Este não é o dia seguinte do dia que foi ontem.
João Bénard da Costa
Será um desfilar de
histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias,
figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação
do dia, mês, ano em que aconteceram.
Para início de conversa, fui
buscar um poema do Manuel Alegre, retirado de A Praça da Canção. A ilustração é
uma pintura de Cipriano Dourado.
A RAPARIGA DO
MÊS DE ABRIL
Habito o sol dentro de ti
descubro a terra aprendo o mar
rio acima rio abaixo vou remando
por esse Tejo aberto no teu corpo.
E sou metade camponês metade marinheiro
apascento meus sonhos iço as velas
sobre o teu corpo que de certo modo
é um país marítimo com árvores no meio.
Tu és meu vinho. Tu és meu pão.
Guitarra e fruta. Melodia.
A mesma melodia destas noites
enlouquecidas pela brisa no País de Abril.
Começa a pátria onde começas. Verde campo
verde mar. Capital da ternura.
Tu és a lâmpada no meio desta festa
com fogueiras e povo dentro dos poemas.
Era a estranha paisagem da pobreza
o cheiro secular das coisas que apodrecem
era a canção cantada pelos bêbados
que vomitam seu fardo de viver.
E eu procurava-te nas pontes da tristeza
cantava adivinhando-te cantava
quando o País de Abril se vestia de ti
e eu perguntava atónito quem eras.
Quando vieste tudo ficou certo.
Encheram-se de trevo os campos das palavras
encheram-se de gente as mãos de cada verso
com sete estrelas sete luas nós cantámos.
E tu disseste: ergue-te e vai.
Não ouves este vento este soluço?
Ergue-te e canta uma canção para o teu povo.
Com sete barcos sete espadas nós partimos.
Raparigas sentaram-se ao redor do poema.
E então cantei de amor por ti cantei
na língua que por vezes é tão triste
a nossa língua que por vezes é assim: tão pura.
Mulher por ti cantei. E tu me deste
um puro continente algarves de ternura.
Por ti cantei entre meu povo e meu poema
e achei achando-te o País de Abril.
Manuel Alegre em Praça da Canção
A 1ª edição de Praça
da Canção é editada, em 1965, pela revista Vértice de Coimbra, constituindo o 3º volume da colecção Cancioneiro Vértice, cujos primeiros
volumes são Cuidar dos Vivos (1963)
de Fernando Assis Pacheco, e Corpo de Esperança
(1964) de José Carlos de Vasconcelos.
Os poucos livros postos à venda foram imediatamente
apreendidos pela PIDE, mas o livro beneficiou da distribuição pelos assinantes
da revista.
A 2ª edição de Praça da Canção, editada em 1967,
na excelente Colecção Poesia e Ensaio, de que é o nº 18, coordenada por Vitor
Silva Tavares e orientação gráfica de Espiga Pinto, também foi de imediato
aprendida pela polícia da ditadura.
O exemplar que existe na Biblioteca da Casa foi uma
cortesia do livreiro Carvalho, trabalhador da então Livraria Clássica Editora,
sediada ao lado do antigo Cinema Eden, que antevia os livros que seriam apreendidos
e guardava-os para os clientes de confiança em que o meu pai estava incluído.
Esta nova edição tem prefácio de Mário Sacramento que
começa assim:
«Não me levem a mal
se, apoiado num livro que pode considerar-se de estreia, me afortunar a dizer
que com Manuel Alegre nasceu o maior poeta do neo-realismo português. Assim o sinto,
assim o devo escrever, muito embora não esqueça todos os que foram ou são
maiores poetas do que ele em definidos (ou restritos) rumos ou tonas e modos do
que em poesia podemos abarcar pela designação de neo-realismo. É que em Manuel
Alegre não há singularidade, mas sim a espontaneidade dum lirismo vigilante que
tem um só tema, um só modo e um só nome: poesia, e pelo qual desabrocha em
plenitude e maturidade uma vocação que integra o que antes dele for sobretudo
ensaio, esboço ou realização parcelar e mitigada.»
Ainda por Abril pela Praça da Canção, recorde-se, ver aqui, a história de a Aida ter copiado para um caderdinho de linhas todos os poemas para distribuição pelos amigos.
Sem comentários:
Enviar um comentário