Este não é o dia seguinte do dia que foi ontem.
João Bénard da Costa
Será um desfilar de histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias, figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação do dia, mês, ano em que aconteceram.
Pequena viagem por alguns livros que retratam a vida sombria que os portugueses viviam antes do 25 de Abril:
1.
«Entre 1904 e
1914, entre os vinte e os trinta anos, tinha viajado por toda a Europa, durante
as férias universitárias, para completar a sua educação, segundo o desejo do
seu pai. Um Verão, quando voltava de Londres, ao ir embarcar em Valência para
Nápoles, tinha passado por Portugal. Tinha posto a si mesmo mil perguntas sobre
o declínio dessa nação cujo império se tinha estendido à volta do Globo. Tinha
conhecido escritores que não escreviam para ninguém; homens políticos que
governavam para os Ingleses; homens de negócios que liquidavam os seus
estabelecimentos do Brasil e viviam de pequenas rendas, em cidades de
província, sem finalidade. Ele tinha pensado que era a pior das infelicidades
nascer Português. Em Lisboa, pela primeira vez na vida, tinha-se encontrado com
um povo que se tinha desinteressado.»
Roger Vailland em A Lei
2.
«Não há mais que silêncio em toda esta cidade. Silêncio e fome. Acabo de percorrer toda a Rua do Ouro e a Rua Augusta e reparei que ninguém falava. As pessoas cruzam-se em silêncio, e mesmo que se conheçam não se cumprimentam.»
Reynaldo Arenas em O Mundo Alucinante
3.
«Estamos catalogados, estamos empalhados dentro de uma redoma de vidro, mergulhados num frasco com álcool, isolados de tudo e com um rótulo debaixo dos pés. O rótulo puseram-no os outros; nós consentimos, acomodámo-nos e vamos vivendo com ele. Mas tudo pode desfazer-se dum momento para o outro. Sei o que fui, sei ainda o que sou. Mas tal não contribui em nada para o que serei. Um só gesto e os outros vêm ao museu onde estamos embalsamados, arrancam-nos o rótulo, não querem mais saber de nós, dizem que traímos. O que fomos? O que ainda ontem fomos? Os gestos que fizemos? Não. Não querem saber, Podem ter sido gestos da mais espantosa pureza, que em nada contribuem para que os outros nos perdoem. Pelo contrário. Esses gestos, pela sua própria beleza, mais ainda nos condenam, mais ainda nos enterram.»
Augusto Abelaira em A Cidade das Flores
4.
«Nasci e vivi num mundo de inferno. Há dezenas de anos que sofro, na minha carne e no meu espírito, o fascismo. Recebi dele perseguições de toda a ordem — físicas, económicas, profissionais, intelectuais, morais. Mas, que não as tivesse sofrido, o meu dever era combatê-lo. O fascismo é o fim da pré-história do homem. E procede, por isso, como um gangster encurralado. Fiz o que pude para me libertar, e aos outros, dele. É essa a única herança que deixo aos meus Filhos e aos meus Companheiros. Acabem a obra! Derrubem o fascismo, se nós não o pudermos fazer antes! Instaurem uma sociedade humana! Promovam o socialismo, mas promovam-no cientificamente, sem dogmatismos sectários, sem radicalismos pequeno-burgueses! Aprendam com os erros do passado. E lembrem-se de que nós, os mortos, iremos, nisso, ao vosso lado!»
Mário Sacramento em Carta-Testamento
5.
«Nesse mesmo
dia o Tinoco deu ordem à mulher-pide que não me deixasse ir à casa de banho
enquanto eu não falasse e que as minhas necessidades eram feitas ali mesmo na
frente deles e limpas com a minha roupa.
Foi-me novamente perguntado de não falava. Garantiram-me que ia ficar nua e que depois iam entrar os cavalheiros e sair as senhoras. Perante a minha negativa a pide Madalena começou aos pontapés e a bater-me enquanto me despia. Surge então um pide com uma máquina fotográfica. O Serra dava-me murros no queixo para eu levantar a cabeça. Tinha alucinações, não conseguia manter-me de pé.
Maria da Conceição Matos Abrantes
6
Diz-lhes que se resiste na cidade desfigurada por feridas de granadas e enquanto a água e os víveres escasseiam aumenta a raiva e a esperança reproduz-se.»
Egito Gonçalves em Notícias do Bloqueio
7.
Como hei-de
amar serenamente com tantos amigos na prisão.
Fernando Assis Pacheco
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