quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

VIAGENS POR ABRIL


 

                 Este não é o dia seguinte do dia que foi ontem.

                 João Bénard da Costa

 

Será um desfilar de histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias, figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação do dia, mês, ano em que aconteceram.

 

POLYDOR 10.025 CR - 1970

Retalhos De Uma Noite - Antes De Ti - Erguer A Voz E Cantar - Sei De Uma Menina

Erguer a voz e cantar é uma canção que vem ao encontro daquilo que um dia o meu amigo Luís Pinheiro de Almeida, adiantou quando disse preferir a canção de intervenção pré-25 de Abril do que a que se lhe seguiu.

Daqui também resvala essa frase batida, que tem tanto de terrível como de ambígua: então éramos felizes só que não o sabíamos.

É uma canção-chave dos “filhos da madrugada”. Não havia encontro, reunião, passeio, o que quer que se fizesse naqueles tempos, que não aparecesse o “canta amigo canta, vem cantar a nossa canção, tu sozinho não és nada, juntos temos o mundo na mão”, fazendo vincar a ideia de que nenhum homem é uma ilha isolada, que ninguém ganha a Volta à França sozinho ou, como se pode ler no bonito poema, “Tecendo a Manha” , de João Cabral de Melo Neto: “um galo sozinho não tece uma manhã, ele precisará sempre de outros galos”.

O jornalista Mário Contumélias, reportando para a revista “Cinéfilo” de 6 de Abril de 1974 o I Encontro da Canção Portuguesa, que se realizara a 30 de Março, escrevia: “Fosse lá porque fosse, naquela noite, no Coliseu, senti-me . E isso não nos acontece todos os dias. Isso é importante!”.

“Estavam lá, não sei se já vos disse, 5 mil pessoas. Eram 10 horas, passavam 30 minutos da hora prevista para o começo do espectáculo. Cantava-se em coro “Canta, Canta Amigo Canta… Era assim que os 5 mil pediam que o espectáculo, também ele começasse".

Aquela noite, de finais de Março de 1974, fazia já antever o que, uma vintena de dias depois, veio a acontecer: a última página, o consumar-se o grito do poeta à rapariga para que ela não esquecesse que um dia iriam soltar a Primavera no País de Abril, o microfone que falaria numa noite às 4 e tal…

Este disco foi produzido por João Martins, uma bela voz, um enorme homem da rádio, um autêntico animal de rádio, para que se perceba bem aquilo que quero dizer. Pena, muita pena mesmo, que, para cima de um milhão de cigarros que fumou, mas que lhe deram muito prazer, o tenham levado tão cedo do nosso convívio.

(António Macedo também nos deixou em 1999, com 53 anos - nota do editor)

Todas as músicas são de António Macedo, também os poemas, excepto “Retalhos de Uma Noite” que é de Maurício Cunha.

António Macedo, com 53 anos,  deixou-nos em  14 de Junho de1999.

 

Erguer a voz e cantar
à força de quem é novo
viver sempre a esperar
fraqueza de quem é povo

Viver em casa de tábuas
à espera dum novo dia
enquanto a terra engole
a tua antiga alegria

O teu corpo é um barco
que não tem leme nem velas
a tua vida é uma casa
sem portas e sem janelas

Não vás ao sabor do vento
aprende a canção da esperança
vem semear tempestades
se queres colher a bonança.

 

CARTA AOS AMIGOS MORTOS

Eis que morrestes — agora já não bate
O vosso coração cujo bater
Dava ritmo e esperança ao meu viver
Agora estais perdidos para mim
— O olhar não atravessa esta distância —
Nem irei procurar-vos pois não sou
Orpheu tendo escolhido para mim
Estar presente aqui onde estou viva
Eu vos desejo a paz nesse caminho
Fora do mundo que respiro e vejo
Porém aqui eu escolhi viver
Nada me resta senão olhar de frente
Neste país de dor e incerteza
Aqui eu escolhi permanecer
Onde a visão é dura e mais difícil

Aqui me resta apenas fazer frente
Ao rosto sujo de ódio e de injustiça
A lucidez me serve para ver
A cidade a cair muro por muro
E as faces a morrerem uma a uma
E a morte que me corta ela me ensina
Que o sinal do homem não é uma coluna

E eu vos peço por este amor cortado
Que vos lembreis de mim lá onde o amor
Já não pode morrer nem ser quebrado
Que o vosso coração que já não bate
O tempo denso de sangue e de saudade
Mas vive a perfeição da claridade
Se compadeça de mim e de meu pranto
Se compadeça de mim e de meu canto

Sophia de Mello Breyner Andresen de Livro Sexto em Cem Poemas de Sophia

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

VIAGENS POR ABRIL


                 Este não é o dia seguinte do dia que foi ontem.

                 João Bénard da Costa

Será um desfilar de histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias, figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação do dia, mês, ano em que aconteceram.

O recorte que acima se publica, é uma resumo feito por um órgão de comunicação social sobre uma mirabolante entrevista que Ruy Patrício, o último ministro dos Negácios Estrangeiros da ditadura de Marcelo Caetano, deu à revista Visão no dia 24 de Março de 1994.

Ruy Patrício, após o 25 de Abril acabou por fugir para o Brasil.

Ainda por lá vive e notícias vagas deram-no como um vibrante apoiante do facínora Bolsonaro, ex-presidente do Brasil. 

OLHAR AS CAPAS


Ana

Maria Teresa Horta

Ilustrações de Leonor Fini

Editorial Futura, Lisboa, Dezembro de 1974

«Os dias são hoje de memória: a mudez, o Natal, os pés nus no chão da cozinha até à chaminé, o silêncio procurado do jardim.

Um jardim com a cas ao fundo. Uma casa impassível, impenetrável, de aparência tranquila.

Lá dentro a mãe arranja camélias na jarra de cristal facetado, e azevinho no centro da mesa.

Os seus movimentos são ágeis, livres e atentos ao mesmo tempo. Movimentos tão jovens como os seus cabelos nos ombros a resvalarem na seda do vestido».

SOBRE DESENHOS DE KUBIN

dos que se enforcam que dizer

sobretudo dos que se enforcam

nos candeeiros e nas árvores

e dos caminhantes solitários

e dos velhos na agonia    então

e dos padres bebendo bebendo

dos espíritos que deambulam

ou dos cadáveres ressequidos

dos desenhos de alfred kubin

 

suas casas de terríveis ratos

a cólera      a anarquia dos corvos

o próprio crucificado de 1903

os nus de gólgota do ano de 1920

e o pescador dos monstros do lago

os decapitados e os serrados

o horroroso quarto crescente

agripina e as adorações finais

cavalgando a morte chicoteando

 

toda esta escrita sangue a sangue

folha a folha o álbum de alfred

kubin como a flauta de um morto

a mão final sobre os rostos de

quem já nada tem para arrastar

até as neves se avermelham já

e depois resta-nos ir à Áustria

é lá que estão os meus desenhos

 

José Viale Moutinho em Piano Bar

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

VIAGENS POR ABRIL

 

                 Este não é o dia seguinte do dia que foi ontem.

                 João Bénard da Costa

Será um desfilar de histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias, figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação do dia, mês, ano em que aconteceram.

Apresentamos hoje o depoimento do escritor e crítico literário Pedro Mexia sobre o 25 de Abril, publicado na revista do Expresso de 18 de Abril de 2014.


OLHAR AS CAPAS


A Sala Nº 6

Versão livre de João de Sosa Fonseca e Álvaro Maia

Capa: Jorge barradas

Colecção Romances e Novelas

Edição da Sociedade Contemporânea de Autores,  Lisboa, 1928

Dentro do hospital há um pequeno pavilhão rodeado por um verdadeiro bosque de arbustos selváticos. O telhado está coberto de arroz bravio; a chaminé, leprosa, cai aos pedaços, o corrimão da escada está pôdre, Lamentàvelmente Pôdre. O pavilhão é separado da campina por um paredão cinzento, coroado por uma feira de dentes de vidro, agressivos. É triste tudo aquilo.

Por dento é ainda tudo mais triste.

OS ITINERÁRIOS DO EDUARDO


Eduardo Guerra Carneiro está, a uma esquina da Avenida de Roma, onde ainda se situa o Café Luanda, e olha. Do outro lado da praça o Café Vavá.

Apenas olha, tirando uma Lisboa, Verdes Anos, que não mais é o que era, não pensa em nada de concreto.

Onde estás agora, Eduardo?


«Os guerrilheiros que saem do Vavá benzem-se à sua maneira, como se a próspera guerrilha se fundasse em qualquer casa além da linha. Sábios de nascença citam nomes e têm decorada uma biblioteca, tal qual alguns desenraizados do Saldanha - mas de modo diferente. Abotoam-se com esmero e engravatam-se ou não conforme as circunstâncias. Os guerrilheiros que entram no Vavá usam as citações à bandoleira e telefonam com muita assiduidade.»


Eduardo Guerra Carneiro em Isto Anda Tudo Ligado

 

Legenda: fotografia do site Lisboa ConVida

PASOLINI FOI DENUNCIUADO...

Pasolini foi denunciado a um padre – Ah1 essa velha invenção do confessionário… - de ter relações sexuais com um aluno seu. Sofreu-lhe as consequências: foi depois disso, desse episódio maligno que a Santa Madre Igreja recomenda aos rapazes, ficou desempregado. Ora, interessante para mim era saber o que pensa X um padre e intelectual de vanguarda com fama de progressista, homem inteligente, frugal, doutor honoris causa, acerca desse velho e desfavorecido problema. Será… será que S. M. I. não vê nisso – ou deixou de ver – ameaça ao seu bordel nupcial? Dois padres eu conheci que – nunca mo disseram – estavam, os dois, longe o bastante dessas quezílias. Mas o Bispo de Braga, o Bispo-adjunto de Aldegundes, o coadjunto de Bucelas, o próprio Cardeal bem bonito em novo, o padreca lá da terra – dizem que foder em comum só entre os animais, e, caso estes sejam masculinos, o que devem é apagar as luzes e não sujar os lençóis… Bem, por entre o quadriculado da tampinha que desce e sobe, entre ais e gemidos do padre António espanhol (apanhado em flagrante no eucalipto e que, como era altíssimo, apertava as pernas dos meninos entre os joelhos), tudo isso conta: o estar na tropa é uma atenuante de peso. Nos corredores do Vaticano, nas colunas do Osservatóre, nas ante câmaras e penumbras do Sacro -: será que assim seja, ámen seculorum ámen? As putas do Bairro Alto, bem como os marinheiros de Alfama -: hão-de pensar que, assim, a Madre Igreja não se governa… E que toda a governação eclesiástica é veste clerical sem princípio nem fim, sem justeza moral.

 

Raul de Carvalho em Mágico Novembro 

domingo, 28 de janeiro de 2024

POSTAIS SEM SELO


 

Tudo o que o meu pai me disse quando, aos 15 anos, dclarei em família que iria começar a escrever poesia:

“Antes

De te sentares

à  mesa

lava bem

essas mãos”

 

Luís Filipe Parrado em Resumo: a poesia em 2009

 

Legenda:  fotografia de Melanie Safka tirada do álbum Candles in The Rain, Setembro 1970. 

CONVERSANDO

Entre 1933 e 1974 os serviços de censura das ditaduras de Salazar e Marcelo Caetano censuraram mais de 3300 livros, proibiram milhões de palavras nos artigos e notícias de jornais e revistas.

O jornalista e poeta José Viale Moutinho disse um dia:

«Recordo-me ter lido umas instruções aos inquisidores que diziam, mais ou menos, isto acerca dos livros em exame: se houver algo a cortar, é cortar essas partes insidiosas, porém, se a obra não apresentar, a uma primeira leitura, nada de censurável, então deve ser totalmente proibida a sua edição, pois isso apenas pode significar que a insídia se encontra completamente disfarçada.»

O Diário de Notícias continua a publicar uma série de depoimentos de gente diversa que lembra, onde estava e o que fazia, há 50 anos.

Hoje, foi a vez de Alice Vieira que lembrou parte do que a censura lhe cortou nos jornais em que trabalhou. Reparem neste perfeito disparate censório:

«Quando Grace Kelly veio a Portugal, escrevi que era filha de um pedreiro. A censura cortou porque, evidentemente, uma princesa não podia ser filha de um pedreiro.»

VIAGENS POR ABRIL


 




                 Este não é o dia seguinte do dia que foi ontem.

                 João Bénard da Costa

Será um desfilar de histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias, figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação do dia, mês, ano em que aconteceram.

Hoje que é domingo, os recortes recaem sobre os cravos vermelhos que inundaram as ruas no 25 de Abril.

Essa personagem sinistra, Krus Abecasis de seu nome, presidente da Câmara de Lisboa, proibiu, o cultivo de cravos vermelhos nos viveiros municipais.

O botas de Santa Comba, seu estimável mestre, também tudo proibia.

Ainda hoje, as gentes, que vibraram nas ruas, que gritaram contra o medo, quando, pelas manhãs de sábado ou domingo, compram cravos para decorar as casas, não sabem comprá-los de outras cores que não vermelhos.

OLHAR AS CAPAS


Jorge de Sena Vinte Anos Depois

Edições Cosmos, Lisboa, Março de 2001

 A Câmara Municipal de Lisboa organizou, através das suas Bibliotecas Municipais, um Colóquio para assinalar os vinte anos da morte de Jorge de Sena. As actas deste Colóquio deram origem ao presente volume. Integrado neste encontro tiveram lugar outras manifestações como o visionamento dos filmes «Os Salteadores» de Abi Feijó, e «Sinais de Fogo», um recital de poesia dita por Luís Lucas, música tocada por Nuno Vieira de Almeida, baseado no livro «A Arte Da Música», livro de Jorge de Sena publicado em 1968 e mais tarde incluído em «Poesia II» editado em 1988.

Colaborações, entre outros:

Joaquim-Francisco Coelho, Almeida Faria, Fernando Guimarães, João Rui de Sousa, Eugénia Vasquies, Luís Francisco Rebello, Jorge Fazenda Lourenço, Eugénio Lisboa, José-Augusto França.

«À morte de Jorge de Sena, em 1979, fiz uma aula de História da Arte na minha Universidade, com a leitura deste poemas, uns atrás dos outros, e projecção das obras referidas – e foi,  assim somente, uma lição com certeza mais útil do que todas  as mais que dei na minha cadeira. Pela emoção intelectual e sensitiva que nenhum outro poeta português poderia assim provocar, em conhecimento vivido ou convivido, de obras de arte ao longo de mais de dois mil anos…»

 

Do texto de José Augusto França.

sábado, 27 de janeiro de 2024

VIAGENS POR ABRIL


Este não é o dia seguinte do dia que foi ontem.

                 João Bénard da Costa

 

Será um desfilar de histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias, figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação do dia, mês, ano em que aconteceram.

Nestas viagens, fazemos a primeira incursão pela música.

Chegou-se a pensar em Adriano Correia de Oliveira, que entrou primeiro na Casa que José Afonso.

Mas este EP do Manuel Freire é o primeiro disco das grandes músicas que fizeram todo o nosso mundo musical antes do 25 de Abril.

Lado 1

Dedicatória - poema de Fernando Miguel Bernardes

Livre – poema de Carlos de Oliveira

Lado 2

Eles - poema de Manuel Freire

Pedro o Soldado – poema de Manuel Alegre

Todas as músicas são de Manuel Freire.

Acompanhamento viola: Fernando Alvim

Rapidamente tornaram-se hinos de intervenção, cantados um pouco por toda a parte.

Principalmente Livre, com aquele seu grito, retirado do Cancioneiro Popular, de não haver machado que corte a raiz ao pensamento.

Estávamos então unidos pelo desejo de derrubar uma ditadura.

Muitas vezes direi: naquele Portugal, o canto foi o melhor, e mais eficiente, sinal de protesto.


O OUTRO LADO DAS CAPAS


A Geração de 70, também designada por Geração de Coimbra, foi um movimento académico do Século XIX que tentou revolucionar a cultura e a política portuguesa. Dela faziam parte, entre outros jovens intetectuias, Antero de Quental, Eça de Queiroz, Oliveira Martins e Ramalho Ortigão. Em 1871, o grupo organizou uma série de conferências no Casino Lisbonense,  para discutir temas ligados à literatura, educação, religião e política. As conferências acabaram por ser proibidas pelo governo.

E tal como é dito no excerto publicado em Olhar as Capas, revelaram-se antimarxistas e anticomunistas e deixadas um tanto ou quanto de lado as discussões políticas e culturais, consideraram-se «Vencidos da Vida» e dedicaram-se à boémia.

Cada colocação de livro no capítulo de Olhar as Capas (estão referenciados 1808 volumes), concluo que, antevendo o tempo que falta percorrer, e mesmo fazendo um livro por dia, não surgirão todos os volumes que constituem a Biblioteca da Casa.

OLHAR AS CAPAS


O Neo-Realismo Literário Português

Alexandre Pinheiro Torres

Capa: Luiuz Duran

Colecção: Temas e Problemas nº 4

Moraes Editores, Lisboa, Fevereiro de 1977

Todos os componentes da Geração de 70 se opuseram, assim, à acção revolucionária. Todos foram convictos antimarxistas e anticomunistas. O prof. Joaquim de Carvalho observou haver em todos uma aberta hostilidade contra a ideia da ditadura do proletariado, constante, sublinha, que «tem presidido ao socialismo português».

sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

VIAGENS POR ABRIL

Este não é o dia seguinte do dia que foi ontem.

               João Bénard da Costa

Será um desfilar de histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias, figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação do dia, mês, ano em que aconteceram.

É preciso ter percorrido muitos e diversos caminhos de pedras para perceber quem nos acompanhou e ajudou a percorrer esses caminhos.

A morte de Melanie Safka, hoje conhecida, é o sabermos que andou ao nosso lado, a sempre quer saber o que fizeram às nossas canções.

Um texto já aqui publicado no Cais, constitui a nossa Viagem de Abril.

Nunca deixamos de pensar nos dias em que esperámos a queda da ditadura para, como Jorge de Sena, conhecer a cor da liberdade.

Agora que entrámos por Abril dentro, tornam-se nítidas, angustiantes  também, essas lembranças: as palavras, as longas conversas, as canções que nos acompanhavam os dias.

Aos 20 anos, partilhavam-se sonhos desmesurados: mudar a vida, transformar o mundo.

Acontecido Abril, não tardaram ventos trazendo outras brisas.

Brisas que traziam notícias dos que não queriam que as coisas fossem assim tanto, outros que fossem mais suaves e, por estas e por outras, desencontrámo-nos.

Mário-Henrique Leiria, que sempre foi um combatente por causas, daqueles que entenderam a Pasionaria quando  ela gritou : más vale morir de pie que viver em rodillas, num cair de tarde lisboeta, entre dois gins, dizia-me:

- Vê lá tu, que o Álvaro Guerra, deixou de me falar só porque não sou do partido dele!...

Agora lembramos – os que se lembram, os que, ainda se querem lembrar,  que havia um país para construir, um país onde se pudesse viver com dignidade.

As palavras de Manuel Alegre, que já nos falavam de um País de Abril, poderia ser um outro qualquer mês, mas ele escreveu Abril.

Sorrisos de pássaros, canções de paz.

A Melanie Safka, já naquele tempo, a dizer-nos o que fizeram à sua canção.

Ainda hoje o diz:

Vê o que fizeram com a minha canção, mãe! Vê o que fizeram com a minha canção! É a única coisa que eu sei fazer mais ou menos bem... e deram cabo dela. Vê o que fizeram ao meu cérebro, mãe! Puxaram por ele como se fosse um osso de galinha... e acho que estou a ficar meio louco, mãe. Vê o que fizeram com a minha canção.

Quem me dera encontrar um bom livro, para viver dentro dele. Quem me dera encontrar um bom livro. Se eu encontrasse um livro realmente bom, não teria que vir - nunca mais - cá fora, para ver o que fizeram com a minha canção.

Mas... pode ser que tudo acabe bem, mãe. Pode ser que tudo dê certo. Se as pessoas estiverem compradoras de lágrimas, um dia destes vou ficar rico, mãe. Vê o que fizeram com a minha canção, mãe! Embrulharam-na em plástico e viraram-na do avesso, mãe. Olha o que fizeram com a minha canção!

É a única coisa que eu faço bem... e eles viraram-na de cima para baixo, mãe. Vê o que fizeram à minha canção!

OLHAR AS CAPAS


Liberdade de Imprensa e Dignificação da Palavra

Nuno Teixeira Neves

Colecção Cadernos Unicepe nº 1

Edição do Autor, Porto, Abril de 1969

O sermos insistentemente postos perante uma divisória entre vocação e preparação todas as vezes que se fala de ensino do jornalismo, denuncia, segundo creio, um vício de mentalidade. Porque se põe tal problema apenas para o jornalismo? Julgo que porque é precisamente para o jornalismo que se reclama, agora, o ensino. Se o reclamássemos para a medicina, haveria quem o pusesse em iguais termos para a medicina. Ou para a advocacia, ou para a docência. Ora a verdade é que qualquer profissão requer igualmente «vocação» e preparação. E quanto mais digna e responsável for a profissão menos a preparação poderá ser imediata e empírica, tendo tanto mais que ser imediata e escolar.

De resto eu não seja o que seja «vocação». Parece-me um conceito confuso. Há apenas aptidões, mais ou menos adquiridas, mais ou menos plásticas, e interesse, e tanto aquelas como este resultam do jogo entre as condições intrínsecas ao indivíduo e as condições ambientais.

Acrescentemos que o jornalismo é hoje algo demasiadamente complexo para que a natureza se tenha lembrado de criar para ele as «vocações» correspondentes: há-de ser aprendido, penosamente aprendido, como tudo quanto é exercício deste ser requintadamente civilizado que somos.

O DIA EM QUE NASCI MOURA

O dia em que nasci moura e pereça,
não o queira jamais o tempo dar;
não torne mais ao mundo, e, se tornar,
eclipse nesse passo o Sol padeça.

A luz lhe falte, o sol se lhe escureça,
mostre o mundo sinais de se acabar,
nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
a mãe ao próprio filho não conheça.
 

As pessoas pasmadas, de ignorantes,
as lágrimas no rosto, a côr perdida,
cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes,
que êste dia deitou ao Mundo a vida
mais desgraçada que jamais se viu!

Luís de Camões em Sonetos

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

VIAGENS POR ABRIL


 

                 Este não é o dia seguinte do dia que foi ontem.

                 João Bénard da Costa

 Será um desfilar de histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias, figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação do dia, mês, ano em que aconteceram.

Talvez não tenha sido muito boa a ideia de que para estas Viagens por Abril a escolha tenha recaído num «Tudo ao monte e fé em Deus».

Não foi mesmo.

É sempre tarde quando se chora!...

A escolha recai hoje num depoimento do jornalista António Rego Chaves, num título de crónica que destila toda a angústia e frustração que invadiu muitos de nós : «EM LOUVOR DO 24 de ABRIL»

Porque relembrando Bénard da Costa: «Este não é o dia seguinte do dia que foi ontem.»

O OUTRO LADO DAS CAPAS



As capas castanhas das Edições Aguilar de Madrid para os grandes poetas espanhóis.

A Biblioteca da Casa também guarda as ObrasCompletas, edição da Aguilar, de Federico Garcia Lorca.

Por aqui, neste páis, sobre os nossos artistas, é um autêntico desespero de nenhum cuidado, um soberano desprezo...

É possível encontrar o ainda ministro da Cultura do ex-governo de António  Costa, Pedro Adão e Silva, no foyer do 3º anel do Estádio da Luz, boné na cabeça, a comer um gelado de chocolate com salpicos de amendoim torrado, a dissertar sobre as descabidas e incompreensíveis escolhas tácticas do alemão Roger Schmidt, mas desconhecermos, por completo, o programa das comemorações dos prováveis 500 anos do nascimento de  Luís de Camões, na cidade de Lisboa, num qualquer dia, qualquer mês do ano de 1524.

Pedro Adão e Silva, comentador político que, antes de ser ministro, era o presidente das Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril.

Assim,  a nave vai…

OLHAR AS CAPAS


Obras Completas

Rosalia de Castro

Estudo biobibliográfico e organização de Victoriano Garcia Marti

Aguilar Ediciones, Madrid 1968

A verdadeira pátria do homem é o mundo inteiro.

(Começo do ensaio de novela «Flavio»). 

FINAIS SEMPE FELIZES

Minha-tia avó Adelina gostava dos romances com prólogos e epílogos. E os epílogos das histórias que lia eram sempre felizes. E casaram-se, tiveram inúmeros filhos e foram muito venturosos por longos anos.

Erico Veríssimo em México

A PORTA

A porta que se fecha

inesperadamente na distância

e assusta o romancista

que descreve o seu  quarto de criança

(é difícil dizer

se os velhos arquitectos

que punham tanto amor

na construção do quarto

teriam ponderado com rigor

a escala deste som

e o espaço coagulado

ao fundo do corredor)

a porta que se fecha no passado

sobressaltando a escrita e o escritor.

 

Carlos de Oliveira em Sobre o Lado Esquerdo

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

VIAGENS POR ABRIL


                 Este não é o dia seguinte do dia que foi ontem.

                 João Bénard da Costa

Será um desfilar de histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias, figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação do dia, mês, ano em que aconteceram.

Um início de crónica, um desabafo de João Gobern, publicado no semanário Sete, não se sabe em que ano: todos os anos?

O meu pai a dizer-me,  muitos anos, muitos anos para trás, a lembrar que o 25 de Abril um dia será como era o 5 de Outubro do meu avô republicano histórico, anticlerical, benfiquista. Mas o avô nunca se esqueceu de dizer que ele, e o homem da bandeira, nunca faltavam!

OLHAR AS CAPAS


Um Tesouro Guardado: Setúbal D’Outros Tempos

Américo Ribeiro

Fotografias e Reproduções: Américo Ribeiro

Capa: Madureira Lopes

Câmara Municipal de Setúbal, Setúbal 1993

Antigamente eram as alturas, as eminências, a vigilância, os castelos, vistas largas. Assim como Palmela, céltica, romana, gótica, moura e lusitana. Lá em baixo, muito em baixo, o mar imenso cortado por uma península, língua de areia e camarinhas, cá e lá dispersas cabanas de pescadores,

Mas dois braços se estenderam lá do alto, ajeitando. Ajeitando o regaço de vertentes e pradarias até aos areais do rio entre as ombreiras arborizadas do poente e do nascente. Vastos, imensos espaços e férteis onde começaram a nascer casas, ruas, largos, praças, monumentos, igrejas…

Eis a cidade, Setúbal, nascida para crescer sob o signo da grandiosidade.

POSTSCRIPTUM

... apercebo o lume dum coração antigo e simples
atravesso a cor luminosa dos sonhos sem me deter...
... aqui deixo o espólio daquele cuja vida
é cintilação de lugares nítidos...

(um pouco de café, uma carta, um pedaço de vidro)

... tenho a certeza de que se virasse o corpo do avesso
ficaria tudo por recomeçar...
... mas se aqui voltares
talvez encontres estes papéis escritos
no recanto mais esquecido da noite... talvez
descubras o vazio onde o corpo desgasto esperou...

... vou destruir todas as imagens onde me reconheço
e passar o resto da vida assobiando ao medo.

 

Al Berto de O Esquecimento em Yucatán em O Medo

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

UM BRILHOZINHO NO MEIO DA PODRIDÃO


Quase me tenho esquecido do futebol.

Há muito, mesmo muito, que deixou de existir o futebol que, desde os meus 5 anos , já lá vão mais de 70 anos, me encantou os dias.

Agora o futebol é um carrocel de corrupção, de vigarices, jogadores adquiridos e vendidos como se fossem gado.

Gostei muito de ler a crónica que Vasco Mendonça escreve no jornal A Bola de hoje: «Por um Futebol de Camisosla Enfiada nos Calções.

Por isso digo:precisamos de mais jogadores e intervenientes que enfiem a camisola nos calções, antes de jogar, antes de falar, e até antes de pensar. Podem dizer-me que é apenas um detalhe ou que tudo isto é apenas a obsessão estética de alguém que apoia o Benfica e os seus jogadores. Estarão enganados ou, eventualmente,desapontados por não terem um jogador assim no vosso clube. Lamento. Ma sprometo que o emprestamos à seleção, para poderem gostar tanto dele como nós.

 Vasco Mendonça em A Bola 

VIAGENS POR ABRIL


                 Este não é o dia seguinte do dia que foi ontem.

                 João Bénard da Costa

Será um desfilar de histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias, figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação do dia, mês, ano em que aconteceram.

 A viagem de hoje, leva-nos ao depoimento do jornalista José Mário Silva, que,  quando se dá o 25 de Abril, tinha dois anos, um mês e 23 dias.

O depoimento foi publicado no «JL». 

O OUTRO LADO DAS CAPAS


A Sonata a Kreutzer é um curto romance de Tolstói publicado em 1889.

Será um dos livros mais antigos da Biblioteca da Casa.

Publicado pela Livraria Guimarães na Rua do Mundo, hoje Rua da Misericórdia, mas sem qualquer indicação da data em que foi editado.

Encadernação amadora, imagem do topo, do meu avô que, seguindo as instruções do meu pai, conservou a capa original do livro. 

O livro tem a assinatura de posse do meu pai.

Ainda antes de ser o leitor em que me constituí, o meu pai avisara que não se colocam assinaturas, ou carimbos de posse, nos livros.

 Um livro muito interessante de Tolstoi que, logo a abrir nos infoma que estávamos no princípio da Primavera e que há dois longos dias viajavam de comboio.

Quatro viajantes permaneceram sempre na carruagem: uma mulher de meia idade, cigarro na boca, gorro na cabeça, seu marido, também um sujeito idoso, boné de Astrakan, uma camisa com bordados russos, homem de poucas palavras, lia e fumava, volta e meia preparava uma chávena de chávena de chá, iremos saber que se chama Pozdnychev e que mantém com o narrador um longo monólogo, quase diálogo à volta de uma epígrafe do Evangelho Segundo São Mateus: «Eu, porém, vos digo: todo aquele que olha para uma mulher com desejo libidinoso já cometeu adultério com ela em seu coração».

Pozdnychev matara a mulher e, se já transportava em si uma enorme solidão, piorou.

«O homem é muito pior do que o animal, quando não vive como homem. Foi o que se deu comigo. Como resistia à tentação, que, sobre mim, podiam exerecer outras mulheres, julgava-me um homem honesto e digno. E acusava minha mulher de fazer do nosso lar uma sucursal do inferno.

E comtudo, a culpa não era della, mas da educação que havia recebido. Educação egual devem receber todas as raparigas da nossa sociedade.

Ha muito quem se queixe da forma porque a mulher é educada. Ha muito que deseje dar-lhe outra orientação. Pura rethorica! Para educar a mulher, é necessário, primeiro do que tudo, fazer compreender ao homem a verdadeira missão da mulher.

Emquanto o homem a destinar para seu regalo e prazer, a educação da mulher será o reflexo dessas idéas. Desde creança lhe ensinarão a fazer valer os seus encantos. Este pensamento tornar-se-á preocupação, mais do que isso, acabrá por ser o único fim da sua existência.»

O romance foi proibido na Rússia logo após a sua publicação.

Surgiu uma versão mimeografada e, apesar da fúria dos censores russos,  foi amplamente divulgada.

Em 1890, o Departamento Postal dos Estados Unidos proibiu o envio de jornais contendo partes serializadas da obra. Isto foi confirmado pelo Procurador-Geral dos Estados Unidos no mesmo ano. Theodore Roosevelt classificou Tolstoi como um  “pervertido sexual".

OLHAR AS CAPAS


A Sonata de Kreutzer

Leon Tolstoi

Tradução: Maria Benedicta Pinho

Colecção Guimarães nº 16

Guimarães Editores, Lisboa s/d

Pozdnychev interrompeu-se. Sacudiam-no os soluços. Passados momentos, prosseguiu:

- Quando a vi no caixão, compreendi o meu erro!

Suspirou fundamente, e continuou:

- Só comprheendi o alcance do acto que praticára ao vêr-lhe o rosto cadavérico.

Comprehendi  que fôra eu que a matára, que a mergulhára no nada… Ella estava alli, inerte, fria, imóvel qual estatua, porque assim o quizéra!

Era irreparável o mal que eu praticára!

Quem não passou por transes destes, nãoi ospóde compreender!

Permanecemos silenciosos. Pozdnychev tremis, chorava.

-Sim! – disse ainda – Se eu soubesse o que hoje sei, nada teria sucedido! Nunca a teria desposado!

Não me casaria! Nunca!

E apoz novo silencio:

- Aqui tem o que eu fiz! Todas as provações porque passei. É precisos comprehender o sentido do Evangelho de S. Matheus.

É preciso saber que esta phrase: «Todo aquelle que olhar para uma mulher com olhos de cubiça, pratica o adultério», se não aplica unicamente à mulher do próximo, mas também à nossa própria mulher.

SEI DE UM JEITO...

sei de um jeito de te fazer ficar

murmuravas nas manhãs em que nascíamos

ávidos de nós

e éramos tão novos

e faltávamos às aulas

 

posso ter esquecido    admito    muita coisa

caminhos    promessas    lugares    a cor

da saia que vestia no dia em que não voltei

muita coisa    admito    menos

a concha perfeita nas tuas mãos sobre o meu peito

o cheiro das laranjeiras    as cartas

em papel tão adolescente e azul

o esplendor de junho à mesa familiar

os espelhos garantindo-nos  um lugar único na casa

 

posso ter esquecido    admito    muita coisa

menos os nossos corpos simultâneos

às portas do amor

no arco da minha pele que humidamente

se abria ao lume da tua língua

 

nessas manhãs em que jurámos

não morrer nunca

 

Alice Vieira em Dois Corpos Tombando na Água

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

POSTAIS SEM SELO


Há quem diga que todas as noites são de sonhos. Mas há também quem garanta que nem todas, só as de verão. No fundo, isso não tem importância. O que interessa mesmo não é a noite em si, são os sonhos. Sonhos que o homem sonha sempre, em todos os lugares, em todas as épocas do ano, dormindo ou acordado.

William Shakespeare

Legenda: «Summer Night», pintura de WinslowHomer

VIAGENS POR ABRIL

                 Este não é o dia seguinte do dia que foi ontem.

                 João Bénard da Costa

Será um desfilar de histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias, figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação do dia, mês, ano em que aconteceram.

Um interessantíssimo depoimento da jornalista Diana Andringa onde enumera o que lembra de alguns anos, meses, dias, antes do 25 de Abril.

Artigo publicado no Público de 23 de Abril de 1994.

OLHAR AS CAPAS


Gorki Por Ele Próprio

Nina Gourfinkel

Tradução: Jaime Brasil

Colecção Escritores de Sempre nº 1

Portugália Editora, Lisboa, Dezembro de 1964

Para mim não há outra ideia além do homem. O homem e o homem só é, na minha opinião, o criador de todas as coisas e de todas as ideias, é ele que realiza milagres e, no futuro, será senhor de todas as forças da natureza. O que há de mais belo no nosso mundo foi criado pelo trabalho e a mão inteligente do homem; a história da arte, das ciências, da técnica ensina-nos que todos os nossos pensamentos, todas as nossas ideias emanam do método do trabalho. O pensamento é posterior ao feito. «Inclino-me» perante o homem, porque não sinto nem vejo nada na terra estranho às materializações da sua razão, da sua imaginação, do seu espírito inventivo. Deus foi uma invenção do homem, tal como a fotografia, com a diferença de que esta fixa os traços do que existe realmente, enquanto que Deus é uma foto da ideia que o homem faz de um ser que quer – e pode – ser omnisciente, omnipotente e perfeitamente justo.

E se é preciso absolutamente falar de «sagrado», digamos que só há de sagrado o descontentamento que o homem sente por si próprio e a sua aspiração de se tornar melhor; sagrado é o seu ódio pelas velharias de uma existência de que ele próprio é responsável; sagrado o seu desejo de aniquilar na terra a inveja, a ambição, os crimes, as doenças, as guerras e toda a inimizade entre os homens; sagrado é o seu trabalho.

AVE FUGAZ

Releio os meus poemas procurando

entendê-los: mas o o que é compreender

a poesia? Alguma coisa nos versos pus senão

a brusca vida que me resistia?

 

Com palavras tentei superar a mortal

evidência dos dias e por vezes

mais do que eles morri sobrevivendo

às várias formas de amor perdido

 

Terminavam os dias e eu via

na vagarosa obscuridade vinda

confirmado esse vácuo que nenhuma

ilusão já podia diferir

 

Então a poesia só servia

para evitar que tudo a morte recolhesse;

o fruto árido tombado da luz era

entre a realidade e as palavras disputado

 

Procuro conhecer a existência

actual dessa ilusão, agora mais real

do que quando morria e só a fala

a podia reter, ave

 

fugaz, incerta

voz que me leva

a desejar saber se creio ainda

na vida inverosímil da poesia

 

Gastão Cruz de Escarpas em Resumo: a poesia em 2010.