domingo, 30 de janeiro de 2022

NÃO UM DOMINGO COMO OUTRO QUALQUER


Há dias, durante os estúpidos silêncios em que o Cais mergulhou, o viajante Seve perguntou que livros eu tinha lido no ano que findou.

Li muito, mas poucos livros novos.

Tornei-me, como dizem os ingleses, que nem sequer têm literatura, nem cinema, tudo o que têm lhes chega da Irlanda, um «slow reader» e, acima de tudo, ando em releituras, principalmente de José Saramago que,  ao fim de tanta e tantas leituras, ainda descubro coisas novas e de espanto.

Mas de um livro quero falar porque é uma pequena bíblia desenhada por um escritor que escreve muitíssimo bem, é uma excelente pessoa e nunca troquei sequer uma palavra com ele.

 O livro chama-se «De Maneira Que É Claro…» e o autor é Mário de Carvalho.

Foi funcionário do Partido Comunista, partido de que há muito deixou de ser militante, mas numa entrevista a Ana Sá Lopes, Público de 19 de Novembro de 2021, afirmou que no Partido sempre tem votado:

Ele o disse:

«Se o PC desaparecer, se enfraquecer mais, todos perdemos com isso. Faz parte do nosso quadro democrático.»

 O livro são pequenas memórias de uma vida muito rica, «apontamentos muito curtos sobre alguns aspectos – não todos – do meu percurso de vida que me pareceu interessante partilhar com o leitor.»

 Comprei o livro em Novembro, li-o de um folego só, e depois passei a pegar nele, não direi todos os dias, mas amiúde dou com ele nas minhas mãos.

 É um livro de encantamento e, como já disse, muito bem escrito, forte apanágio do autor.

 Mentiria se dissesse que não sei das razões por que falo do livro neste domingo. E sei-o tão bem, que não hesito em copiar a historinha mariocarvalhiana que se encontra na página 192:

 «A separação do PCP foi-me longa e dolorosa. Era (com outros) um património de família. Anos de reminiscências afectivas. Memórias de militância, por vezes difícil e dura. Ilusões, desilusões, vitórias e frustrações. Preços pagos!

O sentido da incongruência, após a revolução, foi-se firmando a pouco e pouco. Conheci pessoalmente, quase todos os meus heróis míticos. Senti, em dada altura, que já me ouvia a dizer coisas em que não acreditava.

Tive duas conversas, espaçadas, com Álvaro Cunhal. Iniciativa dele. Não que eu, na casa, fosse importante. Mas ele queria conhecer tudo e todos. Chamou-me. Um encanto de pessoa. Após a segunda conversa foi-me enviado um recado por terceiro: «Negando o papel de vanguarda da classe operária, faltavam-me condições para continuar na direcção do ”sector intelectual”.» Pode ser que as palavras não tenham sido exactamente estas, mas o significado foi.

E ainda bem, porque a relação já se ia deslassando, devagar. Os factos minavam quotidianamente esta minha aposta. A dada altura tornou-se-me evidente que não apenas certo tipo de análise, mas também um estilo de funcionamento e, até, de linguagem, me diziam cada vez menos. Caiu o tal muro, soçobrou a União Soviética, um antigo futuro de radiosa esperança transformou-se em ruim passado.

Houve movimentos, encontros, infindas discussões, agitação periférica, papéis, cismas. Reavaliar, transformar, adequar… O que se sabe.

Nesse confronto, muitas pessoas que me são estimáveis, por esta ou aquela razão, ficaram do outro lado. Não deixo por isso de as prezar e admirar.

Posso ironizar, brincar, desdizer. Mas não me está no feitio hostilizar o Partido.»

Legenda: desenho de Rogério Ribeiro

Sem comentários: