.  Ou um blanquette de veau e, para sobremesa, um clafoutis, feito com cerejas. Ou, se ela preferir, a minha tarte Tatin. Será suficientemente impressionante? Acho que sim. A partir daí deverá ser uma viagem expresso até ao quarto para queimar algumas das calorias na cama.

Confiante de que nunca mais teria de me sujeitar ao meu spaghetti com almondegas, um prato cuja consistência rivalizava com a cola de papel, o meu primeiro passo foi pedir a minha assistente que telefonasse a Julia Child, dizendo que Mister Woody Allen quer a recomendação de um excelente professor de cozinha. Aulas privadas, claro. Madame Child, que eu nunca conhecera, foi suficientemente simpática para não transferir a chamada para o FBI e fez-me a vontade, sugerindo uma senhora encantadora, de seu nome Lydie Marshall. Foi marcado um encontro e Miss Marshall apareceu no meu apartamento. Avaliou os meus tachos e panelas, o meu fogão, o longo avental e touca brancos, que eu adquirira em antecipação, e pressentindo que tinha apanhado o seu peixe, telefonou ao contabilista dizendo-lhe que podia dar entrada para o casaco de zibelina que tanto queria.

Cada lição seria de três horas, e ela levaria consigo os diversos ingredientes. Não houve tempo para deixar crescer um bigode fino, gálico, antes de a nossa primeira lição ter começado. Iria fazer pasta caseira, carne com molho béarnaise, espargos, batatas lyonnaise, profiteroles, café e madalenas. Não me consigo lembrar de muito mais a não ser dizer-lhe que eram tudo coisas que eu já tinha visto em menús do Lutèce ou do Grenouille, ou sobre as quais lera em Proust. Dirigi-lhe um sorriso de orelha a orelha e, pronunciando erradamente "bon appetit", mergulhei. Bem, para irmos ao que interessa, aguentei-me três aulas e estava de tal modo tolhido pela exaustão que não me conseguia manter-me pé quando cada sessão terminava. Estava demasiado fraco para comer as refeições; arfava e salivava e, por duas vezes, ela perguntou-me se devia ligar para o 112 e se tinha família próxima. 

Eu sempre fora um tipo atlético, por essa altura jogava ténis com muita frequência e conseguia facilmente aguentar-me num jogo de singles durante três ou quatro horas sem quaisquer sinais de abrandamento. Mas a histeria e a tensão de cozinhar davam cabo de mim. Ando a correr pela cozinha toda, a massa de pasta pendurada nas costas da cadeira, a pingar como caramelo, enquanto o pato queima, eu a suar por causa do calor do fogão, a minha mão entorpecida de tanto bater. Já não consigo bater mais. O meu pulso começa a sentir os danos. Vai matar o meu serviço. E porque estou eu a bater? Odeio natas batidas. Entretanto, se paro de mexer, o molho béarnaisse não vai chegar a molho. Por alguma razão, o créme caramel ficou impossível de distinguir de um disco de hóquei, e ainda que nunca tivesse utilizado um extintor antes, consegui de alguma forma cobrir o robalo com uma camada de espuma branca. Foi nesse momento que, algures, Joël Robuchon e Damniel Boulus suspiraram de alívio, pressentindo que as suas reputações estavam em segurança e não cairiam nas mãos de um intruso de quatro olhos, cujo salmão fumado tinha implodido. Infelizmente, continuaria a comer moo goo gai pan de baldes de cartão e a reaquecer as pizzas entregues. As mulheres que convidava para jantar seriam aconselhadas a parar no Popeyes e a trazer consigo os seus próprios nutrientes. Poiderá ser uma transição menos elegante para a cama, onde continuo a tentar ganhar aquela estrela Michelin."

 

(Págs 241 a 244) 

Woody Allem A Propósito de Nada

Colaboração de Luís Miguel Mira

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