segunda-feira, 31 de julho de 2017

IRRA, QUE É DE CANSAR...



Carta de Mário-Henrique Leiria, datada de Paris 7 de Agosto de 1961, para Maria Isabel, advogada da mulher, Dietlinde, no processo de divórcio que corre os normais trâmites judiciais.
Acontece, porém, que o homem do gin se apaixonou por Maria Isabel.

Cara Maria Isabel

Por aqui, tudo a correr exactamente como previsto. Simplesmente, há dentro de mim um vazio que já não consegue ser preenchido só com as actividades de cabeça. Muito sério, muito digno o dia inteiro, afirmando e discutindo com gentes dos mais vários países, eficiente e cumprimentado, perfeito exemplo do “partisan” duro e frio, e depois…? Depois, vazio, vazio por dentro, permanentemente vazio, sem mais nada a que me agarrar, sem o direito de ter um pouco de coração (só um pouco, não peço muito) e um pouco de companhia, daquela companhia total que julguei que era a Dietlinde. Irra, que é de cansar… Até mesmo Paris já não é Paris que eu tão bem conheci. Irrita-me toda esta imitação de sociedade irreverente que, afinal, nada mais é que o reflexo de uma sociedade a desfazer-se em trampa e que sinto já não ser a minha… Nem mesmo o êxito do cabelo rapado… que foi e é um êxito, cara doutora, com grande pasmo meu! Aqui também não há nem uma tola pelada; muita barba, muita guedelha indecifrável, mas tolas sem pêlo, ainda não vi nenhuma a não ser a minha. Êxito entre os camaradas, e muito mais entre as petizas… que eu não quero, não vim para cá para êxitos, nem mesmo com petizas. Olhe, Maria Isabel, aqui, em Paris, eficiente e duro “partisan”, ainda mais sinto que, afinal, estou irremediavelmente pela minha mulher… Um sarilho, é o que lhe digo, que só se curará com o tal pêlo do mesmo cão (onde está ele’) ou então, indo para longe, para muito longe, para outro mundo e outra sociedade… e mesmo assim…
(…)
Quanto à volta, espero estar por aí a 15… Se você ainda existir em Portugal, diga-me qualquer coisa, mas não para a Regisconta, porque aí já não existo eu… graças sejam dadas aos símbolos do sétimo inferno. Se não estiver, diga-me ao voltar.
Cara Mª Isabel, quero pedir que me desculpe esse pequeno desabafo, que por aqui vai acerca de vazios e amores por esposas… Desculpe-o e esqueça-o. Eu desabafo muito raramente e só em último extremo e com “pouquíssimas pessoas… Quanto à vida diária e a quem me rodeia, prefiro continuar a preferir que me considerem o duro e cínico do costume… ainda bem.
Um abraço firme do

                                                                          Mário-Henrique 

SÓ TENHO COISAS QUE ME RALEM


No domingo 23 de Julho, acabámos a nossa viagem pela Correspondência trocada entre José Rodrigues Miguéis e José Saramago.

A juntar às viagens com livros que , por aqui, decorrem, acresce este extraordinário livro de Mário Henrique-Leiria: Depoimentos Escritos em que aparecem contos, poemas e cartas de amor.

A incidência recairá sobre as cartas de amor.

Luiz Pacheco, no seu Prazo de Validade, mostra-se agradavelmente surpreendido com este livro:

«Ora aqui está um romance! Não diz que é, mas é. È um belo romance, uma história de amor como nos tempos antigos: trágica. Sublime.»
  
 Luiz Pacheco declara que o Mário-Henrique Leiria, «além de ser uma personalidade, era também uma personagem.

Da ex-esposa alemã sabia muito vagamente, mas da paixão por Isabel nada sabia.

Como nasceram estas cartas?

Em 1955, Mário-Henrique Leiria ia para a Dinamarca mas, por engano, ficou na Alemanha e conheceu uma alemã, de seu nome  Dietlinde, por quem se apaixona perdidamente.

Casam. Mário-Henrique sonha com uma família, mas a «estimada esposa» tinha um programa quinquenal antes dos filhos. Primeiro frigorífico, máquinas de lavar e encerar, carros, seguros de vida, etc. Só depois viria a descendência. Ao fim de dois anos, a esposa alemã regressa à Alemanha, zarpa com novo amor para o Brasil, pede o divórcio.

Mas, por mor de um qualquer passe de mágica, Mário-Henrique apaixona-se, perdidamente, pela da advogada da mulher, ou ex-mulher como quiserem.

Isabel, a advogada, Mário nas cartas também a trata por Beluska e Maruska, não aguenta a barra Mário-Henrique Leiria, escolhe uma outra vida, acaba por casar com um irlandês, tem filhos e o homem do gin, sente-se um farrapo a olhar a solidão que, uma vez mais, se avoluma em seu redor, mas continuam amigos e a trocar cartas.

«Demiti-me de tudo. Estou só. Aliás. Sempre estive. Agora dizem que sou anarquista, inimigo do Estado. Talvez seja, não sei. O que eu não sou, com certeza, é oportunista.»

Ainda Luiz Pacheco:

«Restará espaço para dizer uma coisa bonita? E sincera, e com todo o respeito: nada têm de ridículo estas cartas de amor. As cartas de Amor NUNCA são ridículas. Poderemos sorrir. Isso sim. Aquela Isabelinha bonita, aconchegada com marido e filhos nas brumas de Londres, e Beluska e distante Maruska, doce como o olhar das gazelas do Volga… sai destas cartas como figura inesquecível. Mais muito mais que aquele cavalheiro francês, torpe e antipático, que podemos imaginar nas cartas da Alcoforado. Fazem o favor de conferir, que não exagero nada, lendo-as.»

domingo, 30 de julho de 2017

POSTAIS SEM SELO


O Independente sempre me acolheu, desde o nº 1, a 27 de Maio de 1988, até 18 de Março de 2001, quando outra senhora, a quem não vou chamar nada, me pôs na rua à francesa. Não gostava de filmes nem da vida.

João Bénard da Costa na Nota Inicial do 2º volume de Os Filmes da Minha Vida

Legenda: Inês Serras Lopes, a senhora que pôs João Bénard da Costa na rua à francesa, e a quem ele não chamou nada.

OLHAR AS CAPAS



Os Filmes da Minha Vida
2º volume

João Bénard da Cosat
Assírio &Alvim, Lisboa, Maio de 2007

Agradeço também a Constança Cunha e Sá e a Vasco Pulido valente, à época, respectivamente directora d’O Independente e director da revista Indy, onde os artigos saíram. Eles acolheram-me com a mesma liberalidade com que O Independente sempre me acolheu, desde o nº 1, a 27 de Maio de 1988, até 18 de Março de 2001, quando outra senhora, a quem não vou chamar nada, me pôs na rua à francesa. Não gostava de filmes nem da vida.

(Da Nota Inicial)

AS PALAVRAS ENCAIXARAM-SE NA PERFEIÇÃO


Em 1994, recebi uma chamada telefónica do Jonathan Demme, que me pediu que ponderasse escrever uma canção para um filme que ele estava a realizar, de seu título Filadélfia. O filme contava a história de um homossexual que lutava contra a SIDA ao mesmo tempo que tentava manter o seu cargo numa prestigiante firma de advocacia de Filadélfia. Montei o meu estúdio na casa de Rumson e fechei-me lá dentro durante algumas tardes com letras que escrevera, em parte, acerca da morte de um amigo próximo. O Jonathan queria abrir o filme com uma canção rock. Passei cerca de um dia a tentar encaixar as letras, mas estas pareciam resistir a serem transformadas em música rock. Comecei a brincar com o sintetizador e pus a tocar uma ligeira batida de hip-hop que programei na bateria electrónica. Assim que abrandei o ritmo até obter alguns acordes menores e básicos, as palavras encaixavam-se na perfeição e surgiu a voz que procurava. Terminei a canção em poucas horas e enviei a gravação ao Jonathan com a sensação de que não captara o necessário. Alguns dias depois, ele telefonou-me e disse-me que a adorava, e pô-la a correr sobre as imagens de Filadélfia no início do filme.

Bruce Springsteen em Born to Run

Legenda: Philadelphia, filme de Jonathan Demme


sábado, 29 de julho de 2017

OLHAR AS CAPAS


Auto da Barca do Motor Fora da Borda

Luís de Sttau Monteiro
Edições Ática, Lisboa, Maio de 1966

O ruído é agora muito intenso. Ouvem-se as palavras «pão» e «liberdade» e gritos de revolta.
Padre Contemporâneo: Que é isto?
Burguês: Vou ver. É o povo que se levantou.
Industrial de Sapataria: É por causa do corte dos salários. Eu bem dizia.
Banqueiro: Cale-se. Passe-me o telefone. Então? Para que julgam os senhores que nós lhes pagamos? Vá, depressa! Tomem as medidas que forem necessárias. Sem ordem não há progresso!

É PRECISO TRABALHAR SEMPRE


15-4-1970

Recebi duas folhas do jornal «Minas Gerais», suplemento literário do mais bem organizado que conheço – dedicadas ao João Guimarães Rosa. Cada vez mais me convenço da enorme importância, para mim, do estudo deste autor. Preciso de ler «Tutameia» e «Terceiras Histórias». E ele me ensina, para já a lição: um texto nunca está escrito definitivamente, é preciso trabalhar sempre, até que se tenha pesado palavra a palavra. Cortar sem piedade tudo o que não achar bem. As estórias de «Luuanda» precisam disso mesmo, para re-edição. Uma lição, também, se fosse necessária; endereçado a Luandino e com endereço do «Campo Trabalho» e «Tarrafal» puseram por baixo de Santiago, Minas Gerais! E o pacote foi parar a Cabo Verde – Brasil! Mão piedosa acrescentou em português «África» mas deve ter ido parar a território francês visto que emendaram para Ills du Cap Vert!

José Luandino Vieira em Papéis da Prisão

NOTÍCIAS DO CIRCO


Quando saem da política, normalmente, dizem que «vão andar por aí.»
Já quase me tinha esquecido do personagem, daquele sorrisinho apatetado, quando soube, pelos jornais, que Miguel Relvas voltou à Lusófona para fazer exames de Direito Administrativo e Teoria das Relações Internacionais. Obteve 13 numa avaliação e 16 noutra.
No Verão do ano passado, o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa declarou nula a licenciatura de Miguel Relvas alegando irregularidades nas cadeiras opcionais de Teorias Políticas Contemporâneas I e II.
Esta gente não tem qualquer noção do ridículo, da desfaçatez, do quer que seja
Sem o «Dr» é que eles não podem viver!...

sexta-feira, 28 de julho de 2017

AUTORIDADE E LIBERDADE SÃO UMA E A MESMA COISA



Autoridade é do que é autor.
Só a autoridade confere autoridade.
A autoridade não é uma quantidade.
Todo o homem é teatro de uma inexpugnável autoridade.
Aquele que jula ser possível autorizar ou desautorizar
a autoridade de outrem não sabe no que se mete

                                       *

Liberdade.
A liberdade conhece-se pelo seu fulgor.
Quatro homens livres não são mais liberdade do que
um só. Mas são mais revérbero no mesmo fulgor.
Trocar a liberdade em liberdades é a moeda corrente
do libertino.

Pode prender-se um homem e pô-lo a pão e água. Pode tirar-se-lhe o pão e não se lhe dar água. Pode-se pô-lo a morrer, pendurado, no ar, ou à dentada com cães. Mas é impossível tirar-lhe seja que parte for da liberdade que ele é.
Ser-se livre é possuir-se a capacidade de lutar contra o que nos oprime. Quanto mais perseguido, mais perigosos. Quanto mais livre mais capaz.
Do cadáver dum homem que morre livre pode sair acentuado mau cheiro – nunca sairá um escravo.


                                AUTORIDADE E LIBERDADE
                                SÃO UMA E A MESMA COISA           

Lisboa, Maio-58

                                                Mário Cesariny de Vasconcelos

SEM CONSEGUIR VER-SE LIVRE DA TRALHA


Andava a arrastar-me que nem um sem-abrigo. Tinha desaparecido uma pessoa dentro de mim e eu precisava de a encontrar. Tentei de facto em algumas ocasiões obrigá-la a aparecer. Na natureza há um remédio para todos os males e normalmente era aí que procurava. Dava por mim numa casa flutuante, uma casa móvel à deriva, na esperança de ouvir uma voz – a rastelar lentamente – de nariz erguido numa praia protectora na imensidão da noite – alces americanos, ursos, veados nas redondezas – um lobo cinzento fugidio que não andava muito longe, noites calmas de Verão a ouvir o chamamento de um mergulhão. A planear as coisas. Mas não adiantava nada. Senti-me arruinado, um destroço inútil e esgotado. Muita coisa parada na minha cabeça, um destroço inútil e esgotado. Muita coisa parada na minha cabeça e eu não conseguia ver-me livre da tralha. Onde quer que esteja, sou um trovador dos anos 60, uma relíquia do folk-rock, um forjador de palavras dos tempos idos, uma vã cabeça de estado de um sítio que ninguém conhece. Estou no poço sem fundo do esquecimento cultural. É só escolher. Não consigo ver-me livre disto. Ao sair dos bosques as pessoas vêem-me a sair. Sei no que estavam a apensar. Tenho de encarar as coisas pelo que elas valem.

Bob Dylan em Crónicas

quinta-feira, 27 de julho de 2017

POSTAIS SEM SELO


É preciso que a gente sofra para que o leitor tenha alegria.

José Cardoso Pires

Legenda: pintura de Otar Imerlishvili

OLHAR AS CAPAS


Donamorta

Armando Silva Carvalho
Capa: Manuel Rosa
Assírio &Alvim, Lisboa, Abril 1984

Agora estava Gregório em posição de espera. Com a sua maleta na mão. Molhava o pastelinho de nata no café e a coisa era click saltava-lhe à cabeça a Madalena do liceu, a arguta e epistolar namorada que lhe enviava em férias verdadeiros tratados de moral, sentenças cicerianas que ele digeria junto ao Correio da aldeia com a sofreguidão aflita dum soldado em África colonialista. Foi num assalto carnavalesco que Madalena lhe ofereceu uma dúzia de pastéis de nata, a paixão doceira que Gregório alimentava na altura.
Madalena era baixa, filha dum escriturário da CUF e duma modista semiaposentada que ele nunca chegou a conhecer. Dançava bem o tango e iniciava Gregório nos primeiros passos do rock com a paciência obstinada duma professora de ballet com escola própria. Usava aqueles vestidos de cortinas que lhe caíam até ao meio da perna. E para disfarçar o cheiro dos sovacos encharcava-se em colónias que faziam espirrar Gregório sobre os seus braços roliços.
Nessa altura começavam os Beatles a criar a sua própria filosofia e a fazerem rodar o conceito de amor a Dennis de Rougemont sobre as espiras dum acetato de quarente e cinco rotações. Os Platters choravam como crias esfaimadas o Only You. E Madalena, sempre sentenciosa, lia a Mansfield mas recusava-se a conhecer a Beauvoir. Isto por causa da mãe que era católica a amante dum jornalista conhecido que fazia crónicas patrióticas no Diário de Notícias da época. Havia nesse tempo um entretém preparatório da Guerra. O Angola é Nossa era ainda um hino suportável, mesmo aos ouvidos dos esquerdas. E até os clandestinos não abordavam o tema de forma prioritária.

SARAMAGUEANDO


Francisco Geraldes, jovem jogador do Sporting, que no banco de suplentes lê José Saramago, sem lugar na equipa de Jorge Jesus, foi emprestado ao Rio Ave que, para apresentação do jogador, prescindiu daquelas fotografias chapa 5 e publicou no site do clube a imagem que acima se vê.
A inteligência é sempre um prazer!

UMA MEDONHA SOLIDÃO...


Carta de Jorge de Sena, datada de 18 de Janeiro de 1971, para Eugénio de Andrade:

Quando a não encontrares sentido na vida, meu caro… Cada vez mais, com igual desespero, vou achando que o não tem; e que, se algum o pudesse ter, a humanidade, em grande ou quotidianamente, trata de lho roubar. É isso também a crise de cruzarem-se os cinquenta anos, quando a nossa e a alheia juventude nos começa a passar ao lado – e antes, era mais fácil supor sentidos, ou não parar a pensar neles. Uma medonha solidão, uma impaciência mesmo com os íntimos cuja intimidade se perdeu no tempo, e, sobretudo, a sensação de que tudo foi ou é inútil e não vale a pena nem o trabalho e não há como as relações humanas ou como a solidão para darem trabalho, e do pior, à gente. E, no entanto, é dessas relações que temos sede e fome.


Legenda: Jorge de Sena e Eugénio de Andrade

quarta-feira, 26 de julho de 2017

COM O SAL BRUXO NAS SOMBRAS


27 de Agosto de 1969

O café do Sr, Cunha fechou – disse-me o Mário Dionísio a quem visitei em Cascais.
Outro!
Café por onde passa o nosso grupo, já se sabe, fecha.
Trazemos o sal bruxo nas sombras.
Nos últimos tempos, que me recorde, lancámos a maldição aos seguintes recintos onde nos reuníamos: Café Chiado, Martinho, Bocage, A Cubana, e, por fim, «a do Sr. Cunha».
Pergunta lancinante do Mário:
- E agora?

José Gomes Ferreira em Livro das Insónias Sem Mestre VIII volume dos Dias Comuns.


Legenda: Brasileira do Chiado, desenho de Bernardo Marques. Da esquerda para a direita, de cima para baixo: Carlos Botelho, Ofélia Marques, o criado João franco, Sarah Afonso, José Gomes Ferreira, Bernardo Marques e José Bacelar.
«... meus filhos não nada a fazer... Isto é um país de merda!

OLHAR AS CAPAS


A Chave de Vidro

Dashiell Hammett
Tradução: Sílvia Mendes Cajada
Capa: Cândido Costa Pinto
Colecção Vampiro nº 47
Livros do Brasil, Lisboa s/d

Ned Beaumont fechou a porta-
- Empreste-me algum dinheiro – Pediu
Madvig tirou uma grande carteira parda do bolso interno do casaco.
- Quanto é que você quer?
- Duzentos.
Madvig estendeu-lhe uma nota de cem dólares e mais cinco de vinte.
- Dados? – perguntou.
- Obrigado.
Ned Beaumont enfiou o dinheiro no bolso.
- Sim.
- Há muito que você não ganha, não é verdade? – indagou Madvig devolvendo as mãos aos bolsos das calças
- Nem tanto… um mês, ou mês e meio.
Madvig sorriu.
- Para perder já é bastante.
- Não para mim.
Havia uma leve irritação na voz de Ned Beaumont.
Madvig fazia tilintar moedas no bolso.
- Jogo forte, esta noite?
Ele sentou-se num canto da mesa a abaixou os olhos para os sapatos castanhos, lustrosos.
Ned Beaumont fitou os olhos curiosos no homem loiro, depois sacudiu a cabeça.
- Fraquinho – respondeu.
Dirigiu-se para a janela. Por cima dos prédios do aldo oposto da rua, o céu estava negro e pesado. Ned Beaumomt foi até ao telefone atrás de Madvig e pediu um número.
- Allô, Bernie. É Ned quem fala. Quanto é que Peggy O’Toole está a pagar?... Só isso?... Bem, dê-me quinhentos de cada… Certo… Aposto que vai chover, e se isso se der, ela venverá Incinerator… Está bem, nesse caso, pague mais… Óptimo.
Desligou o telefone, deu uma volta e postou-se novamente diante de Madvig.
- Por que não para de jogar por algum tempo, enquanto está a perder dessa maneira? – perguntou ele.
Ned Beaumont carregou o sobrolho.
- Não vale a pena; só serve para aumentar o azar. Eu devia ter jogado os mil e quinhentos dólares de uma vez, em lugar de os esparramar na mesa. Bem poderia aceitar o seu conselho e parar.
Madig riu-se e ergueu a cabeça.
- Se você for capaz de resistir à tentação – disse.
Ned Beaumont deixou cair os cantos da boca e as pontas do bigode acompanhando-lhes o movimento.
- Sou capaz de resistir a udo o que tiver de resistir – disse enveredando para a porta. Tinha a mão na maçaneta quando Madvig falou.
- Nesse ponto acredito que possa, Ned – disse com sinceridade.
- Possa o quê? – perguntou Ned Beaumont voltando-se mal humorado.
Madvig passou a olhar para a janela.
- Possa resistir a tudo.

terça-feira, 25 de julho de 2017

CANÇÕES DE ENTARDECERES


O Sol hoje pôs-se às 20,52 horas.
A fotografia foi tirada às 21,35 horas.
O regresso aos entardeceres.
Mário-Henrique Leiria nos seus Contos do Gin-Tonic:
«… encostou-se no parapeito da janela aberta e ficou a olhar o entardecer discreto e melancólico.»
Também o regresso das canções.
A escolha foi cair em Nature Boy, e percorrendo as dezenas e dezenas de versões, a escolheu recaiu nas interpretações de Ella Fitzgerald, Full Flava and Hagel Fernandez e Ney Matogrosso.



NEM SEI COMO APRENDI A GOSTAR DE LER


Parece-me que já apareceram «Texas-Jacks» (na segunda-feira vou inspecionar e ver o que não está bem…). Ora a lei condena o «Texas-Jack», talvez com razão. Mas eu não tenho coragem e só se o nosso metodólogo de todo em todo o desaconselhar, é que darei ao «Texas-Jack» ordem de despejo. É que o «Texas Jack» é dos melhores amigos da minha infância. Aprendi a ler no «Texas-Jack»; comecei a formar uma biblioteca no «Texas Jack»; não comecei a fumar por causa do «Texas-Jack»
(…)
Quando vejo pendurados à porta de certas papelarias, os «Texas-Jacks» da minha infância, sinto uma ternura imensa. Uma ternura que é por eles e por mim. Uma ternura que eu ofenderia se dissesse na aula: «Proibido o Texas-Jack». E que a lei me perdoe…
Olho para o passado e vejo a Gramática. A Gramática. A Gramática.
Eu nem sei como aprendi a gostar de ler.

Sebastião da Gama em Diário

Legenda:  capa de um fascículo do «Texas Jack» encontrado em «Custo Justo».

QUOTIDIANOS


O maquinista vê alguém pronto para se suicidar.
Acciona os travões de emergência e resta-lhe esperar, envolvido em perplexidade, impotência e angústia.
Sabe da pancada frontal, os rodados a passar por cima do corpo.
Segundos que ficam registados para toda uma vida.
Depois do acidente, a longa espera pelas formalidades e depois o voltar a conduzir, em situação traumática, o comboio ao seu destino.
Entre 2006 e 2015, 801 pessoas foram colhidas por comboios. 402 foram suicídios, os restantes aconteceram em passagens de nível ou em atravessamentos de linha em locais onde não são permitidos.
Soube-se agora que os maquinistas da CP pedem ajuda para enfrentar mortes na linha.

segunda-feira, 24 de julho de 2017

POSTAIS SEM SELO


A música é talvez a última companhia dos solitários.

Mário Henrique-Leiria em Depoimentos Escritos

Legenda: Joan Crawford e Sterling Hayden num fotograma de Johnny Guitar

PASSOU A BATER COM A PORTA


Na base de toda esta organização está o dinheiro. O homem e a mulher têm que comer, têm que se vestir, pagar os combustíveis, a água, a luz, o telefone, a renda da casa, etc., o que obriga, ou obrigava, a que a questão do casamento só se pusesse quando o homem tivesse emprego e nele ganhasse o suficiente. Digo o homem e não a mulher porque naquele tempo as mulheres, em regra geral não eram empregadas. (Quando passaram a estar empregadas, o que, em grande escala, se processou durante a minha vigência neste mundo, o casamento entrou imediatamente em crise. A mulher passou a poder sair de casa e a bater com a porta sempre que as relações com o homem se turvavam, porque alcançara a independência económica, o que permite afirmar que, em grande parte, o casamento é um problema económico. Aliás num passado mais distante, a consumação do casamento dependia declaradamente, sem pejo nem rodeios, dos interesses económicos das famílias dos cônjuges.)

Rómulo de Carvalho em Memórias

Legenda: imagem Shorpy

OLHAR AS CAPAS


Sem Tecto Entre Ruínas

Augusto Abelaira
Capa: Manuel Dias
Livraria Bertrand, Lisboa, Fevereiro de 1979

Havia ali jornais expostos numa banca e então li, já não me recordo das palavras exactas: «O presidente do Conselho Português, doutor Oliveira Salazar, gravemente doente.»
Durante anos procurei imaginar este dia, adivinhar todas as reacções, as minhas e as dos outros, mas a notícia agora não me causava nem sombra de emoção. Sim, toda a minha vida sonhara com aquele momento, mas hoje… Como o brinquedo, depois de ganho perde o interesse.
Li a notícia quase indiferente, emocionado apenas por não sentir emoção. Ou isto: com o desaparecimento do Salazar era uma época da minha vida que morria. Compreendes? Afinal o Salazar fizera parte da minha vida, da infância, da adolescência, da minha maturidade… Um ponto de referência permanente, já um pouco de mim, algo que nunca poderia ser dissociado, quem sabe?, dos mais belos anos da minha vida! O tempo perdido, o que não volta! Era eu, o tempo do entusiasmo, do MUD Juvenil. Dolorosamente, mas vivo.
- Que vai acontecer? – dizes. – Que nos reserva o Marcelo?

DE FAZER CORAR O MAIS LIBERAL DOS FUNDAMENTALISTAS



O meu sobrinho Luís contou-me este Verão uma história deliciosa, daquelas de fazer corar o mais liberal fundamentalista. Um amigo dele (vinte anos e picos) deu cabo de alguns ossos num desastrado salto à vara. Levado para o hospital, o médico que lhe viu os primeiros raios X fez cara de poucos amigos. Mandou preparar o bloco operatório e murmurou entre dentes qualquer coisa como: «Só a mim é que me calham destas», sendo que o pronome demonstrava claramente uma fractura arrevesada.
Depois virou-se para o lesionado e perguntou-lhe sibilino: «Não fuma, pois não?» «Nunca fumei um cigarro na vida, Senhor Dr., respondeu, em auto-estima, o jovem atleta. «Já calculava», grunhiu o médico, enquanto a maca atravessava a enfermaria no seu inexorável caminho para o teatro de operações. «Também não bebe, pois não?», tornou o clínico, com um tom de voz crescentemente áspero. «É muito raro», disse o jovem, «algumas festas, alguns dias de anos». «Pois, pois. Do que gosta mesmo é de desporto, ar livre e musculação, não é?», interrogou o médico agora quase ríspido. Aflito com dores, mas controlando-se bem, o padecente sorriu com enlevo e confirmou a nobre paixão pelo desporto a que se consagrava todos os fins-de-semana.
Foi aí que o clínico explodiu. Apontando-lhe as camas cheias de corpos envolvidos em ligaduras, com braços e pernas suspensos de arames, disse-lhe mal dominando a voz: «Não fuma, não bebe e faz desporto. Corpo são em mente sã, não é? Pois olhe bem esses que estão todos aí. Também não fumavam nem bebiam e só praticavam desporto todos os santos fins-de-semana. Olhe bem para eles e continue. Saltos aparatosos, nada de cigarros, nada de álcool!...». 
À entrada da sala de operações, ainda foi mais explícito: «Fumem, bebam, mas não me caiam para aí todos os dias com essa maldita mania do desporto, que enche mil vezes mais os hospitais do que o tabaco ou os copos!»

João Bénard da Costa em Crónicas: Imagens Proféticas e Outras, 2º volume.

RECADOS


Contracapa de Solidão II de Irene Lisboa.

domingo, 23 de julho de 2017

OLHAR AS CAPAS


Vinte e Cinco Poemas à Hora Do Almoço

Frank O’Hara
Selecção tradução, prefácio: José Alberto de Oliveira
Colecçaõ Documenta Poética nº 27
Assírio &Alvim, Lisboa, Março de 1995


Por que eu não sou pintor

Eu não sou pintor, sou poeta.
Porquê? Penso que preferia ser
um pintor, mas não sou. Bom,

Mike Goldberg, por exemplo
está a iniciar um quadro. Eu apareço.
«Senta-te e toma uma bebida» diz
ele. Eu bebo; nós bebemos. Reparo
Tu tens SARDINHAS aí.»
«Sim, eu precisava de qualquer coisa ali.»
«Oh». Eu saio e os dias passam
e eu apareço de novo. O quadro
avança, e eu saio, e os dias
passam. Eu apareço. O quadro
está terminado. «Onde estão as SARDINHAS?”
O que resta são apenas
letras. «Era demasiado», diz Mike.

E eu? Um dia estou a pensar numa
cor: laranja. Escrevo uma linha
acerca de laranja. Em breve é uma
página que está cheia, não de linhas, de palavras.
Depois outra página. Deveria haver
muitíssimo mais, não laranja,
Palavras, como é terrível o laranja
E a vida. Os dias passam. Acontece ser
Em prosa, sou um verdadeiro poeta. O meu poema
Está terminado e ainda nem sequer mencionei
O laranja. São doze poemas, chamo-lhes
LARANJAS. E um dia numa galeria
Vejo o quadro de Mike, chamado SARDINHAS.

SARAMAGUEANDO




Se no dia em que sair daqui sair não tiver ainda (já) outro emptrego, começo o ano da estaca zero, completamente desprovido. Mas continuo a ter uma grande consideração por mim mesmo.

Miguéis por baixo deste parágrafo escreveu a seguinte nota:

Bravo! eu Saramago.

Não espantam estas palavras de José Saramago.

Uma integridade, outras coisas mais, agarrada, toda uma vida, à teima dos ossos.

«Que nos importa morrer se não morrermos de rastros?»

Versos de Cantiga de Ódio de Carlos de Oliveira.

«Posso morrer de fome mas não peço esmola.»

 «Só sei que “para vivir de rodillas vale más morir de pie.»

Palavras de Mário Henrique Leiria em Depoimentos Escritos.

Foi a coragem, outras coisas mais que, em 1975, face ao despedimento do Diário de Notícias, à recusa dos seus pares e camaradas de Partido em que integrasse a equipa de O Diário, que o levou a viver de traduções, de colaborações várias, de arrancar para o Alentejo e do chão levantar um livro que o levaria, anos passados, ao Prémio Nobel da Literatura.

Apenas se conhece a versão de José Saramago sobre a sua substituição, por Natália Correia, à frente da direcção literária da editora Estúdios Cor.

Natália Correia, o que lhe sobrava em talento poético, escasseava-lhe em outros predicados que definem as pessoas.

Uma lindíssima mulher, segundo opinião corrente e variada, mas de uma vaidade cega que a conduzia a becos sem saída.

Luiz Pacheco numa das suas muitas entrevistas-descasca-pessegueiro, chama-lhe
 «degenerasda», e conta a história de que, numa das suas estadias na prisão do Limoeiro, Natália Correia teve lá em casa a mulher de Pacheco mais um filho pequeno, mas tentou assediar a rapariga, Pacheco  avança uns pormenores escabrosos e remata que, quando saiu da prisão, «esclareceu o assunto com a Natália».

Natália Correia não teve qualquer pejo em substituir José Saramago.

O contrário, certamente, não aconteceria.

Não são conhecidas as razões por que o fez mas, provavelmente, não andarão longe de motivos fúteis a roçar lampejos de inveja, porque de dinheiro não precisava Natália para viver dado que, ainda segundo Pacheco, «só «arranjava amantes velhos com massa.»


Legenda: contracapa da Correspondência entre José Rodrigues Miguéis e José Saramago.

NO MEU DESCONSOLO E DESÂNIMO...


Finalizamos hoje o percurso por alguma da correspondência trocada entre José Rodrigues Miguéis e José Saramago.

A última carta do livro pertence a José Rodrigues Miguéis, datada de 12 de Novembro de 1971, e enviada, depois da sua saída da Estúdios Cor, para a morada particular de Saramago:

Querido Saramago

Recebi a sua carta de 8, e lamento o que se passa consigo. Ofereço-lhe toda a minha simpatia. A sua situação preocupa-me há muito, e como sabe, sempre atribuí a falta de informações e de resposta às minhas perguntas e propostas à confusão reinante na casa. O nosso prometido «diálogo» terá morrido antes de nascer? Ou passa a ser monólogo (meu)? Suponho agora que, até à sua saída, não terá mais nada a dizer-me em nome da firma? Esperarei que ELES (ou ela?) se pronunciem.
Entretanto, ocorreu-me propor-lhe uma coisa que talvez pudesse contribuir modestamente para minorara as suas dificuldades futuras: mas não ouso fazê-lo porque já um dia Você se recusou a ser meu «director espiritual» ou «conselheiro literário»… Lembra-se? Refiro-me à possibilidade de publicar, fora da firma, alguns livros meus, como o Espelho Poliédrico, artigos e ensaios, Capelas Imperfeitas, etc., - de que lhe tenho falado nas últimas cartas. Não creio que a COR se interesse por isso, e eu reservar-lhes-ia a ficção pura e simples. Agradar-lhe-ia a ideia? Que fica, por ora, um segredo entre nós.
Continua n’ A Capital? O Rogério escreveu-me muito simpaticamente, mas nada me diz a seu respeito.
A minha saúde na mesma. A vista melhorou um pouco, depois da hemorragia da retina esquerda há dois meses. Faz amanhã, 13, um ano, que tive o primeiro cardíaco alarmante: em plena rua, acabava de remeter-lhe as prosas do Nikolai – livro aziago!
Diga-me o que puder, quando puder. E perdoe-me o laconismo. No meu desconsolo e desânimo, só a si tenho escrito e a muito poucos. Vou fazer 70 anos dentro de três semanas! Quando lá chegar saberá o que isso é…
Abraça-o o amigo certo e grato


                                                                                                    Miguéis

sábado, 22 de julho de 2017

POSTAIS SEM SELO


Cantar é empurrar o tempo ao encontro das cidades futuras fique embora mais breve a nossa vida.

Carlos de Oliveira em TrabalhoPoético 1º Volume

OLHAR AS CAPAS


Relâmpago

Nº 11
Número dedicado a Carlos de Oliveira
Colaborações:
José Ricardo Nunes, Manuel Gusmão, Pedro Eiras, Rosa Maria Martelo, Armando Silva carvalho, Augusto Abelaira, Eduarda Dionísio, Eduardo Prado Coelho, Fernando Lopes, Fernando Pinto do Amaral, Gastão Cruz, José Manuel Mendes, Margarida Gil, Nuno Júdice, Urbano Tavares Rodrigues
Capa: Nuno Marques Mendes
Assírio Alvim, Lisboa, Outubro de 2002

De súbito, o Carlos de Oliveira pediu-me:
- Você por acaso tem aí um lápis?
Aquele “por acaso” impressionou-me, era indicativo de que, para ele, só por acidente um escritor usaria lápis (então eu ainda não publicara nenhum livro). E fui perguntando:
- Você esqueceu-se?
Para meu espanto, revelou-me que nunca, por nunca ser, trazia um lápis (ou caneta) na algibeira. O seu lápis era a memória, construía as poesias “na cabeça”. Alinhava e desalinhava as palavras na memória durante o dia, durante as horas do dia, e quando chegava a casa, era somente escrevê-las. Somente? Escrevê-las, reescrevê-las, quem conhece o Carlos sabe como é.
Então, com o lápis, para depois a Ângela as passar à máquina. Quantas vezes?

(Do texto de Augusto Abelaira)

NÃO SOMOS NÓS QUE DECIDIMOS


Nunca controlamos completamente a curvatura da nossa carreira. Os acontecimentos históricos e culturais criam uma oportunidade, determinada canção vem-nos parar às mãos e abre-se uma janela para o impacto, a comunicação, o sucesso, a expansão da nossa visão musical. Pode fechar-se de imediato para nunca se reabrir. Não somos nós que decidimos quando chegou o nosso tempo. Podemos ter trabalhado arduamente, honestamente, visando – de forma consciente ou inconsciente – uma certa posição, mas nunca sabemos mesmo se o nosso «grande» momento vai chegar. E de repente… ele aí está.

Bruce Springsteen em Born to Run

sexta-feira, 21 de julho de 2017

OLHAR AS CAPAS


Carlos de Oliveira: A Parte Submersa do Iceberg
Exposição

Curadoria; Osvaldo Silvestre
Edição Museu do Neo-Realismo e Câmara Municipal de Vila Franca de Xira
Vila Franca de Xira, Março de 2017

Carlos de Oliveira escreveu pouco; no entanto, tudo o que escreveu está impregnado de uma intensidade admirável, deixando-nos uma obra relativamente curta mas profundamente coesa, composta por vários objectos literários que, todos eles, contêm em si imensos mundos por explorar.

Do catálogo

A PARTE SUBMERSA DO ICEBERG


Até 29 de Outubro, podem ver no Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira, a exposição «Carlos de Oliveira: a parte submersa do iceberg».

O título da exposição, com curadoria de Osvaldo Manuel Silvestre, provém de um texto de Carlos de Oliveira incluído no volume O aprendiz deFeiticeiro. Nesse texto, o autor fala de tudo aquilo que a falta de liberdade, durante o salazarismo, o inibiu de viver e de escrever.

Durante a visita à exposição, pode ver-se o filme que Margarida Gil dedicou a Carlos de oliveira, intitulado «Sobre o lado esquerdo» e ouvir-se poemas de Carlos de Oliveira ditos por Maria Barroso.

Legenda: página do texto «O Iceberg» em O Aprendiz deFeiticeiro, Publicações Dom Quixote, Março de 1971

E COMO DÓI!


29-8-68

Leio a notícia da invasão da Checoslováquia pela URSS etc. Não posso aceitar é impossível aceitar que isso se coadune com uma política marxista! E como dói! Merda!Não escrevo mais nada.

José Luandino Vieira em Papéis da Prisão

quinta-feira, 20 de julho de 2017

RECADOS


Na caixa de comentários de Horas Extraordinárias, o blogue de Maria do Rosário Pedreira, encontrei esta referência a um extraordinário livro de Leon Tolstoi:

«Uma pequena novela mas um dos livros da minha vida: A Morte de Ivan Ilitch, de Tolstoi. Pode tornar-se longo porque apetece lê-lo muitas vezes.»

Sim, um livro que apetece ler muitas vezes.

O VELHO ESTAVA DE REGRESSO


O disco em que andávamos a trabalhar acabou mesmo por se chamar New Morning (o título de uma das canções que eu compusera para a peça do MacLeish) e acabou por ter uma fotografia minha e da Vickie. O disco de doze canções foi lançado e a onda de notícias começou a aparecer. Alguns críticos acharam que o álbum não tinha vitalidade e era sentimental, pobre de espírito. Pois sim. Outros cantaram glórias dizendo que o «velho» estava finalmente de regresso. Já era tempo. Isso também não queria dizer grande coisa. Tomei tudo como um bom sinal. Para ser exacto, o álbum em si mesmo não tinha ressonância específica com as algemas e cadeados que andavam a acorrentar o país, nada que ameaçasse o status quo. Tudo isto deu naquilo a que os críticos mais tarde chamariam o meu «período intermédio» e em muitos campos, este disco foi referido como o álbum de regresso – e foi. Seria o primeiro de muitos.

Bob Dylan em Crónicas

OLHAR AS CAPAS


Balada da Praia dos Cães

José Cardoso Pires
Capa. João Segurado
Edições «O Jornal», Lisboa, Novembro de 1982

Meia noite e meia. À saída do Condes, um Volkswagen da PSP à porta do Arcádia para despejar o capitão Maia Loureiro em sobretudo pêlo de camelo. Aquele de dia passeia-se pela cidade a comandar o trânsito com cara de mau e à noite esconde-se nas putas com cara pior. Lá mais para o espairecer vão chegar os Manos Tropelias que são condes de torre, cavalo e xeque-mate, e vai ser champanhe até vir o Dom Sebastião a cavalo marroquino. Andante, andante que um chefe de brigada contenta-se com chazinho para a sossega e já não vai nada mal.
O chá na Cervejaria Ribadouro; Isto não é uma cervejaria, é uma baía de cascas de tremoços com canecas à deriva. Chulos do Parque Mayer a atacarem o fastio na perna da boa santola, chauffeurs de praça a combinarem a sua bandeirada de jogo num casino clandestino para os lados de Arroios ou para Campolide que são bancas de entendidos por ode a polícia faz que não vê, Um galador de coristas a puxar fumaças à distância. A dona Lurdes, abortadeira. Mestres-de-obras a arrotar. Oh, senhores
Entre tanto desmazelo um chá e uma boa torrada sempre são outro asseio. Indispensáveis depois dum tecnicolor imperial, com czares e balalaicas e raspustines à bardalonga. Primeiros golos com o pão ensopado. Duas ou três frases da valsa do Tchaikovsky recordadas entre dentes.
Aí pelo meio da torrada chega o pintor Arnaldo que anda a cumprir a penitência de noivo da esfinge, aviando versos sociais ao domicílio. Faltava este. Não entra sequer: do alto do seu bem apessoado, luva e carnet na mão, declama a rima à porta e desanda. A nessa dos mestres-de-obras olha em redor a ver se percebe; pelo sim pelo não consulta mais umas lagostas.

quarta-feira, 19 de julho de 2017

POSTAIS SEM SELO


Sabemos quem somos mas não quem podemos ser.


William Shakespeare

À CONVERSA


Luís Miguel Cintra para José Tolentino Mendonça:

Olha, no final da missa, quando dizes “ide em paz e que o Senhor vos acompanhe” devias antes dizer “ide em paz mesmo que ninguém vos acompanhe.”

Comentário de Tolentino Mendonça:

Pode parecer um paradoxo, mas a oração torna-se mais vital quando tocamos o silêncio de Deus, quando os nossos pés tocam a orla da sua ausência.

NOTÍCIAS DO CIRCO


O TEMPO QUE SE ME ESCAPA


Carta de Jorge de Sena, datada de 30 de Março de 1970, para Eugénio de Andrade:

Parece-me que uma das manifestações da minha inquietação do meu cansaço, como do horror da vastidão de trabalho à minha frente para já (duas teses de doutoramento, dirigidas por mim, para ler, as provas das Líricas-terceira série, que começam a chegar, artigos para o dicionário do Cochofel, a edição dos «poemas ingleses» do Pessoa, a antologia do Pascoaes, a minha antologia pessoal, etc. para não falarmos do medonho índice de nomes do meu próximo volume camoniano… e da conclusão dos meus estudos de Ocidente, e do estudo a teu respeito), é este fugir para a companhia dos poetas de todos os tempos e lugares, que, descontando alguns amigos, são quem eu sinto mais intimamente à minha volta. O que, com o muito que sempre fui traduzindo nas horas vagas e não vagas, ou mentalmente eu traduzia no recordar de poemas que me fizeram sempre companhia, faz o volume correr o risco de inchar desmesuradamente… Sempre tudo faço na angústia de que o tempo se me escapa para o fazer, e não acaba o que quero fazer.


OLHAR AS CAPAS


A Minha Arma Não Perdoa

Mickey Spillane
Tradução: Ersílio Cardoso
Colecção Vampiro nº 89
Livros do Brasil, Lisboa s/d

- Ouve, minha filha – disse eu – tu não me conheces muito bem, mas há quem me conheça. Eles poderão medo aos cidadãos pacíficos, mas quando me virem aparecer, são eles que têm medo. Eles conhecem-me, sabes? Sabem muito bem que, para mim, as vidas deles não contam. Tenho uma arma e tenho-me servido dela… muitas vezes. Tenho uma licença, coisa que eles não têm e, se matar alguém, vou ao tribunal e explico porquê. Posso perder o emprego. Mas se eles puxarem o gatilho, vão parar à cadeira eléctrica. Eu gosto de matar esses filhos da mãe e faço-o sempre que tenho oportunidade. Eles sabem-no bem e é por isso que t~em medo de mim.

terça-feira, 18 de julho de 2017

POSTAIS SEM SELO


Ler? Já não leio muito, se não é sobre o mar, de quem sou cada vez amigo mais íntimo.

DO BAÚ DOS POSTAIS


Postal enviado de Szczecin, cidade polaca, pela Angelika e o Hans-Martin.

A CULPA FOI DA YOKO


Nunca gostei da pequena e sempre tive a impressão que terá sido Ioko Ono quem profundamente ajudou ao fim dos rapazes de Liverpool.

É certo que eles estavam ricos, cansados, enjoados de tanta gritaria, mas ela deu uma grande ajuda.

No dia 18 de Junho Paul McCartney fez 75 anos.

Sobre a efeméride, João Gobern escreveu um artigo no Diário de Notícias e finaliza-o lembrando um episódio que ele diz ser «pouco conhecido»: quando os Beatles se separaram, Paul proferiu a frase: « a culpa foi da Yoko».

Contudo, João Gobern lembrava ter sido Paul McCartney quem apresentou a japonesa a John Lennon.

Donde, mesmo que de forma involuntária, o verdadeiro «culpado»… terá sido  James Paul McCartney.

Recentemente, após uma reunião da National Music Publishers Association, organização que representa as editoras musicais, o seu diretor executivo, David Israelite, exibiu um vídeo de 1980 em que, Lennon argumenta que Yoko deveria ser considerada coautora de Imagine.

«A canção deveria ser reconhecida como uma faixa Lennon-Ono porque muito dela, a letra e o conceito, vieram da Yoko. Mas, naquela época, eu era egoísta, muito «macho», e daí ter omitido a sua contribuição para a canção.»

A «brincadeira» permite que a pequena, com esta decisão, consiga que só 70 anos após a sua morte, Imagine caia no domínio público.

O SALAZAR QUE RI


24 de Agosto de 1969

Um camponês alentejano, depois de ver o Marcello na inauguração duma barragem, sempre com os óculos a sorrirem:
- Este Salazar é mais simpático do que o outro. É o Salazar que ri.

José Gomes Ferreira em Livro das Insónias Sem Mestre VIII volume dos Dias Comuns.

OLHAR AS CAPAS


Amor, Só Amor, Tudo Amor

Alexandre Pinheiro Torres
Capa: José Serrão
Editorial Caminho, Lisboa, Março de 1999

O vento, gélido e duro como a beira de um sino, torturava as janelas. Lá dentro. No quarto as vidraças escorriam. Aposento pequeno, onde só poderia haver como fonte de aquecimento o bafo de quem lá respirasse.
Na fachada da pensão, a dona anunciava ar condicionado na esperança de atrair turistas na época baixa. Sempre se estava ali quase em cima do mar. As vistas bastariam como compensação: o caldeirão das ondas de um Atlântico desgrenhado por aquele vento, sem pente que lhe alisasse o cabelo. Quase fim de Abril. A época não era baixa, mas baixíssima. Turistas, o que a D. Joana Bilhau sabia. Um desastre. Dias e dias sem uma cama ocupada. Era pôr lâmpadas de pequena voltagem, quase lamparinas, não ligar o ar condicionado, tudo era lucro. Cada um que se aquecesse.
E a eterna desculpa dela, os electricistas não vêm, passo a vida a telefonar para Óbidos, no Baleal não há ninguém que conserte nada, e eu que sofra com a desdita dos meus queridos hóspedes.
Sim, ela sofria! E de que maneira! Metia-se no seu pequeno quarto, ao rés-do-chão, punha o aquecedor eléctrico no máximo, a olhar as paradas militares na televisão, os heróis a partir para África, os jogos do Benfica, teatradas, escritores de cachimbo. O Eusébio deixara de jogar. Ali, viúva, a arredondar a reforma do marido, mecânico de submarinos, a morrer, o bandido, de uma facada num bar de Tânger, cheio de putas. Mas, morrer num bar de putas sempre tinha o seu chique. E tanto insistiu no chique que passou a ser conhecida pela mulher submarina.

segunda-feira, 17 de julho de 2017

POSTAIS SEM SELO


O que custa ma literatura é que só tarde demais se sabe se valeu a pena.

 Luís de Sttau Monteiro.

O SEGREDO É AMAR


O Poeta beija tudo, graças a Deus… E aprende com as coisas a sua lição de sinceridade… E diz assim: «É preciso saber olhar…» E pode ser, em qualquer idade, ingénuo como as crianças, entusiasta como os adolescentes e profundo como os homens feitos… E levanta uma pedra escura e áspera para mostrar uma flor que está por detrás… E perde tempo (ganha tempo…) a namorar uma ovelha… E comove-se com coisas de nada: um pássaro que canta, uma mulher bonita que passou, uma menina que lhe sorriu, um pai que olhou desvanecido para o filho pequenino, um bocadinho de Sol depois de um dia chuvoso… E acha que tudo é importante… E pega no braço dos homens que estavam tristes e vai passear com eles para o jardim… E escreveu uns versos que começam desta maneira: «O segredo é Amar…».
(…)
A gente tem vergonha de beijar tudo, de amar as flores, de se enternecer com os animais, de dar um passeio. Se beija uma árvore, é parvo; se traz uma flor na mão, é maricas; se se enternece, é fraco; se acaricia uma menina, põe nessa carícia o sexo; se vai a qualquer parte para passear e ver o mundo, faz constar que foi em viagem de estudo ou em viagem de negócios. Temos vergonha de ser sinceros, de que nos creiam parvos, ou maricas, ou fracos, ou lúbrico, ou estroinas. E então perdemos o melhor da nossa vida a ludibriar os outros e a insultar as nossas intenções mais belas e generosas.

Sebastião da Gama em Diário

OLHAR AS CAPAS


(Este) Rosto

Fiama Hasse Pais Brandão
Iniciativas Editoriais, Lisboa, 1970

(O Sino)

Perde-se o verão, já crescem
à beira de ervas muros
ciprestes as faixas verdes
secas os abetos.

Pelas paisagens entra-se na fala:
nomeio os pastos térreos
as campas vivas (o cemitério longe
é o real) tonalidades
da tarde os vários bandos
velos de lã (rebanhos
nesses campos são reais).

Antes do tempo perde-se esse tempo
- o pensamento vive
que o destrói – secam os fenos
o sino irrompe (tange o seu fim
o tempo a realidade).

domingo, 16 de julho de 2017

POSTAIS SEM SELO


Deste-me a linguagem onde morar.