De
Maneira Que É Claro…
Mário
de Carvalho
Porto
Editora, Lisboa, Setembro de 2021
Os
nossos espaços. Também somos formados por eles. Por aí vagueia a memória que só
muito raramente (pode acontecer…) dispensa o cenário. Às vezes engana-nos. É o
seu papel.
Eu
tive duas avós: a da vila e a do monte. Da vila guardo o vermelho lume afável
da lareira, cadeiras de palhinha, família em volta, gatos, mãos ásperas
acariciando-me o rosto, vozes a sumirem-se nas lonjuras do sono. Mas também o
quarto escuro, uma despensa negra, esconsa, onde se amassava o pão. Pairavam no
ar espesso cheiros adocicados. Azeite. Parecia não haver luz que ali fosse
consentida. Como se o negrume irradiasse cá para fora. Inquietava-me.
No
monte, eram os horizontes às escâncaras, o sol aberto através de searas, carreteiras, areias,
sobro. A rua do monte, o forno do pão, o poço, a grande amoreira. Nunca estava
tudo visto e percorrido.
Mas
havia também a percepção, mal suspeitada, de que algo adejava sobre aquela
família, um mal-estar qualquer que não me transmitiriam, mas que eu adivinhava,
por minúsculos sinais. As crianças sofrem muito mais do que se pensa…
O
escritório do meu pai, na Calçada do Garcia, apertada e íngreme. Mobílias de
fancaria, um enorme relógio redondo, dísticos, em fundo pardo, a apelar à
seriedade dos negócios: «Não fazem ninho os milhafres na caverna dos leões.»
Sem citar o autor.
As várias casas onde fomos vivendo, desde a Ajuda ao Bairro dos Actores, passando pelos Anjos, Campolide, Campo de Ourique, Picheleira, deixaram cada qual, a sua marca: um troço de rua, uma prateleira de despensa, uma certa janela em aberto, o rendilhado dum tecto, a curva dum corredor, umas sonoras escadas de serviço, um recanto de marquise, um pátio com claraboias… Disso sou também feito, e com isso escrevo, mesmo sem que os lugares o saibam. Eu também os contenho.
Sem comentários:
Enviar um comentário