terça-feira, 31 de dezembro de 2019

QUOTIDIANOS



O velho ano está quase a escapulir-se.
Foi bom? Foi mau? Foi assim-assim?
Foi o que tinha de ser: mais um!
A Sophia gostava de dizer que não sabia por que as pessoas celebravam a passagem do ano porque o ano estava sempre a passar.
O tempo do meu cachimbo estar apagado, o meu copo vazio e a chegar-me a lembrança do Helder Pinho, na passagem do ano de 1972, a telefonar para casa do meu pai e a gritar-me, o Helder morava, junto ao Tejo, na Rua da Manutenção: «eh pá! estou a ouvir a ronca dos barcos no Tejo a saudar o novo ano. Que maravilha!...que maravilha.» e mais outra lembrança, José Saramago, na noite estrelada cálida e tranquila de Lanzarote, no findar do ano de 1994: «Ninguém mais no mundo quer esta paz?»
Agora, segue-se o salto sem rede no vazio incógnito do novo ano.
Será, então, tempo de voltar a acender o cachimbo, voltar a encher o copo.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

POSTAIS SEM SELO


Eis o que sendo humano me é estranho: o suicídio.

Manuel S. Fonseca

ILUMINAÇÕES DE NATAL



Rossio.

DE SOLIDÕES


Aos poucos, vamo-nos despedindo do Natal, e relembrando uma das mais interessantes e pungentes canções de Natal , Fairytale Of New York dos Pogues com a Kirsty MacCall,     sabemos que os rapazes do coro da polícia de Nova Iorque cantavam Galway Bay, enquanto os sinos tocavam por toda a cidade, ao mesmo tempo que José Tolentino Mendonça, numa das suas excelentes crónicas no Expresso, abordando a solidão do Natal, revelava que lera uma carta  que o do escritor Jack London escreveu na manhã de natal, em 1898 quando tinha 20 anos. quando momentaneamente abandonou as errantes vagabundagens no seu barco pelas celebrações caseiras do Natal.

«Mas no fundo dos rituais familiares a que ele assiste (a abertura dos presentes diante da lareira acesa, o risos das crianças felizes, os ornamentos aconchegantes, os reflexos de uma existência segura…) descobre-se sempre mais como um estranho, e tudo aquilo que o deveria apaziguar fá-lo afinal descobrir vencido, como se o seu “bilhete de lotaria da vida tivesse o número errado”. Ele que passou a adolescência a saltitar entre centros de reeducação, que teve de lutar para aguentar-se nos estudos, que, para sobreviver, foi ardina, pescador furtivo, agente de seguros, caçador de focas, pugilista e garimpeiro, ele homem de têmpera rija sente-se naquela manhã vacilar, perdido dentro do grande puzzle que o Natal faz parte. A carta que Jack London escreve é uma espécie de relatório do seu desconforto. Mas creio que não é só isso. É também um documento sobre a grande solidão que o Natal escancara».

Linhas à frente, José Tolentino pergunta:

“Porque é que o Natal faz sofrer?”

Guardei sempre um velho recorte do velho «Diário de Lisboa» de 27 de Dezembro de 1976:

“António Manuel, de 14 anos, no dia de Natal, lançou-se de uma janela do Coliseu do Porto, tendo sido conduzido ao Hospital de Santo António sem fala e com várias fracturas.
O jovem, que é natural do lugar de Idanha, encontra-se numa fase de recuperação, tendo começado já a articular algumas palavras”
O jornalista fechava assim a notícia:
“De acordo com estatísticas mundiais, a quadra do Natal regista sempre uma subida de tentativas de suicídio, que alguns psicólogos identificam com uma maior acuidade em relação à solidão em dias que a maioria das pessoas se reúne para confraternizar.”


Aquela canção de Brel, deixa-me ser a sombra da tua sombra, a sombra da tua mão, a sombra do teu cão, mas não me deixes.

Ainda José Tolentino Mendonça:

«O Natal é atravessado por um dramatismo que nos abala, pois nos retira do feérico entretenimento das perguntas penúltimas e nos coloca perante as perguntas últimas.» 

Legenda: pintura de Van Gogh





domingo, 29 de dezembro de 2019

POSTAIS SEM SELO


Pode acontecer que no fim um homem se enamore pela sua própria vida.

Manuel Vilas citado por José Tolentino Mendonça no Expresso

QUOTIDIANOS


No que toca a comidas e bebidas vivo enrolado num conservadorismo bacoco.
Não brinquem comigo, não me venham com histórias de comidas de chefs e de comida que dizem aos quatro ventos que é saudável, que poderá ser mesmo saudável mas não me sabe a comida.
Desculpem.
No tocante a bolo-rei, falem-me só do velho bolo-rei não me venham com cantilenas de bolos-raínha, o que quer que seja.
Hoje tropecei na Avenida Guerra Junqueiro nesta ardósia que me convidava a um bolo-rei de castanha. Tirei o boneco, o outro eu que anda comigo, que é um chato de todo o tamanho, disse: «devias provar!...»
Não provei, segui em direcção à Praça de Londres que já não arde como naquela canção do Zeca, Rio largo de Profundis, uma neta para nascer, amor avenidas novas Praça de Londres a arder, do álbum Venham mais Cinco.
E não resisto, sobre isto do veganismo, dos vegetais, a copiar um delicioso texto do Manuel S. Fonseca na sua Página Negra:

«Olhos vegan espreitam-nos a cada esquina, tremendas máquinas de olfacto perseguem o aroma de um Partagas série D n.º 4, príncipe dos havanos. São olhos vigilantes: perseguem cada garfada, cada copo ou cálice. Trocaram a velha treta da exploração do homem pelo homem, pela marcação homem a homem. Há um exército de conspícuos e virtuosos especialistas prontos a proibir, prontos a culpar-nos pela boca, narinas, palavras, desejos e mesmo omissões. Estão prontos a pendurar o último hedonista, pela língua, nos pelourinhos da Imprensa e das redes sociais. Em ataque às gorduras, molhos, carnes, aos vinhos que o poeta persa cantou, ouçam essas vozes mansas, todas derretidas em inflexões angélicas, a culparem-nos, prometendo-nos estágios num purgatório de onde só se sai para o inferno. Impele-as o terrorismo de um bárbaro bem-estar.
A darmos ouvidos, melhor será dar ouvidos ao passado. Mesmo o naturalíssimo bom selvagem que talvez houvesse em Rousseau nos avisou: “Sempre notei que as pessoas falsas são sóbrias e a grande reserva à mesa anuncia muitas vezes virtudes fingidas e almas dúplices.” Uma variada mesa à sua frente e nela a estética natureza morta de vinhos, peixe e carne, outro filósofo, um deliciado Voltaire, põe-me estas palavras na boca: “Escolhi ser feliz, porque é bom para a saúde.»

OLHAR AS CAPAS


Ingmar Bergman: O Caminho Contra o Vento

Cristina Carvalho
Capa: Carlos César Vasconcelos
Relógio d’Água Editores, Lisboa, Outubro de 2019

Apresento-me:
Sou um fóssil antiquíssimo agarrado às paredes da Terra. Naufragado no miolo do mar. Só percebi a minha condição quando cheguei a esta praia, quando deixei de me preocupar com a vida que tenho e tive desde o dia do meu nascimento; só deixei de me preocupar com a vida e com a morte quando estes pés calcaram pela primeira vez o areão grosso e os meus olhos viram, se abriram e viram, e perceberam o peso das nuvens junto à sua água primitiva. Complicado.
Siu um fóssil antiquíssimo agarrado para sempre à rocha, destas que existem por aqui. Qualquer pessoa as pode ver e apreciara. Têm formas esquisitas a despontar das águas quase paradas desta praia onde a solidão é a perder de vista.
É isso que sou. Um fóssil de líquen.
E um fóssil, à primeira vista, não tem muito que se lhe diga.

sábado, 28 de dezembro de 2019

POSTAIS SEM SELO


Os pássaros sobrevoam as palavras e num click regressamos à infância onde tudo o que é importante se passou.

Autor desconhecido

VELHAS CANÇÕES


No Teatro Virgínia, em Torres Novas, no dia 21 de Dezembro, num espectáculo inicialmente anunciado como celebração de 50 anos de carreira, mas que o músico, veio a revelar ter siso o da sua despedida dos palcos, Pedro Barroso declarou que não abandona a intervenção crítica, nem a cidadania, enquanto o último neurónio o permitir.
Na contracapa do álbum Do Lado de Cá de Mim, o crítico Viriato Teles escrevia que o Pedro Barroso não era o melhor cantor do mundo, mas um cultivador de cantigas simples, fadigas sem conta, reflexo de um tempo e de um espaço bem definidos, fazendo o que se pode, como se pode.
Pedro Barroso gravou com Patxi Andión a canção «Rumos» que será incluída no CD «Novembro» a publicar brevemente.
Patxi Andión, no dia 18 de Dezembro, morreu num estúpido despiste de automóvel  na  província de Soria.
Tanto Pedro Barroso como Patxi Andión foram revelados ao público português, no ano de 1969, através do programa Zip-Zip.

Que lutas nos sobram, que ninhos
Que gaivotas esvoaçam pelo mar?
Que sustos e dores e caminho
Que causas inda há para lutar?

Versos da canção «Rumos».

E que viva quem canta!


sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

POSTAIS SEM SELO


Antigamente, o futuro era muito melhor.

ILUMINAÇÕES DE NATAL


Iluminações junto à Fonte Luminosa.

ESTÃO A DAR CABO DE TUDO, É O QUE É!!!


Sempre que me apanho no meio deste tempo de Natal, não esqueço o Imenso Adeus e lá estou a beber dois gins, um por ti, outro por mim, mais alguns para o caminho.

Mas Mário, o Natal está cada vez menos Natal, antes um amontoado de confusões, de gasto exagerado de dinheiro, que a grande maioria mão tem mas teima em gastar, tu que tanto te fartaste de dizer que gostavas do natal e a tal
Dietlinde, quando pediu o divórcio, acabou por ficar com os teus discos de Natal, muitas outras coisas, algumas irreversíveis. O que deu bem – deu, mesmo? - foi o apaixonares-te loucamente, pela advogada da tua  mulher. Outro grande amor das muitas tuas vidas que acabaram por contribuir para o fim da tua atormentada, mas bem gozada, vida.

Voltei a mandar uma carta ao venerando sacripanta de barbas e casacão vermelho, com posto de correio em Rovaniemi, lá para o Circulo Polar Árctico, plena Lapónia onde, dizem, os dias são azuis, que me colocasse, no cantinho esquerdo da chaminé, uma garrafa de verdadeira água tónica para que pudesse beber o perfeito gin-tonic. Não é pedir a lua, apenas uma garrafinha de tónica aquela que tem quinino e não hidrocloreto de quinino.

Mas nada!, queridíssimo Mário-Henrique Leiria, e o que é certo é que essa tal tónica com quinino, empresta ao gin um sabor único, um sabor de paraíso. De fazer inveja aos deuses.

De resto, há alguns anos o gin entrou na moda mas pelas piores razões. Já quase ninguém frequenta o clássico gin tónico, rodela de limão, gelo e tónica, antes se uma snobice, uma parvoeira sem nome, e metem-lhe flores, pimentas, uma parafernália de especiarias e até já me falaram em que há por aí gelatina de gin e eu fico espantado e arrepiado.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

POSTAIS SEM SELO


Morreu Anna Karina, actriz de Godard, protagonista de “Pedro, o Louco”, o mais belo dos filmes. Não há ninguém da minha geração, e das gerações que se seguiram, que não se tenha apaixonado por ela.

Manuel S. Fonseca na sua Página Negra

RELACIONADOS


Citação da página 3 de Uma Beleza Que Nos Pertence de José Tolentino Mendonça.

OLHAR AS CAPAS


Uma Beleza Que Nos Pertence

José Tolentino Mendonça
Capa: Rui Rodrigues
Quetzal Editores, Lisboa, Dezembro de 2019

«O sonho define a personagem», escreveu Shakespeare, e não há homem algum que não saiba que ele tem razão. A nossa esperança reflete-nos. Quem nos quiser conhecer profundamente, aceite ouvir-nos falar daquilo que esperamos.

NATAIS DO MUNDO


Mercado de Natal em Reinbek, Alemanha.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

ÀQUELE QUE É A CAUSA DE TUDO


Estou sentado aqui sozinho
   no dia de Natal
Eu sei, eu sei
    Não devia ser assim
Tenho ligado a algumas pessoas
mas estão todas fora
& tenho rezado àquele
que é a causa de tudo

Não sei como me afastei tanto
de todos os que amo
ou porque fechei tantas portas
em que estaria a pensar?

Leonard Cohen em  A Chama

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

LADAÍNHA DOS PRÓXIMOS NATAIS


Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito

David Mourão-Ferreira de Cancioneiro de Natal em Obra Poética

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

QUOTIDIANOS



Amiúde é costume ver pelas paredes da cidade apelos deixados por pessoas que viram desaparecer de casa os seus animais de estimação. A tristeza que sentimos saídas dessas mensagens.
Mas aqui olhamos o apelo de uma criança que perdeu o seu peluche, um peluche cinzento.
Quem ensina esta criança a cuidar desta dor?

CHAMA, SE NATAL


Se o Natal fosse a luz, uma flor a romper
A escuridão do tempo.
Um cerco (múltiplos) dedos negros
De cinza, a alma negra
Do fumo que se espalha, e alarga, e estreita as coisas,
Prendendo o horizonte, E não
há praia assim.

E tu falas de longe como um anjo
Dos caminhos que vão calar a morte.
Por eles, volto a Belém com a estrela, e não há berço,
Só um cão pedindo os nossos passos.
Vogo em Veneza a estagnação dos dias
Nas águas rosadas do poente
Desde Setembro, o mais cruel dos meses,
E sinto o mar do Sul, a sua ausência
Na terra do meu corpo, devastada.

A tempestade canta nas máquinas. Lavram
Os anúncios da paz.

Natal, a chama
Que vai trazer-me as horas
De respirar com todos na cidade
Em água iluminada, e esse chão branco, sabes,
Onde a neve é um sol.

Chamo o Natal e estou aqui à espera
De despertar mais logo
À flor do lago.

Maria Alzira Seixo em Natal… Natais

NATAIS DO MUNDO


Dezembro de 1925.
Fotografia de Natal dos patrões e trabalhadores da Washington, DC - Western Electric Co. Group.

Legenda: fotografia Shorpy

domingo, 22 de dezembro de 2019

OLHAR AS CAPAS


Teatro de Sabbath

Philip Roth
Tradução: Fernanda Pinto Rodrigues
Capa: Rui Garrido
Publicações Dom Quixote, Lisboa, Junho 2010

E foi assim que se passou. Cinco meses depois da morte de Drenka, não foi preciso mais nada para ele desaparecer, deixar Roseanna, encontrar finalmente forças para deixar o lar de ambos, na medida em que assim se lhe podia chamar, meter-se no carro e partir para Nova Iorque para ver qual era o aspeto de Linc Gelman.

INVERNO


Nove meses de inverno...

chamais a isso inverno    a esse lúdico
intenso cívico síncrono calor
à límpida presença de Cristo regressado
por um dia    aos presentes    ao fogão de sala

chamais a isso inverno   Augusto Gil
comovido por dentro das vidraças    inverno isso
a aguardente    as filhós    o baile de fim de ano

e então

à teimosa assunção    ao denso e destituto
desfavor   aos corpos nus à chuva    ao suão
à nortada devassando enxergas corações
à geada nos ossos nas orelhas    dos pezinhos
de criança aos traços miniaturais – mas lá fora
ao lume apagado    à cinza fria e remexida
à deserção do pão    à arca exausta    à talha descorrida

à roxa e trágica novena    que chamais?

A. M. Pires Cabral em Natal… Natais

sábado, 21 de dezembro de 2019

CANÇÕES DE NATAL


A fatia grossa da vida profissional cumpriu-a trabalhando numa companhia de navegação ali, privilégio dos privilégios, em pleno Cais do Sodré.

Pelo Natal, havia a azáfama de adquirir as prendas para oferecer aos clientes, um mundo exótico repleto de surpresas e surpresazinhas, um manancial de grandes histórias… também algumas chatices…

As empresas que prestavam serviços também obsequiavam directores e trabalhadores com lembranças natalícias.

As que lhe foram concedidas, eram garrafas de vinho reserva, ele que sempre apreciou colheitas do ano, também garrafas de whisky, que nunca constituíram gosto seu, e jamais uma garrafa de gin, que sim, calhava bem, estava mais de acordo com o perfil que formou e guarda ainda hoje.

Por um Natal, a capitalíssima MAERSK, companhia de navegação, também companhia de aluguer de contentores, ofereceu um CD com canções de Natal, nenhuma que estivesse em falta nas centenas e centenas de canções e músicas de Natal que há longos e longos anos esvoaçam pela casa.


O Natal será sempre o encanto e a ternura da impossibilidade. O sem sentido de alguns presentes, como naquele conto de O’ Henry: ela vendeu o lindo e comprido cabelo para lhe comprar uma corrente, de que ele tanto gostava; ele empenhara o relógio para lhe comprar as travessas, de que ela tanto gostava, para por no cabelo.

Se falou em histórias, lembra uma:

O Matos, angariador de carga em contentores de e para Roterdão, porto de trânsito para o resto do mundo, tinha como um dos clientes uma empresa em que Raquel era a responsável de import/export.

Boas conversas, não só sobre transportes mas outras e variadas.

Naquele Natal o Matos disse ao chefe que queria ser ele a levar a prenda de Natal à Raquel. A excelência está muitas vezes bem escondida entre o resto, requer um olhar que não se deixe distrair, ou que não o queira fazer. Marcaram jantarada e não passou muito tempo que não marcassem casório.

A vida não é bem como nos filmes americanos e a Raquel e o Matos, nem sequer chegaram ao contexto do seven-year itch.

O Natal, as prendas, constroem novelos que se não se desenrolam facilmente.

S. MATEUS, POR EXEMPLO


fica tranquila, direi o que quero
 daí neste natal, tranquiliza-te,
um saco de plástico purificado
cheio de mar, um copo de vinho,
 um cesto de lapas, um pouco
de tabaco, um postal ilustrado

neste natal, direi o que quero
 um chá quente em barro da lagoa
 um copo de vinho, dois copos
 de vinho de cheiro, umas favas
de molho, uma vaca a abanar o rabo
em pasto verde, o céu cinzento
38° de humidade relativa
que me façam vomitar cinco anos
de angústia

fica tranquila, neste natal
vais enviar-nos a ilha ou
S. Mateus, por exemplo

Ivone Chinita em Natal… Natais

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

HERODES


                 Para Miguel Viqueira

Gritam, mijam, cheiram a leite
azedo. Andam por aí
pelos colos das mães, montados
em burros poeirentos. E há um
que aqueles pretos dizem que há-de um dia
sentar no meu coxim o cu borrado.
Não sabem nada, uns e outros,
soltam vagidos que ninguém entende.
Dou-lhes na mona a uns
e os outros que passeiem.
Detesto gente parva.

Pedro Tamén em Natal… Natais

DO BAÚ DOS POSTAIS


O importante seria que não caminhássemos, sempre de mãos dadas, apenas nas épocas festivas.
Sabemos o quanto é difícil... se sabemos...

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

NATAL


A velha imagem. Um deus à minha espera,
nu e pobre.
Com firmeza artesanal da hera,
presa ao muro que cobre.

Mas uma pedra humaníssima destrói
a estrutura vegetal do pólipo gigante:
bichinho que rói, rói,
e segue adiante.

Entanto, permanece
o mistério velado.
E uma rosa amanhece
neste Maio adiado.

Daniel Flipe em Natal… Natais

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

OLHAR AS CAPAS


Expiação Perigosa

Mickey Spillane
Tradução: Fernanda Pinto Rodrigues
Capa: Lima de Freitas
Colecção Vampiro nº 254
Livros do Brasil, Lisboa s/d

A luz formava um padrão estranho, de riscas horizontais e tonalidade rosa, e produzia uma sensação de irrealidade, semelhante à que experimentamos quando, submersos, abrimos os olhos e olhamos para o céu, Ondulava e escorri, numa desfocagem constante e hipnótica, composta de fantasia e de sonho.

EM QUE SE FALA DO MENINO JESUS


Fiz a maldade e olhei Jesus.
Ele baixou os olhos e corou
e toda a gente julgou...
que quem fez a maldade foi Jesus .

E todos Lhe perdoaram ...

- Obrigado, Menino ! Mas agora
tira os olhos do bebé e vem brincar,
que eu prometo pra não Te ver corar,
já não fazer das minhas .
Anda jogar ao pé das flores, no chão,
comigo às cinco pedrinhas ...
anda jogar pra esqueceres
o preço do meu perdão ...

Sebastião da Gama em Natal… Natais

Legenda: pintura de Giorgione

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

ILUMINAÇÕES DE NATAL


A árvore de Natal do Café Império.
Por este tempo de Natal, o bife do Império é um clássico que cumprimos há uns bons anos.
Dizem pelas esquinas do bairro, que a casa passa por algumas dificuldades. É provável, mas o bife continua a manter o sabor de outros tempos.
Clássico da época, é também a visita, no último dia do ano, ao Beira-Gare para as bifanas a transbordar molho por todos os lados do pão.
Mas isso já são histórias para o Sammy.

ORATÓRIA DO NATAL CÓSMICO


Natividade. Um deus rompe e sai
sai da terra no romper da haste
seu presépio é uma flor de urânio
a vaca, trator branco
o burro, um guindaste

carpinteiro de astronaves seu pai

reis magos em nuvem supersónica

harpas eletrónicas

e o anjo que ao sol despia
o resplendor, as asas e o véu
às gentes descrentes anuncia:

- quando ele volta, livre, do cosmos
deuses morrem à míngua de céu

Luís Veiga Leitão em Natal… Natais

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

ILUMINAÇÕES DE NATAL



Avenida Almirante Reis.

NATAL


Os joelhos em terra,
as mãos erguidas, presas.
E Deus o céu descerra
aos murmúrios que rezas.

Brilham mais as estrelas.
Mais neve o céu derrama.
E, se por fora gelas,
por dentro és uma chama.

E beija a tua face
o luar que aparece,
como se Deus mandasse
um sim â tua prece
.

Alberto de Serpa em Natal… Natais

domingo, 15 de dezembro de 2019

ILUMINAÇÕES DE NATAL



Praça do Chile.

DITOS & REDITOS



Para acabar com os pobres acabem primeiro com os ricos.

Bica em chávena escaldada.

Belarte a agência de publicidade que está em toda a parte.

Ler menos, escrever menos, viver mais.

Melão, vinho tostão.

Há poucos prazeres como uma grande conversa.

É fino como um coral.

O que fascina é gostar tanto de sopa. Eterno mistério…

CANTOS AO DIVINO


Envolviam-se em mantas e rojavam
Os pesados bordões
Pelas ruelas do burgo desgastado
Por cismas e claustrais melancolias,
Sobressaltado
De evocações,
Oscilando no mar das ventanias,
Envolviam-se em mantas e cantavam...
Que gélidas, atrozes,
As noites desse Inverno! Entanto,
O bando
Dos cantadores, pelas ruelas divagando,
Prosseguia em seu canto!
Cálidas rescendências
Cresciam do florir das densas vozes,
Dessas vozes de tardas ressonâncias,
Extinguindo-se ao largo, nas distâncias,
Em hálitos de luz, em transcendentes,
Incertas refulgências
De auréolas de nascentes e poentes...
Era um coro que vinha, gemebundo,
Das almas, do profundo
De tudo o que há de humano,
Remontando-se a místicas Moradas,
Embebidas em sonho imorredoiro,
A cimos relumbrantes como brasas,
E, regressando, enfim, das extasiadas
Romagens do seu voo soberano,
Em um desmaio de oiro,
- Plenas de glória, as asas! –
Cavadores, ganhões, heróis da gleba,
Dos páramos de Beja,
Lá onde, sempre a errar, minha alma adeja,
Emergiam, fantásticos, da treva,
Erguendo cantos, como a erguer troféus...
Eram esses que enlaçam
A Terra aos Céus,
Nos coros que de assombros nos trespassam,
Longe de si - presentes só em Deus!
Cantavam ao Divino!
Cantavam, arroubados de Harmonia,
Àquela Nova Estrela que nascia;
Ao Deus-Menino,
Que, embalado nas vozes, lhes sorria!

Mário Beirão em Natal… Natais

Legenda: fotografia de Portal de Portugal

sábado, 14 de dezembro de 2019

NATAL


Nasce um Deus. Outros morrem. A verdade
Nem veio nem se foi: o Erro mudou.
Temos agora uma outra Eternidade,
E era sempre melhor o que passou.

Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.
Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.
Um novo Deus é só uma palavra.
Não procures nem creias: tudo é oculto.

Fernando Pessoa em Natal… Natais

Legenda. Pintura de Claude Monet

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

POSTAIS SEM SELO


Os que não querem que se fume no vagão não compreendem que, se a locomotiva não fumasse, o comboio não se movia.

Ramón Gómez de la Serna em Greguerias

ILUMINAÇÕES DE NATAL


Largo das Olaias.
Os votos de Boas Festas da Freguesia do Areeiro.

QUOTIDIANOS


Junto à paragem do autocarro 730, na Rua Forno do Tijolo, alguém colou este azulejo na parede.
Uma angústia e um desespero sem fim, levaram-no a escrever esta mensagem.
Comprou o azulejo, desenhou a letra.
Não revela o nome do senhorio, não assina o texto, apenas um grito que alguém escute, ele que ficou sem casa e apenas sabe isso.
As palavras falam por si.
Senhorios, empresários, banqueiros, a nata da nossa sociedade que, durante anos faziam jantares sumptuosos no Beato para tratar das suas negociatas, arrotando nos finalmente que este país não ia para a frente por causa da corja dos trabalhadores.

OLHAR AS CAPAS


Luz de Agosto

William Faulkner
Tradução: Armando Ferreira
Capa: Infante do Carmo
Colecção Dois Mundos nº 58
Livros do Brasil Lisboa, s/d

Eis do que Byron Bunch se recorda: Foi há três anos numa sexta-feira de manhã. Os homens, na secção de aplainamento, levantaram os olhos e viram um desconhecido, de pé, que os olhava. Não sabiam há quanto tempo ali estava. Tinha o aspecto de um vagabundo, e no entanto, não era exactamente como um vagabundo. Tinha os sapatos cheios de poeira e as calças também estavam sujas. Mas eram de uma sarja decente e bem vincadas; a camisa estava porca, embora fosse uma camisa branca, e trazia gravata e chapéu de palha quase novo, que usava de banda, num jeito arrogante, sobre o rosto impassível. Não tinha o ar de vagabundo profissional com os seus andrajos profissionais, mas parecia um ser sem raízes, como se não pertencesse a nenhuma cidade, como se não houvesse uma rua, uma parede, um bocado de terra que lhe fosse familiar. Apenas levava consigo a sua sabedoria, como se transportasse um estandarte, com seu quê de bravata, de solidão e até de altivez. «Era como se estivesse passando um mau bocado que esperava ver acabado depressa, sem se importar saber de que nunca se sairia dele», disseram os homens mais tarde. Era novo. E Byron observava-o: de pé, um cigarro ao canto da boca, cabeça um pouco inclinada por causa do fumo, olhando com uma expressão de sombria calma desdenhosa os homens de fatos-macaco manchados de suor. Ao fim de algum tempo, cuspiu a beata, sem a agarrar com a mão, e, dando meia volta, dirigiu-se para o escritório da serraria. Os homens dos fatos-macaco desbotados e sujos olhavam-no pelas costas com uma expressão indignada e perpelexa. «Devíamos passa-lo à plaina – diz o contra-mestre – talvez lhe tirássemos o aspecto que tem».

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

POSTAIS SEM SELO


O amor não é fácil em nenhuma idade e dói tanto ceder-lhe como fugir-lhe. Mas o amor é o que há, e eu estou velho para morrer sozinho.

Nuno Camarneiro em Debaixo de Algum Céu

Legenda: fotografia de Jane Fleming

ILUMINAÇÕES DE NATAL


A árvore de Natal do Centro Comercial Colombo.

OLHAR AS CAPAS


A capa da revista da Junta de Freguesia da Penha de França nº 44/Dezembro de 2019.

NOITE DE NATAL


Como esse mar onde mal chega o rio,
Como esse poço onde mal sopra o vento,
Aqui me tens, negando o lume e o frio,
E cego e surdo ao próprio pensamento.

Como esse mar onde mal chega o rio,
Como esse poço onde mal sopra o vento.

Não haveria quem sonhe à minha beira
E, ao menos, longe em longe me sorria?

Às vezes cuido que na terra inteira,
Já ninguém sente regressar o dia.

Não haverá quem sonhe à minha beira
E, ao menos, longe em longe me sorria?

Areia. Pó. Um charco e uma parede,
Tudo confundo: a sombra, o medo, a luz.

Nem lágrimas. Porquê? Morro de sede.
É esta a noite,
– E vai nascer Jesus.

Pedro Homem de Melo em Natal… Natais

Legenda: pintura de Charles Le Brun

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

OLHAR AS CAPAS


Mundo de Paixões

Nicholas Blake
Tradução: Daniel Gonçalves
Capa: Lima de Freitas
Colecção Vampiro nº 198

Nigel Strangeways entrou em Adelphi e depressa chegou ao elegante recesso de Angel Street, com o tráfego de Strand a zumbir docemente por detrás dele como uma azenha. Era uma bela rua para residir, pensou ele – num apartamento do último andar de um desses prédios altos e elegantemente uniformes: acima da barafunda mas não completamente isolado dela. À medida que a meia idade progride e as ilusões de juventude recuam, o único meio que resta para uma pessoa ter a sensação de que começa de novo, de que volta a nascer, é mudar de casa. Mas, por mais instável que fosse a sua natureza, duas mudanças em doze meses seria levar demasiado longe a mobilidade de uma pessoa – é preciso cuidado para não se adquirir a habituação dessa droga estimulante.