domingo, 7 de janeiro de 2024

VIAGENS POR ABRIL

                       Este não é o dia seguinte do dia que foi ontem.

                                                                         João Bénard da Costa

Será um desfilar de histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias, figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação do dia, mês, ano em que aconteceram.

Para início de conversa, fui buscar um poema do Manuel Alegre, retirado de A Praça da Canção. A ilustração é uma pintura de Cipriano Dourado.



A RAPARIGA DO MÊS DE ABRIL

 

Habito o sol dentro de ti
descubro a terra aprendo o mar
rio acima rio abaixo vou remando
por esse Tejo aberto no teu corpo.

 

E sou metade camponês metade marinheiro
apascento meus sonhos iço as velas
sobre o teu corpo que de certo modo
é um país marítimo com árvores no meio.

 

Tu és meu vinho. Tu és meu pão.
Guitarra e fruta. Melodia.
A mesma melodia destas noites
enlouquecidas pela brisa no País de Abril.

 

Começa a pátria onde começas. Verde campo

verde mar. Capital da ternura.

Tu és a lâmpada no meio desta festa

com fogueiras e povo dentro dos poemas.

 

Era a estranha paisagem da pobreza

o cheiro secular das coisas que apodrecem

era a canção cantada pelos bêbados

que vomitam seu fardo de viver.

 

E eu procurava-te nas pontes da tristeza
cantava adivinhando-te cantava
quando o País de Abril se vestia de ti
e eu perguntava atónito quem eras.

 

Quando vieste tudo ficou certo.

Encheram-se de trevo os campos das palavras

encheram-se de gente as mãos de cada verso

com sete estrelas sete luas nós cantámos.

 

E tu disseste: ergue-te e vai.

Não ouves este vento este soluço?

Ergue-te e canta uma canção para o teu povo.

Com sete barcos sete espadas nós partimos.

 

Raparigas sentaram-se ao redor do poema.

E então cantei de amor por ti cantei

na língua que por vezes é tão triste

a nossa língua que por vezes é assim: tão pura.

 

Mulher   por ti cantei. E tu me deste

um puro continente algarves de ternura.

Por ti cantei entre meu povo e meu poema

e achei   achando-te   o País de Abril.

 

Manuel Alegre em Praça da Canção


A 1ª edição de Praça da Canção é editada, em 1965, pela revista Vértice de Coimbra, constituindo o 3º volume da colecção Cancioneiro Vértice, cujos primeiros volumes são Cuidar dos Vivos (1963) de Fernando Assis Pacheco, e Corpo de Esperança (1964) de José Carlos de Vasconcelos.

Os poucos livros postos à venda foram imediatamente apreendidos pela PIDE, mas o livro beneficiou da distribuição pelos assinantes da revista.

A 2ª edição de Praça da Canção, editada em 1967, na excelente Colecção Poesia e Ensaio, de que é o nº 18, coordenada por Vitor Silva Tavares e orientação gráfica de Espiga Pinto, também foi de imediato aprendida pela polícia da ditadura.

O exemplar que existe na Biblioteca da Casa foi uma cortesia do livreiro Carvalho, trabalhador da então Livraria Clássica Editora, sediada ao lado do antigo Cinema Eden, que antevia os livros que seriam apreendidos e guardava-os para os clientes de confiança em que o meu pai estava incluído.

Esta nova edição tem prefácio de Mário Sacramento que começa assim:

«Não me levem a mal se, apoiado num livro que pode considerar-se de estreia, me afortunar a dizer que com Manuel Alegre nasceu o maior poeta do neo-realismo português. Assim o sinto, assim o devo escrever, muito embora não esqueça todos os que foram ou são maiores poetas do que ele em definidos (ou restritos) rumos ou tonas e modos do que em poesia podemos abarcar pela designação de neo-realismo. É que em Manuel Alegre não há singularidade, mas sim a espontaneidade dum lirismo vigilante que tem um só tema, um só modo e um só nome: poesia, e pelo qual desabrocha em plenitude e maturidade uma vocação que integra o que antes dele for sobretudo ensaio, esboço ou realização parcelar e mitigada.»

 

Ainda por Abril pela Praça da Canção, recorde-se, ver aqui, a história de a Aida ter copiado para um caderdinho de linhas todos os poemas para distribuição pelos amigos.

Sem comentários: