segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

O DIA SEGUINTE

Alexandre O’ Neill, em tempos de ditadura, poetizava que o medo tem tendência natural para ter tudo e pensava no que o medo ia ter e tinha medo, que é justamente o que o medo queria e assim perfilados de medo, cada um por seu caminho, chegaríamos a ratos, sim, a ratos.

Lembra-se que a avó muitas vezes dizia que quem tem cu tem medo, mas que quem tem medo devia comprar um cão.

Pedro Tadeu, hoje, no Diário de Notícias escreveu:

«O medo de um governo de direita, que as inúmeras sondagens anteriores às eleições tornaram, erradamente, uma possibilidade viável na cabeça de muitos eleitores, levaram a uma concentração de votos da população de esquerda no Partido Socialista, com sacrifício do Bloco e da CDU, e originaram uma grande vitória pessoal de António Costa.»

Henrique Bento Fialho no seu blogue Antologia do Esquecimento:

«O discurso do voto útil, o medo de ver o tiranete Rui Rio no poder, coligado com uma horda de tontos, hipócritas e corruptos, pesou. O medo pesa sempre muito. Daqui a quatro anos, o mais provável e ninguém ter votado PS. Aconteceu o mesmo com Sócrates. As pessoas têm memória, mas é curta e só serve para o que lhes serve. A paz, que o pão, a saúde, a habitação, a gente cá se vai amanhando. Agora é olhar em frente e continuar a lutar por quem trabalha, trabalhando com quem luta. Viva a democracia, viva a liberdade, viva Abril.»

Se isto fosse a sério, se as empresas de sondagens não estivessem ao serviço não se sabe bem de que mandaretes, era tempo de  colocar toda aquela gente no desemprego a que se juntaria os palavrosos-parvónios- -comentaristas de serviço pelas televisões.

Sim, houve o medo, mas é bom que se diga que isso, pouco ou nada, explica o tsunami eleitoral que ontem aconteceu.

domingo, 30 de janeiro de 2022

NÃO UM DOMINGO COMO OUTRO QUALQUER


Há dias, durante os estúpidos silêncios em que o Cais mergulhou, o viajante Seve perguntou que livros eu tinha lido no ano que findou.

Li muito, mas poucos livros novos.

Tornei-me, como dizem os ingleses, que nem sequer têm literatura, nem cinema, tudo o que têm lhes chega da Irlanda, um «slow reader» e, acima de tudo, ando em releituras, principalmente de José Saramago que,  ao fim de tanta e tantas leituras, ainda descubro coisas novas e de espanto.

Mas de um livro quero falar porque é uma pequena bíblia desenhada por um escritor que escreve muitíssimo bem, é uma excelente pessoa e nunca troquei sequer uma palavra com ele.

 O livro chama-se «De Maneira Que É Claro…» e o autor é Mário de Carvalho.

Foi funcionário do Partido Comunista, partido de que há muito deixou de ser militante, mas numa entrevista a Ana Sá Lopes, Público de 19 de Novembro de 2021, afirmou que no Partido sempre tem votado:

Ele o disse:

«Se o PC desaparecer, se enfraquecer mais, todos perdemos com isso. Faz parte do nosso quadro democrático.»

 O livro são pequenas memórias de uma vida muito rica, «apontamentos muito curtos sobre alguns aspectos – não todos – do meu percurso de vida que me pareceu interessante partilhar com o leitor.»

 Comprei o livro em Novembro, li-o de um folego só, e depois passei a pegar nele, não direi todos os dias, mas amiúde dou com ele nas minhas mãos.

 É um livro de encantamento e, como já disse, muito bem escrito, forte apanágio do autor.

 Mentiria se dissesse que não sei das razões por que falo do livro neste domingo. E sei-o tão bem, que não hesito em copiar a historinha mariocarvalhiana que se encontra na página 192:

 «A separação do PCP foi-me longa e dolorosa. Era (com outros) um património de família. Anos de reminiscências afectivas. Memórias de militância, por vezes difícil e dura. Ilusões, desilusões, vitórias e frustrações. Preços pagos!

O sentido da incongruência, após a revolução, foi-se firmando a pouco e pouco. Conheci pessoalmente, quase todos os meus heróis míticos. Senti, em dada altura, que já me ouvia a dizer coisas em que não acreditava.

Tive duas conversas, espaçadas, com Álvaro Cunhal. Iniciativa dele. Não que eu, na casa, fosse importante. Mas ele queria conhecer tudo e todos. Chamou-me. Um encanto de pessoa. Após a segunda conversa foi-me enviado um recado por terceiro: «Negando o papel de vanguarda da classe operária, faltavam-me condições para continuar na direcção do ”sector intelectual”.» Pode ser que as palavras não tenham sido exactamente estas, mas o significado foi.

E ainda bem, porque a relação já se ia deslassando, devagar. Os factos minavam quotidianamente esta minha aposta. A dada altura tornou-se-me evidente que não apenas certo tipo de análise, mas também um estilo de funcionamento e, até, de linguagem, me diziam cada vez menos. Caiu o tal muro, soçobrou a União Soviética, um antigo futuro de radiosa esperança transformou-se em ruim passado.

Houve movimentos, encontros, infindas discussões, agitação periférica, papéis, cismas. Reavaliar, transformar, adequar… O que se sabe.

Nesse confronto, muitas pessoas que me são estimáveis, por esta ou aquela razão, ficaram do outro lado. Não deixo por isso de as prezar e admirar.

Posso ironizar, brincar, desdizer. Mas não me está no feitio hostilizar o Partido.»

Legenda: desenho de Rogério Ribeiro

AO SER-ME SOLICITADO UM POEMA DE GUERRA


Em tempos como estes parece-me melhor que

A boca de um poeta tudo cale, pois na verdade

Não nos cabe o dom de corrigir um estadista;

Já se intromete bastante quem logra agradar

A uma rapariga na indolência da sua juventude

Ou a um velho numa noite de inverno.

W.B. Yeats em Poemas Escolhidos, tradução de Frederico Pedreira, Relógio d’Água

sábado, 29 de janeiro de 2022

POSTAIS SEM SELO


 Viver é tomar partido.

José Rodrigues Miguéis em  Nikalai! Nikalai!

Legenda: desenho de José Rodrigues Miguéis

QUOTIDIANOS


Salazar tomou conta do país em 1933.

Vivia-se miseravelmente.

Em 1935 a CARRIS, por ideia de Teotónio Lima, subsecretário de Estado das Corporações e Previdência Social, cria o «bilhete operário».


Nas carreiras entre Belém-Almirante Reis, Belém-Caminhos de Ferro, Ajuda-Rossio, Rossio-Poço do Bispo e Praça do Comércio-Alto de São João., devidamente identificadas como Carros operários.

O bilhete operário tinha de ser comprado entre as 5 as 8 horas da manhã e o retorno verificava-se entre as 17 e as 20,00 horas. Dependendo das zonas a utilizar, começaram por custar 30 e 50 centavos.

Os bilhetes operários acabaram no início dos anos 70.

SOZINHO DIANTE DAS ESTRELAS


 Em miúdo sonhava com barcos, comboios, aviões, moinhos de vento.

Duvida que coisas destas façam, hoje em dia, sonhar um qualquer miúdo.

Também se fala de comboios, das estações ferroviárias mas, acima de tudo, é uma história de amor.

Maravilhosas73 páginas que se leem num só folego.

«A condessa Walewska, o criado e Fallmerayer levaram-no para o seu quarto no primeiro andar, onde tinham preparado uma cama para ele.

«Boa noite!», disse Fallmerayer. Chegou ainda a ver como a sua amante endireitava os travesseiros e se sentava na borda da cama.

Em seguida, Fallmerayer partiu; nunca mais se ouviu falar dele.»


Legenda: contra capa de O Chefe de Estação Fallmerayer, de Joseph Roth

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

POSTAIS SEM SELO


«Neste inverno há homens que enlouquecem e outros que se salvam. Todos caem, alguns saberão levantar-se.»

― Nuno Camarneiro em Debaixo de Algum Céu

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


Dito já que começaram as iniciativas que visam registar o centenário do nascimento de José Saramago, acrescenta-se que irei pegando num qualquer livro de José Saramago e copiarei dele uma frase, um parágrafo, aquilo que constitui os milhares de sublinhados que, ao longo dos muitos anos de leituras, invadiram os livros de José Saramago que habitam a  Biblioteca da Casa. 

Eusébio nasceu em Lourenço Marques no dia 25 de Janeiro de 1942.

José Saramago nunca foi muito de futebóis. Por influência do pai terá sido sócio do Benfica. No livro José Saramago: A Consistência dos Sonhos, na página, 25 podemos vê-lo, aos 11 anos, com o emblema do clube na lapela do casaco.

Mas no dia 25 de Abril de 1995, escreve no 3º volume dos seus Cadernos de Lanzarote:

«O motorista do táxi que me leva a Grande central Station pergunta-me se sou espanhol: algo lhe deveria ter soado desse género aos ouvidos. Do género ibérico, digo, uma vez que não admitiu a possibilidade de eu ser argentino ou mexicano. Respondi-lhe como devia, uma vez que à pátria não há que renega-la nunca. Então vejo abrir-se no espelho retrovisor um sorriso feliz, cintilar um olhar deslumbrado, e ouço, deformada por uma pronúncia atroz, muito pior do que tinha sido a minha, a mágica palavra: «Eusébio.» Surpreendido, julgando ter ouvido mal, pedi-lhe que repetisse, e ele repetiu: «Eusébio, Eusébio…» Tantos anos passados sobre os seus tempos de glória, o nosso Eusébio de Moçambique ainda tem quem o recorde no Novo Mundo. E, como se isto fosse pouco, um motorista de táxi, de quem não cheguei a apurar as origens, sabia que ele era português…»

O ARREPIO DA ENCRUZILHADA


 «O que me enrugava a disposição era tão intraduzível como isto: a imagem do meu estúdio em Paris a dizer coisas indigestas: «Meu filho, meu filho, porque me abandonaste?» O estúdio vazio, com as marcas todas de espaço onde um homem vive só.

Tentei concentrar-me no meu aqui-agora, que era aquela estação terminus. Então ocorreu-me (inesperadamente) que uma estação terminus é sobretudo como um sino: pode repicar de casamento ou dobrar a finados.

Senti – concreta – a possibilidade de retomar viagem na direcção de todas as outras cidades do planeta. Seria isso o que me arrepanhava? O arrepio da encruzilhada quando um tipo se calha está perdido? Uns anos antes tinha sentidod coisa mesmo assim, em Istambul. Mas com direcção concreta, a dizer-me «vem daí»: por um triz de triz estivera para tomar o transiberiano Istambul-Pequim. Ao lá vai disto, a ver.»

Nuno Bragança em Square Tolstoi

Legenda: Estação ferroviária de Porta Nuova, Turim.

Nuno Bragança começa assim Square Tolstoi:  «O pressentimento de estar tropeçando no destino. Sabem como é?» 

OLHAR AS CAPAS

 

O Chefe de Estação Fallmerayer

Joseph Roth

Tradução e introdução cronológica: Álvaro Gonçalves

Colecção Gato Maltês nº 85

Assírio & Alvim, Lisboa, Março de 2019

Chovia e o ar estava tépido. Nunca o chefe de estação Fallmerayer assistira à chegada tão prematura da primavera. Os comboios-expresso que iam em direcção ao Sul para Merano, para Trieste, para Itália nunca paravam na sua minúscula estação. Os comboios-expresso passavam a uma velocidade vertiginosa por Fallmerayer, que, duas vezes por dia, aparecia na plataforma a cumprimenta-los com o seu boné vermelho reluzente; esses comboios degradavam o chefe de estação quase à categoria de guarda-linha. Os rostos dos passageiros nas grandes janelas desvaneciam-se numa massa branca-acinzentada. Raramente o chefe de estação Fallmerayer conseguia ver o rosto dum passageiro que viajava em direcção ao Sul. E para o chefe de estação o «Sul» era o mar, o mar feito do sol, da liberdade e da felicidade.

TRISTEZA

Perto de onde se ouvem as ondas azuis do céu

Acho que perdi
Qualquer coisa de muito valor.

Numa estação nitidamente no passado
Em frente do funcionário dos perdidos e achados
Senti-me ainda mais triste.

Tanikawa Shuntaro

Tradução de José Alberto de Oliveira

Poema tirado da antologia A Rosa do Mundo

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

REGRESSO

De repente, ficou sem saber como sair do buraco em que se meteu.

Mark Twain costumava dizer que, quando em dúvida, se deve dizer a verdade.

No seu belo livro, «Vidas Secas», Graciliano Ramos deixou escrito:

Lembrou-se de seu Tomás da bolandeira. Dos homens do sertão o mais arrasado era seu Tomás da bolandeira. Porquê? Só se era porque lia de mais. Êle, Fabiano, muitas vezes dissera: - “Seu Tomás, vossemecê não regula. Para quê tanto papel? Quando a desgraça chegar, seu Tomás se estrepa, igualzinho aos outros”.

Eugénio de Andrade num dos seus textos poéticos:

«Se há na terra um reino que nos seja familiar e ao mesmo tempo estranho, fechado nos seus limites e simultaneamente sem fronteiras, esse reino é o da infância. A esse país inocente, donde se é expulso sempre demasiado cedo, apenas se regressa em momentos privilegiados.»

Mas como é possível, depois de milhões de palavras lidas, vivências várias, ter de ir buscar uma conversa do avô paterno, tida para aí nos finais dos anos 50, em que lhe dizia que odiava os meses de Janeiro e Fevereiro?

«Acabam-se as festas do Natal e ficamos nas sombras de dois meses de tristeza-quase-trevas, restando-nos aguardar os primeiros salpicos da Primavera que há-de chegar!».

 De uma maneira ou de outra, sempre conseguiu ultrapassar este sentimento depressivo, mas os tempos desta quarentena sem fim à vista, já deixara mossas nos anos anteriores, mas agora deixou-se afundar.

Decidiu que durante estes meses, velho sonho, não pisaria uma pedra do Cais.

Tudo muito bonito se não tivesse esquecido que isso mereceria uma palavra de aviso aos viajantes que por aqui passam.

Ao terceiro dia de silêncio, olhou o estupor do disparate em que se enredou e deixou de saber onde as pedras iam cair, tal como canta o Tom Waits.

É por isso que este, é um texto de vergonha: a sua vergonha.

Um texto que não sabe escrever –alguma vez soube escrever o que quer que seja? - porque toda esta situação está envolta num manto desastroso de disparates sem fim.

Sabe que nada, mas mesmo nada, abonará estes parvos dias de silêncio.

Pedir desculpas não chega.

Pois é, seu Sammy, para quê tanto papel se você se estrepa igualzinho aos outros?

Então, presenciou a verdade de toda a lamentável situação, e estremeceu.

Até amanhã!