Está na altura de acabarmos com estas brincadeiras do W.A., que acabaram por ir bem mais longe do que eu inicialmente imaginara.
A partir de determinada altura o livro centra-se, exclusivamente,
na ligação com Mia Farrow e nas nossas bem conhecidas alegações de pedofilia em
relação à sua filha adotiva Dylan e a Soon- Yi, filha adotiva mais velha de
Mia. Estranha pedofilia esta última, com uma rapariga de 23 anos, mas enfim,
vindo de Mia tudo parece possível...
Woody defende-se como pode e uma boa parte desta sua
autobiografia é destinada a procurar desmontar essas acusações.
E se no início o pensei, depois de ler o livro tenho a
certeza absoluta de que Woody Allen, um homem sempre tão cioso da sua
privacidade, só avançou para esta obra como meio de defesa pessoal, numa altura
em que, graças a fenómenos como o "MeToo", a sua história passada
voltou à baila. E de que maneira: A Amazon rescindiu-lhe um contrato para realização
de um filme; atores e atrizes que anteriormente filmaram com ele retrataram-se
publicamente e ofereceram esses "cachets" a obras de caridade; novos
atores recusaram-se a trabalhar com ele em novos filmes; à data da publicação
do livro, o seu último e bonito filme, "Um Dia de Chuva em Nova
Iorque", ainda não tinha sido estreado nos Estados Unidos; a publicação de
"A Propósito de Nada" foi recusada por diversas editoras americanas
importantes; a imprensa americana cravou-lhe os dentes o e não mais o deixou em
paz; e por aí fora...
O livro torna-se, assim, um ajuste de contas com Mia
Farrow, alguns dos seus filhos, o poder judicial, alguma Imprensa e outros
responsáveis editoriais e da Indústria Cinematográfica.
Tenho a minha opinião pessoal acerca de todo este longuíssimo,
processo, mas para fofoquices não contem comigo...
Acabaremos aqui, portanto,...
Para terminar, não resisto a uma última
"Tirada". Será a mais extensa de todas, porque corresponde a mais de
três páginas inteiras do livro, mas tem a vantagem de ser a última...
É acerca de W.A. na culinária.
Eu, que sei estrelar e mexer ovos e fiquei muito
contente quando, muito recentemente, consegui fazer qualquer coisa que já se
assemelha bastante a uma omelete, achei muita graça...
".... num
momento de loucura inexplicável, decidi fazer uma breve pausa na minha ascensão
meteórica para alturas não merecidas e tornar-me um grande chefe de
cozinha. Até então , as minhas aptidões culinárias eram iguais às de qualquer
outro cidadão capaz de lidar com um abre-latas. Era um homem hábil no que dizia
respeito a sandes de atum. Conseguia cozer ovos com algum aprumo, e posso dizer
que o meu copo de água fresca era a inveja de qualquer finalista do Gordon
Bleau. Sendo solteiro, e quando Jean Doumanian (Nota: amiga pessoal e produtora
dos seus filmes) ou semelhante companhia não estivesse disponível para uma
refeição no Elaine's, podia normalmente ser encontrado a encomendar e devorar
comida chinesa, colado ao ecrã da televisão. Onde quero chegar é que, certo
dia, decidi aprender a cozinhar. Mas não queria simplesmente aprender a aquecer
carne enlatada ou a fazer um excelente arroz instantâneo. A minha fantasia
digna de Coleridge era tornar-me um verdadeiro chef. Aprenderia os
segredos da mestria culinária e jantaria hortulanas e línguas de pavão, mesmo
que me fosse sentar sozinho á frente de Walter Cronkite.
E daqui resultariam
algumas vantagens complementares. Possuindo claramente os dotes de um Escoffier
ou de um Gordon Tramsey, tornaria a estrada de homem solteiro para a sedução
mais livre de buracos. Para a voluptuosa CEO loura que eu convidaria para
jantar, primeiro encantada pela minha inteligência e por uma nova poupa que
apresentaria, seguindo o molde de A Grande Onda, de Hokusai,
chegaria ter de tolerar educadamente uma nova versão de toucinho e papas
misturados por um solteiro solitário e inepto; talvez uma mistura de Bird's Eye
descongelada ou uma sopa rala da variedade servida aos hóspedes do Arquipélago
Goulap. Ela oferecer-se-ia para assumir o controlo e mostrar-me como, num
instante, era possível a alguém que soubesse o que estava a fazer preparar um
festim. Mas esperem, o que é isto? Como é que a surpreendi? Coquilles
St. Jacques, talvez com um Chablis ou Sauvignon. Ou camembert assado
com um Bordaux tinto. Ou um blanquette de veau e, para
sobremesa, um clafoutis, feito com cerejas. Ou, se ela preferir, a
minha tarte Tatin. Será suficientemente impressionante? Acho que sim. A partir
daí deverá ser uma viagem expresso até ao quarto para queimar algumas das
calorias na cama.
Confiante de que
nunca mais teria de me sujeitar ao meu spaghetti com
almondegas, um prato cuja consistência rivalizava com a cola de papel, o meu
primeiro passo foi pedir a minha assistente que telefonasse a Julia Child,
dizendo que Mister Woody Allen quer a recomendação de um excelente professor de
cozinha. Aulas privadas, claro. Madame Child, que eu nunca conhecera, foi
suficientemente simpática para não transferir a chamada para o FBI e fez-me a
vontade, sugerindo uma senhora encantadora, de seu nome Lydie Marshall. Foi
marcado um encontro e Miss Marshall apareceu no meu apartamento. Avaliou os
meus tachos e panelas, o meu fogão, o longo avental e touca brancos, que eu
adquirira em antecipação, e pressentindo que tinha apanhado o seu peixe,
telefonou ao contabilista dizendo-lhe que podia dar entrada para o casaco de
zibelina que tanto queria.
Cada lição seria de
três horas, e ela levaria consigo os diversos ingredientes. Não houve tempo
para deixar crescer um bigode fino, gálico, antes de a nossa primeira lição ter
começado. Iria fazer pasta caseira, carne com molho béarnaise,
espargos, batatas lyonnaise, profiteroles, café e madalenas. Não me
consigo lembrar de muito mais a não ser dizer-lhe que eram tudo coisas que eu
já tinha visto em menús do Lutèce ou do Grenouille, ou sobre as quais lera em
Proust. Dirigi-lhe um sorriso de orelha a orelha e, pronunciando erradamente
"bon appetit", mergulhei. Bem, para irmos ao que interessa,
aguentei-me três aulas e estava de tal modo tolhido pela exaustão que não me
conseguia manter-me pé quando cada sessão terminava. Estava demasiado fraco
para comer as refeições; arfava e salivava e, por duas vezes, ela perguntou-me
se devia ligar para o 112 e se tinha família próxima.
Eu sempre fora um
tipo atlético, por essa altura jogava ténis com muita frequência e conseguia
facilmente aguentar-me num jogo de singles durante três ou
quatro horas sem quaisquer sinais de abrandamento. Mas a histeria e a tensão de
cozinhar davam cabo de mim. Ando a correr pela cozinha toda, a massa de pasta pendurada
nas costas da cadeira, a pingar como caramelo, enquanto o pato queima, eu a
suar por causa do calor do fogão, a minha mão entorpecida de tanto bater. Já
não consigo bater mais. O meu pulso começa a sentir os danos. Vai matar o meu
serviço. E porque estou eu a bater? Odeio natas batidas. Entretanto, se paro de
mexer, o molho béarnaisse não vai chegar a molho. Por alguma
razão, o créme caramel ficou impossível de distinguir de um
disco de hóquei, e ainda que nunca tivesse utilizado um extintor antes,
consegui de alguma forma cobrir o robalo com uma camada de espuma branca. Foi
nesse momento que, algures, Joël Robuchon e Damniel Boulus suspiraram de
alívio, pressentindo que as suas reputações estavam em segurança e não cairiam
nas mãos de um intruso de quatro olhos, cujo salmão fumado tinha implodido.
Infelizmente, continuaria a comer moo goo gai pan de baldes de
cartão e a reaquecer as pizzas entregues. As mulheres que
convidava para jantar seriam aconselhadas a parar no Popeyes e a trazer
consigo os seus próprios nutrientes. Poiderá ser uma transição menos
elegante para a cama, onde continuo a tentar ganhar aquela estrela
Michelin."
(Págs 241 a 244)
Woody Allem A Propósito de Nada
Colaboração de Luís
Miguel Mira
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