domingo, 2 de julho de 2017

SARAMAGUEANDO


Há uma frase de Jorge Listopad:

As minhas bibliotecas foram-se fazendo e desfazendo com casamentos, divórcios, separações…

José Saramago fala de livros e divórcios no 1º Volume dos Cadernos de Lanzarote:

Na Feira aparece uma pessoa a comprar todos os meus livros. Põe-nos todos diante de mim para que os autografe, os grossos e os finos, os caros e os baratos, trinta e tal contos de papel, conforme vim a saber depois, e o que me desconcerta é que o homem não é um convertido recente ao “saramaguismo, um adepto de fresca data, um neófito disposto às mais loucas ousadias, pelo contrário, fala do que de mim leu com à vontade e discernimento. Resolvo-me a perguntar-lhe a razão da ruinosa compra, e ele responde simplesmente, com um sorriso onde aflorou uma rápida amargura: “Tinha-os todos, mas ficaram na outra casa.” Compreendi. E depois de ele se ir embora, ajoujado sob a carga, pus-me a pensar na importância dos divórcios na multiplicação das bibliotecas…

No 1º volume de O Caderno retoma o tema:

Por duas vezes, ou talvez tivessem sido três, apareceram-me na Feira do Livro de Lisboa, em anos passados, outros tantos leitores, os dois ou os três, ajoujados ao peso de dezenas de volumes novos, comprados de fresco, e em geral ainda acondicionados nos sacos de plástico de origem. Ao primeiro que assim se me apresentou fiz-lhe a pergunta que me pareceu mais lógica, isto é, se o seu encontro com o meu trabalho de escritor havia sido para ele coisa recente e, pelos vistos, fulminante. Respondeu-me que não, que me lia desde há muito tempo, mas que se tinha divorciado, e que a ex-esposa, também leitora entusiasta, havia levado para a sua nova vida a biblioteca da família agora desfeita. Ocorreu-me então, e sobre isso escrevi umas linhas nos velhos Cadernos de Lanzarote, que seria interessante estudar o assunto do ponto de vista do que nessa altura designei como a importância dos divórcios na multiplicação das bibliotecas. Reconheço que a ideia era algo provocadora, por isso deixei-a em paz, ao menos para não vir a ser acusado de colocar os meus interesses materiais acima da harmonia dos casais. Não sei, nem o imagino, quantas separações conjugais terão dado origem à formação de novas bibliotecas sem prejuízo das antigas. Dois ou três casos, que tantos são os que conheci, não foram suficientes para fazer nascer uma primavera, ou, por palavras mais explícitas, por aí não melhoraram nem os lucros do editor, nem a minha cobrança direitos de autor.

Legenda: pintura de Félix Vallotton

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