Há dias, durante os estúpidos silêncios em que o Cais mergulhou, o viajante Seve perguntou que livros eu tinha lido no ano que findou.
Li muito, mas poucos livros novos.
Tornei-me,
como dizem os ingleses, que nem sequer têm literatura, nem cinema, tudo o que
têm lhes chega da Irlanda, um «slow reader» e, acima de tudo, ando em
releituras, principalmente de José Saramago que, ao fim de tanta e tantas leituras, ainda descubro coisas novas e de
espanto.
Mas de um livro quero falar porque é uma pequena bíblia desenhada por um escritor que escreve muitíssimo bem, é uma excelente pessoa e nunca troquei sequer uma palavra com ele.
Foi funcionário do Partido Comunista, partido de que há muito deixou de ser militante, mas numa entrevista a Ana Sá Lopes, Público de 19 de Novembro de 2021, afirmou que no Partido sempre tem votado:
Ele o disse:
«Se o PC desaparecer,
se enfraquecer mais, todos perdemos com isso. Faz parte do nosso quadro democrático.»
Mentiria se dissesse que não sei das razões por que falo do livro neste domingo. E sei-o tão bem, que não hesito em copiar a historinha mariocarvalhiana que se encontra na página 192:
O sentido da
incongruência, após a revolução, foi-se firmando a pouco e pouco. Conheci
pessoalmente, quase todos os meus heróis míticos. Senti, em dada altura, que já
me ouvia a dizer coisas em que não acreditava.
Tive duas conversas,
espaçadas, com Álvaro Cunhal. Iniciativa dele. Não que eu, na casa, fosse
importante. Mas ele queria conhecer tudo e todos. Chamou-me. Um encanto de
pessoa. Após a segunda conversa foi-me enviado um recado por terceiro: «Negando
o papel de vanguarda da classe operária, faltavam-me condições para continuar
na direcção do ”sector intelectual”.» Pode ser que as palavras não tenham sido
exactamente estas, mas o significado foi.
E ainda bem, porque a
relação já se ia deslassando, devagar. Os factos minavam quotidianamente esta
minha aposta. A dada altura tornou-se-me evidente que não apenas certo tipo de
análise, mas também um estilo de funcionamento e, até, de linguagem, me diziam
cada vez menos. Caiu o tal muro, soçobrou a União Soviética, um antigo futuro
de radiosa esperança transformou-se em ruim passado.
Houve movimentos,
encontros, infindas discussões, agitação periférica, papéis, cismas. Reavaliar,
transformar, adequar… O que se sabe.
Nesse confronto, muitas
pessoas que me são estimáveis, por esta ou aquela razão, ficaram do outro lado.
Não deixo por isso de as prezar e admirar.
Posso ironizar, brincar, desdizer. Mas não me está no feitio hostilizar o Partido.»
Legenda: desenho de Rogério Ribeiro
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