Numa carta para
José Rodrigues Miguéis, José Saramago diz-lhe:
E peço-lhe que não faça caso da aridez desta carta:
ontem deu-me para recordar o meu avô camponês – e fiquei assim: amargo.
Felizmente para a literatura portuguesa deu crónica… Manha de literato, defeito
de escriba: tudo acaba por se transformar em literatura…
A crónica que Saramago
refere, aparece em Deste Mundo e do Outro. Chamou-lhe «O Meu Avô, Também»:
Talvez o dia chuvoso seja o responsável desta
melancolia. Somos uma máquina complicada, em que os fios do presente activo se
enredam na teia do passado morto, e tudo isto se cruza e entrecruza de tal
maneira, em laçadas e apertos, que há momentos em que a vida cai toda sobre nós
e nos deixa perplexos, confusos, e subitamente amputados do futuro. Cai a
chuva, o vento desmancha a compostura árida das árvores desfolhadas – e dos
tempos passados vem uma imagem perdida, um homem alto e magro, velho, agora que
se aproxima, por um carreiro alagado. Traz um cajado na mão, um capote
enlameado e antigo, e por ele escorrem todas as águas do céu. À frente,
caminham animais fatigados, de cabeça baixa, rasando o chão com o focinho.
Homem e bichos avançam sob a chuva. É uma imagem comum, sem beleza,
terrivelmente anónima.
Mas
o homem que assim se aproxima, vago, entre cordas de chuva que parecem diluir o
que na memória não se perdeu, é meu avô. Vem cansado, o velho. Arrasta consigo
setenta anos de vida difícil, de desconforto, de ignorância. E, contudo, é um
homem sábio, calado e metido consigo, que só abre a boca para dizer as palavras
importantes, aquelas que importam. Fala tão pouco (são poucas as palavras
realmente importantes) que todos nos calamos para o ouvir quando no rosto se
lhe acende qualquer coisa como uma luz de aviso. Fora isso, tem um modo de
estar sentado, olhando para longe, mesmo que esse longe seja apenas a parede
mais próxima, que chega a ser intimidade. Não sei que diálogo mudo o mantém
alheado de nós. O seu rosto é talhado a enxó, fixo mas expressivo, e os olhos,
pequenos e agudos, têm de vez em quando um brilho claro como se nesse momento
alguma coisa tivesse sido definitivamente compreendida. Parece uma esfinge,
direi eu mais tarde, quando as leituras eruditas me ajudarem nessas comparações
tão abonatórias de uma fácil cultura. Hoje digo que parecia um homem.
E era um homem. Um homem igual a muitos desta terra, deste mundo, um homem sem oportunidades, talvez um Einstein perdido sob uma camada espessa de impossíveis, um filósofo (quem sabe?), um grande escritor analfabeto. Alguma coisa seria, que não pôde ser nunca. Recordo agora aquela noite morna de verão, que dormimos, nós dois, debaixo da figueira – ouço-o ainda falar da vida que tivera, da Estrada de Santiago que sobre as nossas cabeças resplandecia (as coisas que ele sabia do céu e das estrelas), do gado que o conhecia, das histórias e lendas que eram o seu cabedal da infância remota. Adormecemos tarde, enrolados na manta lobeira, que a madrugada refrescaria com certeza e o orvalho não caía só sobre as plantas.
E era um homem. Um homem igual a muitos desta terra, deste mundo, um homem sem oportunidades, talvez um Einstein perdido sob uma camada espessa de impossíveis, um filósofo (quem sabe?), um grande escritor analfabeto. Alguma coisa seria, que não pôde ser nunca. Recordo agora aquela noite morna de verão, que dormimos, nós dois, debaixo da figueira – ouço-o ainda falar da vida que tivera, da Estrada de Santiago que sobre as nossas cabeças resplandecia (as coisas que ele sabia do céu e das estrelas), do gado que o conhecia, das histórias e lendas que eram o seu cabedal da infância remota. Adormecemos tarde, enrolados na manta lobeira, que a madrugada refrescaria com certeza e o orvalho não caía só sobre as plantas.
Mas a imagem que me não larga é a do velho que caminha
sob a chuva, obstinado e silencioso, como quem cumpre um destino que nada pode
modificar. A não ser a morte. Mas, nessa altura, este velho, que é meu avô,
ainda não sabe como vai morrer. Ainda não sabe que poucos dias antes do seu
último dia vai ter a premonição (perdoa a palavra, Jerónimo) de que o fim
chegou, e irá, de árvore em árvore do seu quintal, abraçar os troncos,
despedir-se deles, dos frutos que não voltará a comer, das sombras amigas.
Porque terá chegado a grande sombra, enquanto a memória o não fizer ressurgir
no caminho alagado ou sob o côncavo do céu e a interrogação das estrelas. Só
isto – e também o gesto que de repente me põe de pé e a urgência da ordem que
enche o quarto aquecido onde escrevo.
Antes, já evocara a sua Avó Josefa, também fazendo
parte do mesmo livro e que pode ser lida por aqui em Olhar as Capas.
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