Donamorta
Armando Silva Carvalho
Capa: Manuel Rosa
Assírio &Alvim, Lisboa, Abril 1984
Agora estava
Gregório em posição de espera. Com a sua maleta na mão. Molhava o pastelinho de
nata no café e a coisa era click saltava-lhe à cabeça a Madalena do liceu, a
arguta e epistolar namorada que lhe enviava em férias verdadeiros tratados de
moral, sentenças cicerianas que ele digeria junto ao Correio da aldeia com a
sofreguidão aflita dum soldado em África colonialista. Foi num assalto
carnavalesco que Madalena lhe ofereceu uma dúzia de pastéis de nata, a paixão
doceira que Gregório alimentava na altura.
Madalena era
baixa, filha dum escriturário da CUF e duma modista semiaposentada que ele
nunca chegou a conhecer. Dançava bem o tango e iniciava Gregório nos primeiros
passos do rock com a paciência obstinada duma professora de ballet com escola
própria. Usava aqueles vestidos de cortinas que lhe caíam até ao meio da perna.
E para disfarçar o cheiro dos sovacos encharcava-se em colónias que faziam
espirrar Gregório sobre os seus braços roliços.
Nessa altura
começavam os Beatles a criar a sua própria filosofia e a fazerem rodar o
conceito de amor a Dennis de Rougemont sobre as espiras dum acetato de quarente
e cinco rotações. Os Platters choravam como crias esfaimadas o Only You. E
Madalena, sempre sentenciosa, lia a Mansfield mas recusava-se a conhecer a
Beauvoir. Isto por causa da mãe que era católica a amante dum jornalista
conhecido que fazia crónicas patrióticas no Diário de Notícias da época. Havia
nesse tempo um entretém preparatório da Guerra. O Angola é Nossa era ainda um
hino suportável, mesmo aos ouvidos dos esquerdas. E até os clandestinos não
abordavam o tema de forma prioritária.
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