A paixão pelos
livros.
Carlos María
Domínguez, escritor argentino, tem um pequeno livro de 77 páginas a que deu o
título A Casa de Papel.
Lê-se assim num
repente, enquanto o diabo esfrega um olho, como dizia a minha avó.
Os livros mudam o
destino das pessoas.
Na Primavera de 1998,
Bluma Lennon comprou numa livraria do Soho um velho exemplar dos Poemas, de
Emily Dickinson, e, ao chegar ao segundo poema, na primeira esquina, foi
atropelada por um automóvel.
Também se poderá dizer
que é perigoso ler no meio do tráfego. É preferível o banco de um jardim.
Foi o carro que a
matou ou o poema?
Seria este o poema
que Bluma Lennon lia pouco antes de morrer?
Nas é ele o segundo poema dos 80 poemas de Emily Dickinson que Jorge de Sena traduziu:
Ter Medo? De Quem terei?
Não da Morte – quem é ela?
O Porteiro do meu Pai.
Igualmente me atropela.
Da Vida? Seria cómico
Temer coisa que me inclui
Em uma ou mais existências –
Conforme Deus estatui.
De ressuscitar? O Oriente
Tem medo de Madrugar
Com sua fonte subtil?
Mais me valera abdicar!
Larga os livros que eles são perigosos, dizia a avó de Carlos María Domínguez, que a páginas 59 nos diz:
«Ao longo dos anos vi livros destinados a equilibrar a perna coxa de
uma mesa; conheci-os convertidos em mesa de luz, dispostos em forma de torre e
com um pano por cima; muitos dicionários passaram a ferro e prensaram mais
objectos do que as vezes em que foram abertos, e não poucos livros guardam,
dissimulados nas estantes, cartas, dinheiro, segredos. As pessoas também mudam
o destino dos livros.
Parte-se uma jarra, estraga-se uma cafeteira, ou um televisor, muito
antes de um livro. Este não se desfaz a menos que o seu proprietário o queira
fazer, lhe arranque as páginas, lhe pegue fogo. Durante os anos da última
ditadura militar argentina, muita gente queimou os seus livros na retrete, nas
banheiras, enterrou colecções nos fundos das casas. Tinham-se tornado notoriamente
perigosos. Entre eles e a própria vida, as pessoas optavam, convertidas no seu próprio
verdugo.
Livros que tinham sido profundamente estudados, discutidos, livros que
tinham despertado paixões, compromissos irrecusáveis e afastado velhos amigos,
subiam ao céu convertidos em cinzas de carvão que se dissipavam no ar.
Eu não me atrevi. Enrolava revistas e meti-as no tubo da cortina da
casa de banho, escondia os livros mais temíveis no canto mais esconso dos
armários, na fileira posterior da biblioteca, consciente de que uma busca de
surpresa os descobriria.
Nesse tempo os livros acusaram muita gente. Destruíram muitas vidas.
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